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Capítulo 4 – Estrelas da Noite
Abby
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Um ano antes
Minha irritação havia atingido o pico quando obtive a informação, repassada via rádio por soldados pertencentes ao meu grupo, de que militares Survivalists invadiram East Beach. Cerrei os punhos e esmurrei a mesa do casarão em que alguns dos homens e mulheres comandados por mim se encontravam, tomando como clara afronta o avanço dos indivíduos comandados por Meg Butler.
- Vocês permanecerão aqui, Henry e Soph. - Declarei, após instantes de um silêncio tenso em que eu refletia acerca dos passos seguintes que daríamos. - Não vou arriscar ao colocá-los pra atuar em uma emboscada.
- Abby, com todo respeito... Estamos lutando contra eles há praticamente um ano sem obter resultado algum... Você acha tão importante assim que nós retomemos a praia? - Sophia indagou.
- Sim. - Minha resposta foi curta e definitiva. Aquele tinha sido um ponto relevante para mim desde a formação do grupo que eu liderava, o qual contava com pouco mais de 200 integrantes – dos quais 120 eram soldados que desertaram. Eu jamais admitiria que nenhuma outra facção – não importava qual fosse –, acabasse por pisar em um dos poucos locais que podia chamar de meu. - Oliver, António, Armand, Esther, Nick e Allan... Todos comigo do lado de fora. Agora! - Ordenei ao me levantar. - Vamos aproveitar que vai anoitecer pra pegá-los desprevenidos na saída da praia.
- Mas e se eles optarem por não deixar o local, senhora? O que quer que façamos? - O rapaz de descendência cubana me indagou.
- Se eles demonstrarem tamanha ousadia... Nós iremos à caça, António. Mataremos cada um deles sem hesitar. - Respondi, antes de me voltar para todos que ali estavam presentes. - Não se esqueçam de que até hoje não obtive respostas sobre a morte de meu irmão, assim como vocês todos não souberam por que perderam parentes não infectados. Há um indicativo de que a vagabunda da cabo Álvarez tá envolvida nisso, mas não sabemos até que ponto ela não cumpre ordens que venham da sargento Butler. E até que tenhamos certeza do que tá acontecendo, nós não faremos nenhum avanço no território deles, mas não permitiremos que eles invadam a área litorânea que ocupamos. Entendido?
Todas as 16 pessoas que estavam no casarão me acenaram em concordância, antes que o grupo de seis integrantes escolhido por mim me acompanhasse até o lado de fora. Em uma rápida olhada no relógio vi que passava um pouco das oito da noite, o que eu considerava como o momento perfeito para um ataque que inicialmente seria furtivo, porque se havia uma coisa que eu ensinei e muito bem a todos os meus soldados era a andar pelas sombras e a não se deixar atacar por contaminados que eram maioria nas ruas de Galveston e, muito provavelmente, de tantas outras cidades não somente dos Estados Unidos.
Eu ia à frente no intuito de indicar o caminho a eles. Limpava as ruas ao matar contaminados sem um pingo de remorso. Estrangulava-os habilmente e sentia seus corpos inertes caírem um a um, somente para que dois de meus soldados, dessa vez Allan e Esther, pudessem incendiar os cadáveres ainda frescos ao jogar gasolina e atear fogo.
E era dessa maneira, sem a obtenção de uma cura milagrosa, que eu acreditava que organizaria a cidade. Poderia levar meses ou até mesmo anos, mas com esforço e com dedicação eu tinha absoluta certeza de que alcançaríamos nossos objetivos: livrar Galveston de seres contaminados e, além disso, desmascarar o grupo que insistia em nos combater.
Tão logo adentramos East Beach, ouvimos o lúgubre silêncio como resposta. Era como se não houvesse mais ninguém na área litorânea, ainda que eu não me mostrasse totalmente convencida disso. Eu estava prestes a me voltar para meus soldados, que se postaram em fila às minhas costas, com a finalidade de ordenar que não abaixassem a guarda, quando um forte estrondo fez com que, por puro instinto, eu me jogasse na areia e buscasse cavar o máximo que pudesse para me esconder.
Enquanto eu tentava de tudo para ficar o mais invisível que conseguia, observei pelo canto do olho a cabo Álvarez deixar a praia em disparada, enquanto escutava ela anunciar, via radiocomunicador, que a operação tinha sido um sucesso. Eu não precisava saber por quê.
Afinal de contas, pela grande quantidade de sangue espalhada, eu sabia que havia perdido todos os meus soldados com apenas uma explosão de uma maldita granada de mão, que por pouco não me atingiu mortalmente, também.
Se a investida tinha sido um sucesso, eles provariam o quanto estavam errados. Sem me reerguer, retirei de dentro da mochila um rifle de caça que eu encontrei em uma de minhas saídas para explorar prédios juntamente com Sophia e, após observar pelo escopo, percebi que a mais de 200 metros à frente havia um pequeno grupo de cinco Survivalists que vigiavam o entorno com seus binóculos, os quais eu poderia alvejar sem nenhum tipo de impedimento.
Com esse intuito em mente me arrastei e me agachei perto de uma árvore, ainda na praia, ao usar a vegetação crescida a meu favor. Em seguida segurei o fuzil muito lentamente, além de dar uma rápida olhada para o que sobrou dos corpos dos cinco soldados que eu tinha trazido para a missão e respirei fundo.
Meu vingativo contra-ataque se tratava de uma resposta clara às mortes deles, por isso não hesitei quando efetuei quatro disparos, um para cada cabeça que despontava para mim, através do brilho da lua, ampliado pela mira do rifle de longo alcance que eu portava.
- Não! Pelo amor de Deus! Eles são a minha família... É tudo que me resta!
Ouvi o grito desesperado de uma jovem de cabelos curtos e loiros pertencente aos Survivalists, que havia se agachado para conferir se aquelas pessoas as quais referiu como 'minha família' tinham morrido e dei de ombros. A julgar por minha perícia em atirar, não restava dúvidas de que os tinha matado e, no que me dizia respeito, como eu também perdi soldados ao tentar retomar a praia, não senti nenhum remorso por minha atitude.
Em seguida preparei o rifle para um quinto disparo que colocaria um fim à existência da jovem que chorava de maneira descontrolada. Porém, no segundo em que eu atiraria, senti um forte baque em minha nuca que me desequilibrou e fez com que eu caísse de lado, embora eu estivesse agachada.
- Puta merda... - Eu gemi de dor e de surpresa. Fechei os olhos por poucos instantes e respirei fundo, quando uma voz bastante conhecida os fez se abrirem automaticamente.
- Que merda! Você não vai matar ela. A garota acabou de perder toda a família dela de uma vez só!
Eu ri amargamente ao vislumbrar a pedra que me atingiu. Em seguida joguei minha mochila na areia e olhei para meu rifle, que tinha sido arremessado com a força do golpe que me levou ao chão. - Ei, sargento, por acaso parece que me importo? - Rosnei entredentes.
- Não. Você perdeu sua humanidade... Não há nada de bom aí dentro, soldado Robinson... Não importa o quanto você tente se convencer de que suas motivações são benéficas, porque elas não são. - Ela proferiu, ao se aproximar velozmente de mim. - Se fossem, você não teria matado meus pais e meu irmão!
Fiquei imediatamente ofendida ao ouvi-la proferir aquilo e me coloquei de pé, ao fazer um movimento para partir para cima dela. - Você... Acha que o que faz... É importante, não acha? Mas... Você faz... Exatamente a mesma coisa que eu! - A cada palavra minha eu a acertava com um soco, mas também recebia um em resposta. Por mais que ela não fosse grande e forte como eu, tinha de admitir que a sargento sabia e muito bem lutar.
- Eu não mato gente inocente, porra... - Ela rosnou ao me derrubar com outro golpe na cabeça.
- Quem é mais inocente, hein? Meus soldados que foram dilacerados por uma granada, ou os seus, que morreram a tiros?
Eu tinha dificuldades de falar, porque ela tentava me estrangular com as próprias mãos. Seus olhos castanhos escuros brilhavam perigosamente em minha direção com uma raiva que, de tão palpável, podia ser notada a quilômetros de distância. Mas eu não me renderia facilmente. Por esse motivo quebrei o dedo indicador de sua mão direita ao segurá-lo e torcê-lo com toda força, já que sabia que ela era destra e, dessa maneira, a prejudicaria no embate que tínhamos acabado de começar.
Butler gritou de dor e de surpresa, mas largou meu pescoço e, em resposta ao meu ataque, socou-me o rosto com a mão esquerda com tanta violência em resposta, que me fez sangrar. Eu queria arrancá-la de cima dos meus quadris, no entanto ela fazia muita força para permanecer na mesma posição e continuar a me agredir, que tudo que pude fazer ao contra-atacar foi socá-la de volta.
Finalmente consegui arquear os quadris o suficiente para inverter nossas posições, embora não conseguisse permanecer por muito tempo em cima dela, porque ela impediu meu movimento ao me acertar com uma cotovelada no nariz.
Por instinto levei uma de minhas mãos ao local que sangrava profusamente, no entanto não me abstive de persegui-la, principalmente porque cogitei que ela pretendia pegar meu rifle.
Consegui desequilibrá-la com uma rasteira e, embora o golpe a atingisse em cheio, eu sabia que ela não se daria por vencida, nem mesmo quando montei em seus quadris para golpeá-la no rosto com fúria.
- Você vai ou não vai confessar?
- De que merda você tá falando, garota? - Ela retrucou ao me indagar, segurando com força um de meus punhos para que eu não continuasse a feri-la.
- Do assassinato de Ronnie, porra! Ele tinha somente cinco anos e foi fuzilado... Você sabe disso e não fez porra nenhuma pra descobrir quem ordenou essa merda!
- Você não tem moral pra cobrar nada relativo a nenhum crime... - Butler rosnou, ao segurar meu outro pulso com igual determinação e força, enquanto eu tentava me soltar ou sair da posição em que estava. - Não depois de tudo que aconteceu nesse último ano.
- O quê?
- É isso mesmo... Você acabou de matar a família inteira de uma jovem soldado sem nem sequer hesitar, por exemplo. Não foi somente você quem perdeu pessoas, Abigail! Aceite isso de uma vez por todas e supere! Pare de assassinar pessoas que nada tem a ver com o que houve com seu irmãozinho!
- Digo o mesmo pra você... Supere! Porque eu massacrei sua mãe e seu irmão com um sorriso na minha cara, sua cretina de merda! - Retruquei, ainda que estivesse deixando o ódio falar mais alto ao proferir aquilo, antes de cuspir em seu rosto, enquanto continuava a tentar me libertar de seu aperto.
Como a sargento soltou um de meus pulsos para tentar rolar de lado, facilitei sua ação ao sair de cima dela e, instantes mais tarde, logo que nos colocamos de pé, voltamos a lutar pelo que achávamos ser certo. Embolamo-nos e trocamos duros golpes, ao mesmo tempo em que o furioso mar de Galveston começava a nos atingir com suas ondas, embora estivéssemos à beira-mar.
No entanto, no momento em que pensei que seria o fim para uma de nós, porque não descansaríamos até que uma levasse a outra à morte, ouvi um choro de profundo desespero e desalento que me fez parar. Eu não conseguia mais agredir a mulher à minha frente, tampouco ela fazia qualquer movimento para me enfrentar.
Nossos olhares se cruzaram e recaíram na jovem soldado de apenas 19 anos de nome Molly Morgan, que estava de joelhos perto dos corpos de seus familiares a chorar suas recentes mortes.
Tomada de uma sensação inexplicável em meu peito, tudo que fiz foi me erguer da areia, encarar a sargento brevemente e me afastar no intuito de pegar minha mochila e meu rifle, sem sequer limpar a grande quantidade de sangue em meu rosto e de terra em minhas roupas.
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Um ano depois
Após o fatídico dia em que a encontrei, não avistei mais nenhum sinal dos Survivalists – e não era como se eu pretendesse me deparar com um dos soldados pertencentes ao grupo dela de qualquer maneira. Sabia que ela tinha chegado à base militar naquele início de tarde, porque me mantive o mais distante possível a olhar através da mira do rifle para acompanhar o retorno dela a fim de garantir que fosse ao menos seguro, após eu aniquilar os contaminados que, de modo agressivo, juntavam-se em torno da oficina, muito provavelmente com o objetivo de atacar a nós duas.
Depois de uma semana de aparente tranquilidade, em que meus comandados se depararam com um pequeno grupo de viajantes que se recusaram a ser leais a nós e que, por conta disso, tiveram o destino de sempre o qual foi escolhido por mim, optei por sair sozinha durante a noite.
Sophia insistiu em se oferecer para me acompanhar, entretanto declinei seu convite o mais gentilmente possível. Eu sentia que, por melhor que fosse ter alguém como ela por perto por se tratar de uma pessoa com um excelente astral, eu precisava ficar sozinha para colocar meus pensamentos em ordem.
Afinal de contas, desde o dia em que a sargento Butler e eu tivemos o enfrentamento que começou às proximidades de uma residência incendiada e terminou dentro de uma oficina automotiva eu não consegui ser mais a mesma, o que me irritava profundamente. Isso porque não tinha sido o embate físico que havia me desgastado, mas sim aquele que ocorreu por meio de palavras.
Eu era um tanto tímida para qualquer interação social prolongada, o que se agravou após o início do surto, em especial com a trágica morte de meus familiares. Porém, a mulher que eu odiava não tinha mudado em absolutamente nada em sua autoconfiança e em sua capacidade de comando.
Ela continuava bonita, tratava-se de uma líder em potencial, uma que eu nunca seria por mais que me esforçasse, porque ainda que eu a odiasse, não havia como eu a destruir enquanto pessoas, principalmente crianças, continuassem sob seus cuidados.
Fui em direção à praia mais próxima, embora estranhasse por considerar o caminho tranquilo demais. A maioria dos infectados não estavam nas ruas como de hábito, o que me colocou alerta.
Mas como não havia enxergado nenhuma movimentação suspeita mesmo ao olhar através da mira de meu rifle repetidamente, decidi seguir até onde pretendia a passos cautelosos.
Assim que lá cheguei abri a mochila, estendi uma toalha na areia, retirei a jaqueta preta e ali permaneci sentada. O céu estrelado e a leve brisa que soprava me acalmavam parcialmente, ainda que eu não soubesse o que me deixava aflita.
Eu não era do tipo que confiava em minha intuição porque não acreditava em superstições do gênero, no entanto, era como se algo em meu interior me avisasse que aconteceria alguma coisa relevante dentro em breve.
Então, para afastar os pensamentos inquietantes resolvi praticar exercícios. Se havia uma coisa que me fazia relaxar desde sempre era a atividade física. Sentia-me dona do meu corpo de uma maneira que ninguém jamais entenderia, como se a cada dia eu superasse meus próprios limites ao atingir uma quilometragem a mais, somente para provar que eu podia ser mais eficiente que qualquer homem.
Retirei as botas, comecei com alguns alongamentos e, quando estava prestes a iniciar minha corrida noturna, ouvi os grunhidos tão conhecedores. Porém, pelo que podia perceber não eram dois nem três infectados; havia muito mais, o que me fez bufar sonoramente.
Preocupada que Sophia tivesse desobedecido minhas ordens e houvesse insistido em me seguir, voltei a colocar minhas botas de combate e a caminhar em direção à rua. Eu estava pronta a xingá-la caso realmente fosse ela, no entanto me mostrei surpresa ao reconhecer prontamente o menino de nome Michael.
O mesmo garoto da semana anterior que havia estado preso em um porão de uma casa junto a sua irmã, aquele que havia me confundido com a sargento Butler. Eu não entendia o motivo de ele estar ali, mas só tinha um jeito de eu descobrir o porquê.
Por isso me adiantei, com o objetivo de matar as criaturas horrendas que o encurralavam. Um dos contaminados levou um murro tão violento dado por mim, que seu corpo pesado atingiu o de outra pessoa infectada que tentava se aproximar da criança, o que os fez cair ao chão de imediato.
Eu esperava que, com esse movimento de minha parte eles se voltassem contra mim e se esquecessem do pequeno Michael, e foi exatamente o que ocorreu. Outros sete contaminados que tinham muita fome – estavam sedentos por sangue –, também se voltaram contra mim.
Um deles me segurou por trás pela regata de cor escura, enquanto outro tentava se aproximar para morder meu braço. Eu insistia em economizar projéteis, até porque não sabia se havia mais inimigos nas cercanias.
Pelo sim pelo não, eu não gostaria de gastar munição exceto se fosse estritamente necessário. Com uma faca de cabo longo em mãos a qual retirei do coldre preso à minha perna, atingi a garganta de um dos contaminados, o que espirrou grande quantidade de sangue em minha roupa, ao mesmo tempo em que, com a outra mão, eu socava mais um oponente até derrubá-lo e matá-lo sem nenhum tipo de sutileza, ao pisar na cabeça dele com minha bota.
Em seguida me aproximei de Michael e arranquei de cima dele outro contaminado, somente para também enterrar minha faca no inimigo com extrema frieza e perícia, como já tinha feito antes.
Eu sempre defendia pessoas contra o que Butler chamava de errantes, fossem esses indivíduos leais a mim ou não. Porque eu não admitia que qualquer um que estivesse em minha presença acabasse servindo de refeição para aquelas coisas nojentas e malditas – exceto se a pessoa em questão tivesse cometido algum crime grave. Por isso mesmo não permiti que ela fosse morta naquele dia. Eu não costumava tratar as coisas dessa maneira. Se tinha de assassinar alguém eu fazia com minhas próprias mãos, não me utilizava de contaminados para obter qualquer tipo de vantagem.
Quando todas as criaturas haviam sido mortas por mim eu me aproximei com cautela do menino, que continuava deitado. Ele tinha um canivete em sua posse e, muito provavelmente, era apenas com aquela arma que havia se defendido dos ataques.
- Você foi mordido?
- Não.
- Você tem certeza?
- Sim, tenho certeza absoluta.
- Melhor assim. Mas o que você tem na cabeça, garoto... Por que está sozinho e ainda mais durante a noite?! - Sussurrei, ao estender a mão para que o ajudasse a ficar de pé.
- Eu queria vir ver você. Quando minha irmã e eu estávamos presos lá embaixo você foi a primeira pessoa a nos dar comida... Eu só... Queria agradecer.
Era incrível como crianças tinham a habilidade de me desarmar com um simples argumento. Eu esbocei um sorriso e caminhei de volta à praia após chutar os corpos já sem vida dos contaminados, enquanto segurava Michael com firmeza pela mão para que me acompanhasse.
- Não precisava ter se arriscado tanto pra vir até aqui. Eu me deparei com você em uma situação difícil semana passada, com sua irmã e com você. E, apesar disso, mesmo que estivesse com fome, você priorizava protegê-la.
- Claro que sim... Ela tem só quatro, mas eu vou fazer dez anos. Meu pai sempre falava que, se ele ou a mamãe morressem, era pra eu cuidar da Ruby.
- Isso não precisava ser dessa forma... Que merda. - Eu resmunguei, mais para mim do que para ele, no exato instante em que nos sentamos na toalha que continuava estendida na areia.
- O quê, os infectados?
- Isso tudo. Os infectados, pessoas inocentes como você tendo que ser qualquer coisa menos... Criança. - Eu respirei fundo para afastar as recordações melancólicas, especialmente porque ele me encarava com curiosidade genuína, algo bem típico de alguém de sua idade. - Mas me diga, onde sua irmã está?
- Dormindo a uma hora dessas. Nós temos um cômodo praticamente só nosso na casa de Alexia Álvarez e do marido dela. Não sei se você os conhece...
- Só... De vista. - Respondi de modo evasivo, principalmente porque, em certa ocasião, eu quase havia matado a mulher referida por ele ao tentar estrangulá-la em um mata-leão.
- Então... Eu soube onde fica a saída de emergência. O soldado Garcia me ensinou a deixar a base caso fosse preciso, então eu... Depois de conferir que não tinha ninguém por perto... Resolvi procurar por você. - Ele comentou, sorrindo em minha direção. - Eu fiz mal?
Michael era dono de olhos azuis gentis e de cabelos ruivos encaracolados. Tratava-se de um menino completamente desprovido de índole agressiva, o que me levava a me perguntar quanto tempo ele sobreviveria em um mundo cruel como aquele se continuasse sem ninguém a ampará-lo. Não. Eu não queria nem podia pensar dessa forma tão pessimista. Não me passava pela cabeça que Butler permitiria que ele fosse morto.
- Não... É claro que não fez, garoto. - Respondi, ainda surpreendida pelo que havia sido dito por ele. - Mas... Você apenas correu grande risco ao vir me procurar. Não sei se eu valho a pena.
- O que você fez por Ruby e por mim me mostrou que sim. Você nos deu comida quando mais precisávamos. Além disso... A gente gostou de você.
Sua resposta sincera me fez rir de leve, embora não fosse um riso de alegria. De certa maneira ele me lembrava meu próprio irmão e o peso da culpa me esmagava implacavelmente, toda vez que me recordava que Ronald tinha morrido de modo estúpido.
- Tudo bem então. Mas como você pretende voltar sem que vejam você?
- Vou entrar pela mesma porta que eu saí, ora!
A resposta óbvia dele me fez esboçar um sorriso. - Isso eu sei, gênio.
- Mas então?
- O que quero saber é: como você vai fazer pra retornar, sendo que a noite é cheia de contaminados vagando pelas ruas?
Michael permaneceu calado por alguns minutos como se não soubesse o que me dizer, então ele olhou para mim e finalmente falou: - Eu realmente não sei... Mas vou dar um jeito.
- Vai nada. - Ergui-me e estendi a mão para ele, a fim de que também ficasse de pé. - Você vai é voltar comigo, isso sim.
- Quando... Agora?
- Mas já que você está aqui... - Tornei a falar, ignorando seu questionamento. - Nós vamos correr na beira da praia. Você quer?
- Nós... Vamos? - Ele me encarou de modo sorridente, talvez porque jamais alguém o tivesse convidado para uma atividade ao ar livre nos últimos dois anos.
- Sim. Eu vou com meu rifle e a faca. Ok? - Apontei para meu ombro e minha perna, respectivamente, como a indicar as armas que levaria para nos defender, caso nos deparássemos com algum contaminado.
- Sim! - Ele falou com empolgação.
Caminhamos em direção à beira do mar para que nos aquecêssemos e, quando lá chegamos, ele e eu disparamos. O menino era muito ágil, principalmente pela pouca estatura, o que fazia com que eu me esforçasse a ser cada vez mais veloz em meus passos para poder acompanhá-lo. Era incrível como crianças tinham energia de sobra e, por esse motivo, eu simplesmente adorava treinar com elas.
Fazia-me recordar das diversas ocasiões em que Ronnie e eu corríamos, porque quando ele não estava indisposto, os médicos afirmavam que exercícios físicos seriam importantes aliados para um reforço na saúde dele. Como nossos pais não tinham tamanha energia, eu me colocava a disposição para acompanhá-lo sempre que possível.
E essa recordação era muito mais saudável e feliz do que o corpo frágil dele coberto por projéteis. Ele era apenas uma criança não infectada, não tinha nenhum motivo para morrer fuzilado daquela maneira monstruosa.
Dei um último sprint para que conseguisse chegar na frente do garoto, já que estávamos nos últimos cem metros de corrida. E apesar de todo esforço, fui recompensada ao conseguir alcançar meu objetivo, fato que o fez sorrir abertamente para mim, quase como meu irmãozinho também fazia quando eu ganhava.
- Suas pernas são enormes e você é forte demais, então você vai ganhar sempre e... Isso não vale! - Ele comentou em um leve tom de reclamação. - Mas eu... Gostei de ver você vencer.
Engoli em seco ao ouvi-lo proferir aquilo, porque definitivamente as coincidências não paravam de acontecer. Ronnie também me falava a mesma coisa e, com a mera lembrança, não consegui conter as primeiras lágrimas, embora as afastasse com alguma exasperação.
- Você... Corre muito bem, sabia? Se treinar diariamente vai ficar cada vez mais veloz. - Eu comentei, em uma tentativa desesperada de fazer com que ele não notasse que eu chorava.
No entanto, crianças tinham uma percepção bastante aguçada, eu devia me lembrar disso. - Você tá triste? - O tom dele era de preocupação sincera. - Foi com a corrida, ou é porque eu vim ver você?
- Não, não tem nada a ver com você ter vindo até aqui.
- Então o que é?
- É que meu irmãozinho de cinco anos... Também me falava exatamente a mesma coisa que você me disse ainda pouco, sobre gostar de me ver ganhar.
- Você disse falava...
- Ele morreu. - Respondi enquanto prendia a respiração e afastava mais lágrimas. - Foi morto logo no início do surto.
- Não foi Meg que o matou, não é? Porque ela é uma pessoa boa...
- Não, não foi. - Preferi responder, embora não tivesse certeza. Evidentemente que Butler não seria capaz de fazer mal a alguém inocente, mas mesmo assim, como não tinham aparelhagem o suficiente para testar possíveis contaminados, eu temia que a ordem de execução tivesse partido dela.
Independentemente disso, não seria certo eu levantar falsas suspeitas e, com isso provocar algum tipo de desconfiança; Michael e Ruby estavam seguros na base militar coordenada pela sargento, então eu não colocaria dúvidas na cabeça do garoto.
- Eles dizem que você é perigosa. Mas eu não concordo. Você não me trata mal.
Eu continuei a olhar para o menino à minha frente. Estávamos parados à beira-mar em uma noite estrelada e, mesmo que eu tivesse de retornar e que precisasse organizar o ordenamento do dia seguinte, com as tarefas a serem executadas por meus homens e mulheres, eu não queria ir.
Michael fazia com que eu me lembrasse de quem eu era antes do surto, fazia com que eu percebesse que podia voltar, ainda que por poucos instantes, a agir como a pessoa gentil que meus pais me ensinaram a ser.
- Quem diz isso a meu respeito?
- Todos eles... O soldado Garcia, a cabo Álvarez, o John... Até mesmo os doutores Foster.
- Eles estão certos.
- Como pode? Você é tão legal comigo!
- É porque você é alguém inocente no meio dessa porra toda.
- Mas eu já matei infectados.
- Mesmo?
- Sim.
- Quantos?
- Dois. - Contou ele, orgulhoso. - Foi pra proteger a Ruby.
- Viu só? Você teve um excelente motivo pra fazer o que fez. - Eu argumentei.
- Você também deve ter tido, ora essa!
- É o que você pensa?
- Claro! Não importa o que me digam... Você não é uma pessoa ruim... Abby.
- Como sabe que... Que prefiro ser chamada assim? -
Perguntei, enquanto enxugava meus olhos, que insistiam em lacrimejar.
- Porque Meg me contou. - Ele fez uma curta pausa, deu um risinho discreto e voltou a falar. - Ela também disse que você é muito bonita. Mas que vocês duas têm problemas.
- Ela... Ela disse?
- Sim. - Ele me observou com atenção crescente. - Você também a acha bonita, Abby?
Suspirei, visivelmente desconfortável frente ao sorriso que ele exibia. - Você gosta de fazer muitas perguntas, hein garoto?
Ele apenas riu em resposta. - Eu acho que isso é um sim, não é?! Então vou contar pra ela!
- Isso, na verdade, significa que você tem que correr até onde deixei a toalha e a jaqueta antes que eu comece a fazer cócegas em você! - Eu exclamei, em uma tentativa desesperada de mudar de assunto, pouco antes de dar os primeiros passos.
Eu já tinha recebido uma dose suficiente de emoção para aquela noite, então conversar a respeito da sargento líder dos Survivalists era a última coisa que eu pretendia ou que gostaria de fazer.
Por esse motivo corri o mais rapidamente que pude, ainda que quisesse deixá-lo ganhar e, exatamente como eu fazia com Ronnie, permiti que ele passasse à minha frente. Assim que paramos perto da toalha eu o peguei em meus braços com firmeza e passei a girar em círculos, o que o fazia soltar gritinhos felizes.
- Não. Você não é alguém ruim. Não pode ser... - Ele comentou, mais para si próprio do que para mim, tão logo eu o soltei.
- Nós podemos discutir isso outro dia. - Eu respondi, antes de abrir a mochila para beber água de uma garrafa que portava. - Agora... Eu tenho que levar você até a base militar.
- Nem pensar. Se eu vim até aqui, eu sei voltar sozinho. - O menino rebateu, depois de também sorver um pouco de líquido, já que eu havia alcançado a garrafa para ele.
- Você sabe, claro, mas eu já falei... A noite é cheia de perigos e, se tem uma coisa que não quero, é sua morte em minhas costas. Vou levar você até a frente da base, isso não tá em discussão.
- Mas eles têm soldados de guarda...
- Não tem problema. Eu lido com isso quando chegar o momento certo. Digamos que... É algo que adultos se preocupam e que têm de resolver.
- Eu não quero que você se machuque por minha causa.
- Eu não vou, confie em mim, garoto.
- Tá bem, mas eu quero poder voltar pra ver você amanhã, com autorização ou não.
Tornei a engolir em seco novamente. - Uma coisa de cada vez, moleque...
Então, eu dei um risinho contido antes de jogar a toalha e a jaqueta dentro da mochila, além de dar um leve tapinha nas costas dele e de apertar seu ombro em resposta.
Após pendurar o rifle no ombro de novo, checar se a munição da pistola era suficiente para o trajeto que faríamos e conferir se a faca estava no coldre em minha perna, joguei a mochila em minhas costas e partimos em direção à base sobrevivencialista.
Durante o caminho nós conversávamos descontraidamente, em especial porque não tínhamos nenhuma criatura infectada a nos interromper. Ele me contou que seus pais vieram de Dallas após terem fugido de um grupo escravocrata que atuava por lá. Eu referi que já sabia que havia essas organizações e que também tinha conhecimento de que o mesmo grupo tentava tomar outras regiões do Texas.
- Você tem medo de que eles venham pra cá?
- Não. Eles não se atreveriam a vir, não com Meg Butler por aqui. - Eu respondi convicta, enquanto nós caminhávamos.
- Bem, eles dizem o mesmo lá na base, mas referem que os escravocratas não vão querer combater você.
- Eu não sou tão boa de briga como ela é.
- Você é alta e musculosa. - Argumentou ele, como se somente isso bastasse em uma luta.
- E ela é ágil e perspicaz. - Eu rebati.
- Eu não quero ver vocês duas brigando, sabe. Acho que podiam unir seus povos.
- Isso seria impossível.
- Por que?
- Porque há pessoas que estão do meu lado que jamais se uniriam aos Survivalists além de mim, claro.
- Então... Eu posso mudar de assunto? - Perguntou-me ele, assim que dobramos na rua em que se situava a base militar.
- Claro que sim. Nós podemos falar sobre o que você quiser.
- Eu quero ter um apelido, como você. Meu nome é tão comprido como o seu... Eu não gosto disso.
Eu ri de leve e acenei com a cabeça na direção dele. - Ok então, Mike.
- Uau, obrigado, Abby! - Ele exclamou e, tão logo me abaixei ele beijou minha bochecha em um gesto de carinho, antes que nos aproximássemos do portão da base.
- De nada, criança. - Eu ri.
Assim que demos nossos últimos passos eu permaneci calada, agachada perto de uma árvore, até que ele fizesse contato com os soldados. O menino explicou que tinha fugido pelos fundos e que uma horda de infectados o assustou tanto que ele decidiu regressar correndo, ao que um dos homens de nome Peter assentiu, pedindo que a criança não fizesse mais nenhuma travessura.
Os quatro guardas abriram o portão para que Michael pudesse entrar e, quando julguei que eu poderia ir embora sem derramar nenhuma gota de sangue ao me certificar de que ele estava em segurança, os outros três soldados correram e me cercaram antes mesmo que eu pudesse sair.
Eu não tive tempo hábil para alcançar meu rifle nem minha pistola, que foram agilmente roubadas por dois deles, enquanto um terceiro me segurava com dificuldade para que pudesse pegar minha mochila. Michael gritava quase de maneira suplicante, ao referir que estávamos juntos na praia, mas nenhum dos sujeitos acreditou no que havia sido dito por ele.
Eu, por outro lado, tentava tudo que sabia para me defender. Acertei um soco no nariz do homem que me segurava, antes que eu conseguisse pegar a faca no coldre em minha perna.
No entanto, ao ouvir os pedidos desesperados do menino para que eu não matasse aquelas pessoas, simplesmente não consegui continuar a reagir, por mais que eu quisesse.
Era como se eu escutasse meu próprio irmão a me solicitar que parasse de derramar sangue inocente, porque me vingar ao vitimar outras pessoas não faria com que eu me sentisse melhor ou menos culpada pelo que aconteceu com ele dois anos atrás.
De qualquer forma, fosse pelo que fosse eu fraquejei tempo suficiente para que aqueles três homens começassem a me bater, ainda que o garoto insistisse em pedir que eles não fizessem aquilo. Mas aparentemente nenhum deles estava disposto a atender, tanto que Peter se afastou com Michael, para levá-lo até a casa em que Ruby e o menino moravam agora.
Os sujeitos amarraram meus pés e algemaram minhas mãos, mesmo que conseguissem fazer aquilo com muita dificuldade já que eu tentava resistir de todas as maneiras conhecidas. Eles eram idiotas, mas eram agressivos e estavam armados; eu não pretendia morrer em uma luta estúpida sem sentido, então apenas permaneci calada e não esbocei qualquer reação enquanto eles me arrastavam para uma sala que ficava perto da saída.
Pude ouvi-los falar entre si em cogitar tentar obter informações, ambos argumentavam que a sargento Butler ficaria feliz em saber que eles tinham prendido a líder dos Tigers e, enquanto isso, eu tentava soltar meus pés das amarras. Entretanto, antes mesmo que eu conseguisse fazê-lo, dois homens que me arrastaram até ali, James e Edgar, vim a saber depois, adentraram o pequeno e mal ventilado cômodo.
Eu descobri os nomes deles porque ambos me disseram. Os dois me fizeram uma série de perguntas e, quando notei que estavam perdendo a paciência por conta do meu silêncio constante, planejei mostrar a sargento Butler que nem todos os soldados que compunham seu grupo eram tão bons em serem corteses como ela era.
- Aquele menino mentiroso disse que vocês correram na praia, que conversaram e tudo mais... Por acaso você o feriu até que ele inocentasse você? - James quis saber.
Eu não falei nada porque não havia o que eu respondesse que faria com que os dois sujeitos acreditassem em minha palavra, mesmo que eu negasse com veemência. Então, quando Edgar mencionou se divertir comigo por conta de minha beleza, mesmo que, segundo ele próprio, eu tivesse músculos demais, tudo que fiz foi cuspir em seu rosto e mandá-lo se foder, de tão enojada que me sentia.
Minha reação o deixou furioso e, juntamente com James, eles me agarraram à força e me deitaram em uma maca no centro do cômodo. Eu sabia muito bem o que aquilo significava: que a tortura iria começar. No entanto, para mim, tudo que importava era que Michael estivesse seguro e nada mais.