Capítulo 3 Reviravolta

Capítulo 3 – Reviravolta

Meg

###

Dois anos antes – Califórnia

Estava sentada na cama do meu quarto a tentar telefonar para meus pais. Precisava obter qualquer notícia a respeito de como eles estavam, se tinham encontrado uma ou mais pessoas contaminadas... Esse tipo de coisa. Entretanto, não se tratava apenas de um boato. Serviços como telefonia e internet começavam a ficar sem operação, mercados e agências bancárias registravam tumultos em diversos estados e, em alguns deles, inclusive havia saques.

Eu acompanhava com apreensão as notícias pela televisão, embora as reportagens se restringissem somente A San Diego, cidade em que meu irmão e eu estávamos em missão, e às localidades próximas. Quando peguei o controle para trocar de canal, no entanto, a porta do meu quarto foi aberta em um rompante.

- Aquela garota acabou de matar o tenente Ortega!

Ergui meus olhos do que estava prestes a fazer e encarei Martin com assombro. - Que garota?

- Abigail Robinson. - Ele me respondeu sem fôlego.

- Como você soube disso? - Questionei, visivelmente surpresa.

- Não importa. Eu já reportei o fato aos dois generais restantes, que por sorte estão aqui pra redistribuir o comando, porque todos os colegas deles se infectaram, foi a informação que recebi. Meg... A situação tá cada vez mais crítica. Eu diria que tá caótica. Nós não temos mais comandantes nessa operação... Diversos soldados não querem mais trabalhar e só pensam em voltar pra casa...

- Como se você também não pensasse nisso. - Eu resmunguei.

- A soldado Abigail matou o tenente Ortega porque ele negou que ela retornasse.

- Mas ele nos liberou pra voltar.

- Eu sei, e daí?

- Por que ele não permitiu que ela viajasse conosco amanhã cedo. Teria evitado a morte dele.

- Você não tá tentando justificar o assassinato de um oficial de patente superior por uma soldado, não é? O motivo é torpe...

- Torpe pra você. Ela tem um irmãozinho que depende dela, Martin. - Eu ponderei. - Mas agora você já a denunciou... Não há nada que possamos fazer.

- Até mesmo porque, eu sou primeiro sargento e você não. Pelo menos até que a situação normalize, eu vou ficar no comando... Seja lá do que quer que esteja acontecendo em Galveston. - Ele falou de forma irredutível, depois deu um suspiro como se pretendesse buscar um pouco de calma. - A última informação que obtive de nossos pais é que eles decidiram evacuar a cidade por conta própria e que... Vão organizar as pessoas que queiram segui-los em um grupo. Por isso você e eu precisamos nos apressar.

- Bem, eu já tô pronta pra voltarmos, se você quiser partir agora... Organizei tudo em minha mochila como você me sugeriu.

- Certo. O soldado Garcia vai levar a gente. O tenente Ortega o autorizou a fazer isso antes de ser morto.

- Ótimo. Mas que fique claro que... Considero um equívoco não procurarmos por Abigail Robinson.

- Os generais aceitaram a denúncia, Meg. Eu não vou levar conosco alguém que cometeu um grave crime. Não vou encobrir uma merda como essa.

- Faça o que quiser. Você é quem tá no comando, como acabou de referir. Mas eu não vou deixar de opinar que sua posição é intransigente.

- No dia em que você for comandante, entenderá minha posição.

Limitei-me a assentir no momento em que peguei minha mochila. Eu sabia que a garota em questão se sentia responsável por seu irmãozinho, por esse motivo ela desejava voltar para casa. Se fosse eu a comandante de qualquer coisa – porque nós sequer sabíamos se os exércitos permaneceriam intactos devido ao vírus que assolava cidades inteiras – eu não negaria algo tão simples, não quando alguém em profundo desespero viesse me pedir, praticamente me implorar que eu a liberasse, exatamente como ela havia feito ao dialogar com o tenente Ortega anteontem.

###

Dois anos depois – Galveston

Eu segurava minha pistola com firmeza e determinação, enquanto olhava para a enorme mulher com cerca de 1,90 m de altura parada à minha frente a certa distância, embora tudo na postura dela se mostrasse ameaçador.

Eu poderia girar em meus calcanhares, ignorar a eminente luta que travaríamos e deixá-la ali sozinha, mas não tinha certeza de que sairia viva porque ela poderia me atingir covardemente com um disparo pelas costas.

Eu tentava ler os pensamentos dela através de seus grandes e expressivos olhos, no entanto tudo que eu conseguia vislumbrar não passava de ressentimento e de amargura. Não somente o céu estava carregado com nuvens tempestuosas, mas também as orbes verdes dela, que me encaravam de maneira fixa, exibiam todo ódio represado pelos últimos dois anos de constantes embates entre nós.

- Por que não atira de uma vez por todas, Abigail? - Eu perguntei, ao me dirigir a ela exatamente da mesma forma que nossos superiores na época chamavam, quando nós duas pertencíamos ao exército. - Por que você não termina logo com isso? Talvez se vingar faça você se sentir melhor... Isso se conseguir me matar em uma luta, claro.

Robinson riu amargamente. - Admito que meu dedo tá coçando pra calar sua maldita boca pra sempre pra que depois eu possa cremar seus restos e acabar com toda essa merda... Mas apesar de todas as cagadas que você fez desde que o surto começou... Matar você não seria justo com aquelas crianças que seus soldados levaram ainda a pouco, nem mesmo com tantas outras que você tem o costume de abrigar. - Argumentou ela.

- Como se você se importasse com alguém, especialmente comigo. - Eu rosnei, sem abaixar a pistola.

- Não, de fato não dou a mínima pra você. Quanto menos vezes eu me encontrar com você, melhor vai ser pra nós duas. Mas você, melhor do que ninguém, sabe que me importo com crianças. E você sabe exatamente por quê!

- Você ainda tem ressentimentos por conta do que houve... - Eu suspirei pesadamente.

- Você ainda não entendeu, porra... Então vou repetir de novo: meu irmão tinha somente cinco anos quando toda aquela bosta acabou por acontecer... Sua cretina. O que você acha? Se você tivesse irmãos, saberia o que eu tô sentindo. Ah, eu me esqueci de um detalhe... Você tinha um, não é? - Ela indagou, com um sorriso debochado em seu rosto.

- Você sabe que sim, garota. - Voltei a rosnar, com visível irritação. - Não haja como se eu não tivesse tido família.

- Sim, eu sei que você tinha família, pessoas com as quais você se importava. Só que diferentemente de Ronnie, o seu irmão não era nem um pouco inocente. Ele teve culpa, Butler!

Um relâmpago cruzou o céu e o trovão soou alto enquanto meu corpo estremecia com a lembrança do primeiro sargento, Martin Butler, que havia sido morto a pauladas há dois anos. Eu sabia que ela gostava de me provocar e que funcionava, porque tudo que fiz em resposta foi levar o dedo ao gatilho e atirar em sua direção por duas vezes, ao mesmo tempo em que a voz de Alexia Álvarez soava de novo em meu radiocomunicador preso à mochila, em um chamado insistente para que eu regressasse à base, por conta do mau tempo que assolava a cidade inteira. Porém, eu não aguentava a dor de me recordar do que tinha acontecido com meus pais e com meu irmão, vítimas de um mundo violento e desumano o qual se revelou por completo durante a epidemia.

Eu acreditava que algumas pessoas fossem vis, mas sabia que o que as freava a demonstrar tamanha agressividade era o sistema legal vigente antes do surto. Por esse motivo, com o fim de qualquer organização social e governamental, lideranças novas surgiram e formaram grupos em sua maioria de cunho escravocrata especialmente nos grandes centros, facções essas que buscavam controlar indivíduos através do uso da força com horripilantes métodos de tortura.

Esse, todavia, não era o caso de Mary Abigail Robinson. Ela jamais se mostrou a favor de escravizar ninguém diretamente, mas costumava assassinar praticamente todos que não quisessem ser leais a sua causa.

Assim que fiz uso de minha pistola para dispará-la contra ela a garota se jogou ao chão, ficando encoberta pela vegetação crescida a nossa volta. Eu não conseguia visualizá-la, também, porque a escuridão por conta das densas nuvens não me permitia fazê-lo. E exatamente porque não podia vê-la, que não previ que seria atingida com uma rasteira que também me levou ao chão.

A jovem de olhos esverdeados possuía inegável habilidade em desarmar até mesmo militares experientes, devido ao rigoroso treinamento a que foi submetida à época de recruta. Inclusive eu imaginava que tinha sido dessa maneira que ela havia matado o tenente Roger Ortega no início da pandemia, porque com uma simples rasteira ela conseguiu fazer com que eu perdesse o equilíbrio e retirou de minha mão a pistola que eu portava, por conta de sua avantajada envergadura.

No entanto, apesar de ela ser uma excelente lutadora, eu também era. Não possuía porte físico nem força extrema como a dela, mas compensava em agilidade e em destreza, por conta dos severos treinamentos a que fui submetida desde a ocasião em que fui designada soldado.

Estávamos emboladas no chão a trocar violentos socos e chutes porque ela, ao conseguir retirar minha arma, limitou-se a se desfazer da sua própria para que nós duelássemos em pé de igualdade, fato que me surpreendeu. Estávamos tão imersas em nossas motivações para lutar uma contra a outra, que sequer atentamos para a silenciosa horda de infectados que se aproximava, por conta da escuridão fora de hora devido à torrencial chuva que desabava sobre nós.

Ela obteve vantagem ao me empurrar para o chão, sentar-se em meu tronco e me acertar uma cotovelada no rosto, ferimento que espalhou bastante sangue de imediato, exatamente por ter sido um profundo corte acima do meu olho esquerdo.

Eu a empurrava com toda força de meus braços, no entanto não era o suficiente para tirá-la de cima de mim, por causa do peso de seu corpo, que era puro músculo. Ela continuava agarrada às minhas vestimentas com uma mão, enquanto que, com o braço esquerdo, tentava achar uma boa posição para me aplicar algum golpe de um tipo de luta oriental a qual eu não dominava tampouco praticava, mas que acreditava ser jiu-jitsu.

Tudo que eu podia fazer era tentar mantê-la o mais afastada possível do meu rosto ao empurrá-la com os quadris, com a finalidade de que ela não conseguisse me acertar nenhuma cotovelada mais, até porque o sangue que corria do ferimento em minha sobrancelha embaçava minha visão.

- Nunca mais... Fale do meu irmãozinho... Porra. - A voz dela estava embargada e transparecia o mais profundo ódio, embora eu também conseguisse perceber tristeza por sua perda.

- E você... Não se refira ao Martin dessa forma estúpida. Ele era seu sargento... Tenha respeito!

- Grande merda. Ele tinha conhecimento de que o tenente Ortega tava infectado... E mesmo assim me considerou desertora, além de dificultar ao máximo minha volta pra casa! - Ela retrucou enquanto me segurava e me mantinha na mesma posição, ao me acertar um forte soco no rosto, que piorou minha situação por abrir outro ferimento, dessa vez em minha bochecha.

- Isso não justifica... Você matar pessoas inocentes! - Contra-argumentei, conseguindo liberar um braço para atingi-la nas costelas com dois socos igualmente fortes, no intuito de movê-la de cima de mim.

Pega de surpresa pela dor lancinante em seu tórax ela rolou para o lado, no entanto, quando estava prestes a me atacar novamente, pelo menos era o que eu pensava já que eu tinha me virado para o lado oposto e tentava me levantar, escutamos os conhecedores grunhidos dos errantes.

Passei as costas da mão pelo rosto para limpar a grande quantidade de sangue que me dificultava enxergar e, quando olhei em volta em busca da minha pistola, observei-a lutar contra três infectados de uma vez só. O que mais me deixou atônita foi que os inimigos vinham em minha direção; a garota não precisaria ter me ajudado se não quisesse. Se pretendia tanto me matar, poderia ter apenas deixado que eles fizessem o trabalho sujo.

Entretanto, lá estava ela a derrubar um deles a socos e o outro a pontapés, para matá-los com alguma dificuldade já que o terceiro errante a puxava com alguma insistência pela jaqueta por trás, em uma tentativa de desequilibrá-la. Foi então que por puro instinto eu agi, como se estivesse a salvar alguém pertencente ao meu grupo: disparei, e o projétil silenciou os lamentos do infectado que fazia de tudo para levá-la ao chão.

Nós sequer tivemos tempo para respirar, porque havia inúmeros errantes que, atraídos pelo escuro da tempestade e pelo barulho que fizemos, deixavam seus esconderijos enegrecidos – geralmente os poucos e grandes prédios desabitados repletos de escombros –, para que se aventurassem do lado de fora em busca de vítimas.

A garota de apelido Abby e eu trocamos olhares com alguma rapidez e, de modo instintivo, começamos a reagir ao mesmo tempo ao ataque empregado pelos contaminados. Embora o ressentimento fosse marcante nos olhos dela e nos meus, tomamos a sábia decisão de unir forças em um momento crucial, porque caso contrário, se nós insistíssemos em lutar uma contra a outra ali, fatalmente não voltaríamos para nossos grupos depois.

Eu atirava nos inimigos com inegável perícia, embora não deixasse de pensar que fossem vários. Poucas vezes eu tinha visto uma horda tão numerosa e, de certa forma pude perceber o mesmo olhar de surpresa no rosto de minha desafeto. Porém, o fato de que ela não precisava fazer uso de armas de fogo para aniquilá-los vez ou outra me levava a desviar o olhar, visivelmente enojada; ela fazia questão de eliminá-los como se um dia não houvesse estado indivíduos exatamente como nós dentro dos corpos deles, o que fazia com que eu me perguntasse se ainda havia algo de humano nela.

Eu olhei para os lados outra vez e corri na direção oposta à dela, mais por instinto de sobrevivência do que por qualquer pensamento que ocupasse minha mente. A praia de East Beach estava mais perto do que eu realmente gostaria e, como eu tinha plena consciência de que era território dos Tigers, mostrei-me um tanto tensa com o que podia acontecer comigo. De qualquer maneira, mantive a pistola em minha mão a alvejar contaminados, enquanto eu continuava parcialmente encurralada à parede de tijolos mais próxima.

- Vamos entrar. Agora. - Ela sugeriu, ao caminhar em minha direção e ao apontar para o primeiro estabelecimento que enxergou. - Aqui.

- O quê?

- Ou você tá com vontade de servir de lanchinho pra essas criaturas horríveis que estão aqui do lado de fora? - Ela tornou a falar com alguma impaciência. - Vamos lá, Butler. Siga-me.

Ao meu aceno positivo e um tanto surpreso com a reviravolta, ela arrombou a porta da oficina automotiva e nós adentramos o local com agilidade, para que nenhuma das criaturas insanas pudesse nos alcançar e a porta novamente fosse fechada com uma barricada habilmente armada por ela, ao empurrar uma máquina de conserto veicular e uma estante no intuito de bloqueá-la.

Eu, por outro lado, larguei minha mochila em cima de um balcão para poder limpar o sangue de meu rosto uma vez mais, enquanto ela procurava por itens em diversas gavetas, abrindo-as de maneira afoita sem se preocupar em fechá-las, como se buscasse por algo específico.

Nós duas sequer tínhamos coragem de nos encarar. Talvez porque sentíssemos que, se o fizéssemos, voltaríamos a nos enfrentar até que uma de nós ficasse inconsciente. Por esse motivo eu passei a checar meus pertences de modo distraído, a fim de averiguar o que tinha à minha disposição que pudesse ser útil em uma situação difícil como aquela.

E eu estava tão imersa no que fazia, que sequer percebi a furtiva aproximação dela. Abby tinha gaze e esparadrapo em suas mãos e, praticamente sem fazer contato visual comigo, ela fechou com tamanha habilidade um curativo abaixo de meu olho esquerdo que ainda sangrava, que sequer consegui me mover, devido à surpresa que senti por tê-la tão perto de mim.

- Só pra esclarecer a situação entre nós... Eu ainda odeio você com todas as minhas forças e tenho meus motivos pra isso... - Ouvi-a sussurrar. - Eu só não acho que uma pessoa mereça ser devorada viva pelas criaturas que estão do lado de fora, porque de certa maneira... Como falei lá atrás: aquelas crianças que você resgatou hoje e tantas outras... Confiam em você. Elas esperam que você volte pra casa, porque nenhuma delas têm mais esperança no futuro e... Se pra elas você representa isso... Não acho que você mereça morrer ao servir de comida pra um monte de porcaria.

- Isso significa que podemos chegar a um acordo e unir forças para afastar grupos que tenham potencial pra invadir a cidade?

- Nem pensar. Não que eu concorde com os grupos que sei que agem em Houston e em outras cidades texanas. Mas eu nunca vou me sentar junto a você e ser amigável como você imagina. Eu só tô tentando garantir que fiquemos vivas e que cheguemos em nossas casas... Inteiras. - Ela respondeu, ao notar meu rosto sujo de sangue. - A propósito... Você vai ter que dar pontos nessa coisa quando chegar à base militar.

- Então... Pare de agir como se você se preocupasse comigo, porra. - Eu rosnei visivelmente irritada. - Até porque, você tava a ponto de querer acabar com a minha vida lá atrás!

- Bem, nós estávamos em um duelo em pé de igualdade. Além do mais, não sou tão ruim como pareço, não é... Eu poupei sua vida mesmo que você falasse de uma criança inocente que tinha graves problemas de saúde e que não merecia morrer fuzilada. - Ela argumentou, enquanto exibia um sorriso de satisfação ao encontrar um afiador manual de facas, retirava uma de sua mochila a qual ainda tinha sangue seco e, de maneira lenta, deslizava a ponta da arma na chaira para afiá-la. - Eu podia ter deixado você ser morta lá fora e ter tomado sua base depois... Mas não é assim que eu quero que termine.

- E como você quer que isso acabe então, Abigail? - Indaguei, enquanto colocava projéteis em minha pistola.

- Você quer ter o outro lado da cara rebentado também? - Ela de repente perguntou, ao me encarar diretamente. Seus olhos verdes como esmeraldas me fuzilavam com um ódio quase palpável, ao mesmo tempo em que seu corpo bem construído estremecia levemente.

- O quê? - Eu não havia entendido por que a repentina mudança de humor por parte dela.

- Não me chame pelo meu nome, porra... Era assim que aqueles comandantes idiotas me chamavam. Ou de Abigail ou então pelo meu nome inteiro...

- Tá bem, como quiser. - Ergui as mãos em sinal de rendição, enquanto ouvia a voz de Álvarez no radiocomunicador de novo. - Como você quer que isso que há entre nós termine, Abby?

- Quando não sobrar mais ninguém que possamos defender... Quando sobrar somente nós duas nessa maldita cidade... Eu vou matar você. - Ela resmungou, ao ir para a frente da oficina.

Em seguida empurrou o móvel e a máquina que utilizou para fazer a barricada, abriu minimamente a porta com o objetivo de olhar o entorno para fechá-la logo depois.

- E você acha mesmo que vai chegar o dia em que nós não vamos ter pelo que lutar?

- Obviamente sim. Nós nunca imaginávamos que a humanidade seria fodida por um vírus que nenhum médico foi capaz de encontrar a cura, então com certeza vai chegar o dia em que nós não vamos ter mais nenhum motivo pra lutar... A não ser nós mesmas. - Falou, antes de armar a barricada outra vez.

- Sua forma de pensar é muito obscura. - Observei com certo divertimento, enquanto ela voltava à tarefa de afiar a faca suja de sangue.

- Não me diga isso como se não conhecesse meus motivos... - Ela rosnou.

Eu a encarei uma vez mais, ainda que desviasse meu olhar logo depois. Seus olhos verdes eram simplesmente lindos, especialmente quando ela vestia uma roupa escura, o que era corriqueiro desde o início da epidemia por conta do luto.

Seu corpo sempre foi bem construído, com músculos de dar inveja a soldados de ambos os sexos. Mas após o surto ela tinha ficado notadamente mais forte, capaz de matar alguém com as próprias mãos sem o menor esforço, o que a tornava bastante perigosa, sobretudo porque qualquer tipo de moralidade internalizada que houvesse com a educação que recebeu havia se rompido, principalmente depois de tudo de ruim que aconteceu com a família dela.

Ao escutar a cabo Álvarez me chamar com alguma insistência novamente eu me limitei a dar de ombros e respirar fundo, como se quisesse me livrar do rádio que portava. Olhei para a garota uma vez mais e a observei continuar a afiar facas de maneira metódica, quase ameaçadora, sempre em silêncio.

No entanto não tinha como afirmar se ela estava quieta para não atrair mais contaminados às proximidades da oficina veicular, ou se era por conta de tudo que nós já tínhamos vivenciado nos últimos dois anos e três meses, desde que ela havia sido admitida no Exército Americano.

Recordo-me como se fosse hoje do dia exato em que ela desembarcou em San Diego, fronteira da Califórnia com o México, três meses antes do surto. Eu a recebi enquanto oficial superior a ela porque na tarde em que Robinson chegou nenhum militar de alta patente estava presente – eu era cabo à época e, em uma tentativa de deixá-la à vontade, meu irmão me designou a tarefa, por considerar que nós duas nos daríamos bem por pertencer ao mesmo sexo.

Abby se tratava de uma moça de 20 anos, estava prestes a completar 21. Dona de um corpo forte e de uma envergadura avantajada, tudo que sabíamos dela era que se tratava da melhor aluna da última turma de recrutas, inclusive era mais eficiente do que todos os homens que pertenciam ao grupo que se formou juntamente com ela.

A ideia de meu irmão não podia ter sido melhor. Nós realmente nos entendemos perfeitamente bem, tanto no campo quanto nos escassos horários de folga que desfrutávamos. Sempre almoçávamos juntas e, quando percebia que os superiores confiavam em mim, tudo que ela me dizia era: "um dia vou ser como você."

No entanto a epidemia veio; abateu-se sobre os humanos de forma voraz. Avassaladora. Destruidora. Acabou com muitas vidas e transformou alguns dos indivíduos que antes eram gentis em pessoas mesquinhas, aparentemente sem nenhum tipo de empatia. Uma dessas pessoas era a jovem mulher de 23 anos que agora caminhava de um lado a outro da oficina enquanto relâmpagos rasgavam os céus de Galveston, em meio a gritos horrendos dos infectados do lado de fora.

Eu não sabia se havia alguma coisa que pudesse dizer no intuito de quebrar o incômodo silêncio entre nós, então optei por prosseguir na metódica tarefa de equipar minhas armas e de organizá-las, até porque não sabia se ela não mudaria de ideia e não tentaria me atacar. Eu realmente não conseguia confiar em sua versão violenta, ao passo que, se nós duas estivéssemos na fronteira dos Estados Unidos com o México agora, em uma situação normal ao servirmos o exército, eu não hesitaria em colocar minha vida nas mãos dela, caso fosse necessário.

Eu estava tão distraída a organizar os itens em minha mochila, que sequer reparei a aproximação dela uma vez mais. Quando dei por mim, a garota estava parada a minha frente, olhos verdes atentos para o ferimento que tinha colocado em meu rosto.

Eu não conseguia perceber se Abby sorria ou se ela se mostrava preocupada por causa do caos do lado de fora, mas podia dizer que um pequeno traço de satisfação marcava seus olhos por ter deixado um machucado tão profundo em meu rosto, o qual sangrava mesmo com o curativo emergencial feito por ela.

- Atenda. - Ouvi-a sussurrar assim que Alexia voltou a me chamar. - Eles devem estar preocupados com você.

Eu suspirei audivelmente, retirei o rádio de mão da mochila e a observei se afastar para voltar a afiar armas brancas. Não saberia dizer se ela pretendia que saíssemos com aquela tempestade do lado de fora, mas que ela se preparava para algo grandioso, disso eu não tinha dúvidas.

- Cabo Álvarez, tá na escuta?

- Que merda, sargento. Com todo respeito... Você me apavorou. - Ouvi sua resposta segundos mais tarde. - Eu quase mandei uma equipe atrás de você e...

- Ei... Eu tô bem. - Apressei-me em tranquilizá-la, interrompendo-a.

- Quer que eu mande um grupo de soldados buscar você? É só me dizer onde está...

- Negativo. Não exponha nossos homens e mulheres ao perigo. A tempestade do lado de fora está severa demais. - Eu respondi, ao ouvir a chuva aumentar de forma torrencial.

- É exatamente por isso que prefiro mandar uma equipe o quanto antes. Meg, o soldado Garcia me falou que eles tiveram de deixar você porque aquela garota e você estavam prestes a se enfrentar.

- Sim, nós estávamos. - Eu admiti.

- O que aconteceu?

- Eu consegui me esconder em uma oficina automotiva. Ouça, não se preocupe. Estou bem abrigada e vou esperar que o mau tempo dê uma trégua para que eu volte.

- Então quer dizer que... Ela não foi atrás de você?

- Alexia, eu sei que você tá preocupada e agradeço por isso. Mas prefiro conversar quando eu chegar na base militar. Sim?

- Tá certo... É você quem sabe.

- E as crianças... Elas estão bem?

- Sim. Tinham comido um sanduíche cada e tinham barras de proteína junto a elas. Disseram que ganharam o alimento de uma mulher alta e musculosa, toda vestida de preto. Eu duvido que tenha sido quem eu tô pensando, sabe como é... Crianças inventam muita coisa.

- Mas eu acredito no que foi falado pelas crianças. - Comentei brevemente em resposta porque, afinal de contas, em um cenário tenso como o que se encontrava, tudo que Michael faria para proteger sua irmã era o oposto de mentir. - E Nicolle, como ela está?

- Levou apenas um tiro no braço, ela vai ficar bem. O problema é Jennifer... Ela perdeu muito sangue devido aos ferimentos, principalmente o da barriga. Mas vamos ver... Os doutores têm esperança de que ela consiga se recuperar plenamente.

- Certo. Eu gostaria de estar de volta à base logo, mas não acho que será possível. Então até que eu retorne... Você e John estão no comando das coisas por aí. Tudo bem?

- Sim. Mas tenha cuidado, Meg, por favor. A cidade deve estar um caos...

- Eu vou tentar ter. Câmbio e desligo.

- Câmbio e desligo, sargento.

Eu encerrei a conversa com a cabo Álvarez e voltei a observar a líder dos Tigers. Ela estava de costas para mim, a vasculhar uma gaveta de maneira concentrada. Não parecia ter prestado atenção na minha breve troca de palavras com Alexia, pelo menos era o que eu supunha, até ouvi-la falar.

- Então só pra entender como tá minha credibilidade com o grupo detentor do poder e da razão... - Seu tom soou debochado e tinha uma pitada de provocação contida. - Ela não acredita que eu seja capaz de alimentar crianças... De ter atos de empatia... Mas você sim? - Ela indagou com visível interesse, ao se voltar para mim.

- Bem, eu conheci você quando chegou ao exército em um mês em que nós vivíamos em um mundo civilizado, então sei quem você realmente é, principalmente pelo tempo que você e eu convivemos. Alexia se deparou com uma versão sua que não condiz com a realidade, porque vocês sequer interagiram anteriormente ao surto.

- É mesmo? - Ela se voltou para a gaveta com a finalidade de pegar outro item. Seu tom de voz havia expressado uma mistura de desprezo, de ironia e de desafio que me deixou ligeiramente tensa.

- Sim.

- Então quem realmente eu sou, sargento Butler? Porque se você é tão boa assim em conhecer e em entender as pessoas, certamente deve ter essa resposta na ponta da língua... Mesmo que você e eu tenhamos convivido em missão pelo exército por apenas três meses... Quem eu sou? - Questionou-me ao se virar de maneira abrupta e me encarar intensamente, seus olhos cor de esmeralda emanavam ódio e algum outro sentimento que eu não soube identificar no momento.

- Quando eu a conheci você demonstrava empatia pelas pessoas em geral. Queria servir seu país e se mostrava disposta a ajudar como pudesse, por esse motivo você acabou por escolher participar da missão de trabalhar nas fronteiras, em uma força-tarefa especial da qual o exército fazia parte. Pelo menos essa foi sua justificativa quando questionei por que você havia escolhido se tornar uma soldado. Na tarde em que você e eu nos deparamos com cerca de 15 indivíduos mexicanos que tentavam passar para os Estados Unidos, em vez de prendê-los, que seria o que qualquer militar ou até mesmo a Imigração faria, você e eu concordamos silenciosamente que precisávamos ao menos conseguir roupas e alimentos para aquelas pessoas e não mantê-las na cadeia como se fossem criminosas... E foi o que nós duas fizemos sem que nenhum outro oficial superior soubesse... Nem mesmo meu irmão, nem mesmo o tenente Ortega. E eu sinceramente acredito que seu lado empático e solícito não morreu com a epidemia, Abby. Você só está em luto profundo.

Enquanto eu falava, mantinha-me atenta às reações dela, já que nós permanecíamos de frente uma para a outra. Inicialmente percebi que ela continuava a se manter em uma postura firme como uma rocha. No entanto, no decorrer de meu relato ela pareceu transparecer uma espécie de remorso que a fez respirar fundo para se recompor.

- Por que você não falou pra sua leal seguidora que está aqui comigo? Não me diga que tem medo da reação dela...

O questionamento da garota tinha um tom curioso além de uma ponta de ironia, mas também entendi que se tratava de uma tentativa desesperada de mudar de assunto. - Ela mandaria uma equipe vir me buscar.

- Contra as suas ordens?

- E você mataria todos que viessem. - Prossegui em minha resposta, ao ignorar a outra indagação feita por ela.

- É isso que você realmente pensa a meu respeito, não é? Que hoje eu sou alguém completamente sem empatia... Sem escrúpulos... Sem coração. - Sua expressão ganhou um tom de tristeza que durou breves instantes.

- Hoje em dia... Infelizmente sim. - Comentei o mais sinceramente que pude. - Por mais que eu saiba que você não é somente isso... Você fez essa fama desde que começou a agir de modo violento.

Ela voltou a ficar de costas para mim enquanto colocava itens em sua mochila. - Eu realmente quero você morta, sargento Butler. Mas não por um bando de infectados, nem pelos meus comandados nem por qualquer outro imbecil de outra facção... Não. Tem que ser eu. Somente eu, sem nenhum tipo de interferência de ninguém.

Eu dei uma risadinha debochada, joguei minha mochila que estava prestes a colocar nas costas em cima do balcão e dei a volta para me aproximar dela devagar. - O que você está esperando, então? - Desafiei-a, os dentes cerrados. - Somos só nós duas nessa maldita oficina, você tem razões de sobra pra me matar como sempre diz... Então por que não faz isso logo?

- Eu já disse por que a você... Não vou assassinar você enquanto houver crianças em seu grupo.

- Eu já afirmaria que não tenho certeza de que você quer realmente me ver morta, Robinson.

- Você parece saber muito a meu respeito, Butler. - Ela retrucou em um sussurro. - Mas não estique muito a corda da confiança porque há certas coisas que são frágeis demais. Porque caso contrário, tudo pode rebentar e você vai perder muita coisa.

- Eu posso não ser grande e forte como você, mas não se atreva a me ameaçar. Porque se tiver que me defender de um ataque seu seja aonde for... Eu vou fazer o que for preciso. - Respondi em um rosnado, ao me aproximar dela e segurá-la pelo ombro com alguma rigidez.

Ela deu um risinho de provocação e me afastou com um forte empurrão. - Cale essa maldita boca, porra. - Devolveu-me, os dentes cerrados. - E não tente me segurar de novo, porque posso vir a mudar de ideia quanto a não matá-la agora.

Em seguida permaneci de costas para Abby e resolvi vasculhar algumas gavetas que percebi que ela não tinha checado. Encontrei duas facas e um revólver carregado, o que me levou a sorrir minimamente por ter sido eu a localizar esses itens, os quais guardei em minha mochila.

Logo depois me dirigi à porta do local e olhei para fora, por cima da barricada, com alguma rapidez. A tempestade tinha melhorado um pouco, mas havia inúmeros infectados que formavam uma horda gigantesca às proximidades, o que me fez erguer as sobrancelhas. Eu jamais tinha visto tantos errantes juntos.

- Nunca vi tantos deles agrupados assim. - Eu voltei a falar, em uma tentativa de retomar o diálogo entre nós, apesar do clima tenso persistir.

- Eu também não. Não sei que merda tá acontecendo, mas tá longe de ser algo bom. Se nós não conseguirmos sair desse lugar por conta do mau tempo, vamos ter que acampar aqui por horas. - Ela sugeriu, ao colocar sua mochila ao lado da minha.

- Você acha mesmo que vou continuar perto de você esse tempo todo, ainda mais depois de tudo de ruim que houve entre nós nos últimos dois anos? Eu não faria isso nem que me obrigassem...

- Eu já disse que não vou matar você... Pelo menos não agora enquanto nós duas temos pelo que lutar, então não tem motivos pra continuar na defensiva comigo. - Ela repetiu de maneira firme. - Não é como se eu fosse fazer isso com você dormindo ou qualquer coisa do gênero caso nós tenhamos de permanecer aqui... Embora eu possa pensar o mesmo que você, não é?

- Eu não entendi...

- Qual é, sargento Butler, você tá com receio de ser morta por mim, mas não parou pra pensar que nossa desconfiança seja mútua? Você em nenhum momento se perguntou por que estou a afiar facas aqui? Ou por que também estou com alguma pressa de sair? - Abby esboçou um sorriso indecifrável e em seguida deu de ombros. - Não é somente por causa dos infectados que estão do lado de fora. Você pode ser boazinha como o Superman, mas eu prefiro meu estilo misterioso do tipo Batman.

Dei um risinho sem humor e desviei meus olhos dos dela antes de falar: - Eu não sou tão boa como você pensa.

- Eis o detalhe da conversa que pode fazer toda diferença... Só há uma forma de eu testar.

- De que merda você tá falando?

- O meu irmãozinho tinha só cinco anos... Como você tá cansada de saber. Não foi seu pai que ordenou matá-lo, eu sei que não pode ter sido ele... Nem sua mãe nem muito menos seu pai, até porque, o doutor Samuel o tinha atendido por diversas ocasiões antes do maldito surto. Já seu irmão... Bem, ele havia sido meu superior, eu o conhecia um pouco, mas pelo que eu soube ele não estava no entreposto naquele dia, ele tinha ido em missão de varredura em um dos bairros da cidade, que era quando os militares iam assassinar as pessoas de modo irresponsável, sem saber se estavam ou não contaminadas... Exatamente como Sophia tinha me relatado à época.

- Você sabe melhor do que ninguém, Abby, que nós não dispúnhamos de equipamentos o suficiente pra realizar o exame necessário pra identificar o novo vírus no corpo das pessoas, nós só sabíamos que elas estavam contaminadas quando eram mordidas. Tínhamos de confiar no que elas nos diziam e, por conta disso, colocamos indivíduos recém-contaminados dentro da comunidade que pretendíamos formar, o que causou enormes danos porque houve transformações e diversos casos de ataques sequenciais.

- Essa é a desculpa mais esfarrapada que já ouvi! Admita, sargento, pelo menos dessa vez... Um menininho de cinco anos, irmão de uma colega sua que no caso era eu... Porque por mais que eu fosse somente uma soldado e que você pertencesse a uma família com credibilidade frente aos militares de alta patente, o fato de eu ter reiterado que ele não tava contaminado devia ter sido o suficiente!

- Você sabe que nunca duvidei de você... Eu inclusive tava insatisfeita com o rumo que as coisas tavam tomando... Eu apenas tinha de cumprir ordens de meus superiores. Você tinha vindo fugida da Califórnia pra cá, era considerada desertora e...

- E então uma criança inocente que não escutava de um ouvido e que tinha problemas de saúde podia ser morta, não é? Não ia pesar tanto na consciência de vocês esse fato, já que ele era doente... Não era preciso ter empatia. - Ela desabafou.

Nós duas estávamos novamente de frente uma para outra, mais ou menos nas mesmas posições em que nós estivemos do lado de fora, no entanto não segurávamos nossas armas. Abigail mantinha os braços cruzados em frente ao peito, enquanto eu espelhava sua postura, desafiadoramente.

Nossas mochilas estavam uma do lado da outra em cima de uma enorme bancada, porém nenhuma de nós ousava fazer qualquer movimento para que pegássemos em armas ou nos agredíssemos. A tensão do momento era evidente, embora eu também notasse algumas lágrimas escapar daqueles belos olhos verdes. Lágrimas de um ressentimento tácito, de mágoa, de tristeza pela perda de alguém com quem ela se importava muito e se responsabilizava antes de tudo ruir, eu conseguia perceber isso.

- Você tem certeza de que quer saber quem o matou?

- Eu gostaria... Pelo menos me ajudaria a acertar contas com a pessoa responsável e a encerrar de uma vez por todas esse assunto. Não que eu considere um erro ter assassinado sua mãe e seu irmão... Os malditos espalharam cartazes por toda cidade com minha fotografia somente porque eu fui considerada desertora... No que me diz respeito, eu apenas tava me defendendo. - Alfinetou.

- E no que me diz respeito, posso sentir tanto ódio quanto você por tê-los assassinado.

- É justo, mas... Por mais que você tente... Isso é impossível. Você pode ter cometido graves equívocos desde o início dessa maldita epidemia... Mas é alguém boa, isso eu não tenho como negar. Você abriga pessoas... Elas preferem ir com você, como aquele garotinho preferiu, porque todos percebem o quão valorosa você é... E se eu puder ser sincera... Acho que odeio você por isso, também.

Jamais imaginei que nós teríamos um diálogo tão honesto, apesar de o clima hostil ainda prevalecer. Porém, ao menos ela conseguiu me dirigir a palavra sem que me apontasse armas, fato que não tinha acontecido até então, pelo menos não desde o instante em que ela afirmou que me odiava pela primeira vez.

Observei-a caminhar com alguma lentidão à porta de entrada da oficina automotiva e olhar para fora no intuito de localizar os infectados. A chuva tinha diminuído de maneira considerável ainda que permanecesse suficientemente escuro e, caso nós quiséssemos sair do abrigo improvisado em que estávamos, aquela era a melhor hora.

- Você acha que podemos ir? - Indaguei ao me aproximar.

Ela se virou em minha direção de forma um tanto abrupta e nossos olhos se encontraram. - Sim, nós podemos tentar. Mas...

- O quê?

- Mantenha-se atrás de mim.

Eu assenti com um leve aceno, coloquei minha mochila nas costas, verifiquei se minha pistola estava no coldre preso à minha cintura, segurei a enorme e pesada mochila dela pelas alças e, com alguns passos hesitantes, entreguei-a para a garota. Não sabia, contudo, se eu cumpriria a orientação que me foi dada por ela, afinal de contas a soldado aqui não era eu, o que me fazia ter maior experiência em missões de campo.

No entanto, quando a barricada foi desfeita e a porta foi aberta, no instante em que eu estava prestes a seguir em frente, ela retirou do bolso da calça duas pedras um tanto grandes e as atirou para o lado esquerdo da rua, o que atraiu todos os errantes para lá.

- Que merda você fez? - Perguntei em baixo tom.

- Tô tirando os infectados do seu caminho, exatamente porque eu sabia que você seria teimosa o bastante pra não me escutar. - Ela me respondeu em um sussurro provocador. - Agora vá, eles já estão todos fora do quarteirão em que você vai passar.

Afastei-me dela, sem sequer me despedir ou agradecer. Não achava que tínhamos algo mais a ser dito, porque todos os encontros que nós tínhamos eram de um desgaste bastante intenso. Caminhei agilmente em direção à base militar em que eu residia e só olhei para trás quando estava bem distante.

Notei Abby enfrentar a horda de errantes de modo feroz, eliminando-os com golpes violentos nas cabeças deles, tudo com muito sangue, exatamente como ela gostava de agir no pós-surto.

Assim que cheguei ao local, após cerca de 15 minutos de uma corrida constante de minha parte, cumprimentei os soldados que estavam de guarda, sem aguardar que eles me saudassem, e me afastei em direção à enfermaria. Eu sabia que precisava de um curativo mais reforçado em meu supercílio que continuava a sangrar, além de verificar como Jennifer, Nicolle e principalmente as crianças estavam.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022