Capítulo 5 Comando

Capítulo 5 – Comando

Meg

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Dois anos antes

Era inacreditável como a estrutura aparentemente sólida que mantinha a sociedade organizada havia ruído em pouco tempo não apenas nos Estados Unidos da América, mas sim também no mundo inteiro, já que as notícias que chegavam, mesmo que não fossem muitas, davam conta de haver desordens generalizadas nas mais diversas cidades, em praticamente todos os países do mundo.

Desde que o status da situação atual evoluiu de epidemia para pandemia nós sequer tínhamos tido um minuto de sossego. Eu não sabia o que significava ter uma noite bem dormida desde que havia regressado para minha cidade natal, haja vista que tarefas e mais tarefas se acumulavam em meio à incessante chegada de sobreviventes desesperados que imploravam por abrigo e por auxílio, o que me levava a descansar duas horas por noite ou três, quando muito.

Há quatro dias que eu contava com a inestimável ajuda da cabo Alexia Álvarez para uma melhor organização das medidas que precisavam ser tomadas, até porque eu tinha acabado de enterrar meu irmão e meus pais.

Martin e minha mãe foram covardemente mortos a pauladas por uma soldado que, há poucos dias, havia sido considerada desertora pelas poucas pessoas de patente superior que até o momento tinham sobrevivido. Quanto ao meu pai, ela o tinha matado com um tiro no peito certamente para vingar o ocorrido com o irmão caçula dela, foi o que me relatou Alexia.

De qualquer maneira, pouco a pouco a sociedade que conhecíamos passava por uma desintegração irreversível e nós não tínhamos autoridade o bastante para contê-la; as leis não eram mais obedecidas por praticamente ninguém que estivesse sozinho ou em pequenos grupos.

Controlar o que restou da população se tratava de uma tarefa praticamente impossível, haja vista que pequenos bandos de saqueadores invadiam qualquer ambiente onde achassem que houvesse suprimentos à disposição e, em meio a isso tudo, nós ainda precisávamos compreender como agiam os indivíduos que se transformavam em uma espécie agressiva, que objetivava apenas se alimentar de nós.

Eu me encontrava em uma sala da pequena base militar improvisada que nós ocupávamos, que se situava perto da entrada do edifício de dois andares e, ao escutar um estrondo alto e a voz de alguém a me chamar, reconheci-a prontamente. Tratava-se da assassina de meu irmão e de meus pais, a garota responsável, também, pela morte do tenente Roger Ortega.

Sedenta por fazer justiça pelas pessoas que julgava terem sido injustamente mortas eu deixei o cômodo e corri em direção à jovem de 21 anos que, com um rifle em mãos, ordenava à cabo Álvarez que trouxesse o corpo de Ronald Robinson – menino de cinco anos que eu sabia que havia sido morto por suspeita de infecção há cerca de algumas horas.

- Eu quero pelo menos poder me despedir dele, porra... Poder enterrá-lo junto com meus pais, que eu soube a pouco que dois soldados babacas pertencentes ao grupo de vocês os fuzilaram também, sabe-se lá por ordem de quem!

- Seus pais estavam contaminados, eu sinto muito por isso. - Apressei-me a responder, ao parar em frente à ela. - Quanto a quem deu a ordem de execução dos dois, Edward e Janice Robinson... Fui eu. - Completei com raiva, ao cruzar os braços em frente ao peito. - E sobre você se despedir do garotinho... Também não tive a oportunidade de falar com meu irmão e com meus pais antes que você os matasse, Abigail.

- Foda-se as suas razões. Você não sabe de porra nenhuma do que aconteceu. Ronnie tinha apenas cinco anos! Eu falei que ele não tava doente e... Tudo que vocês fizeram foi ignorar! E eu só gostaria de saber por quê! E quem foi a pessoa que mandou matá-lo!

Apesar de não ter sido eu quem ordenou a execução do menino, sem nenhum tipo de cautela eu parti para cima dela com a finalidade de derrubá-la, de prendê-la e de puni-la por seus crimes. Pega de surpresa pelo meu movimento a garota tentou me atingir na cabeça com a parte de trás do rifle que carregava, no entanto eu fui mais ágil; consegui desarmá-la e joguei a arma dela ao chão para que nós lutássemos de igual para igual, até que a cabo Álvarez conseguisse nos separar, com o auxílio de John Foster e de outros três soldados, que prontamente se interpuseram em nosso caminho.

- Eu ainda vou matar você, Abigail. - Eu prometi.

- Mal posso esperar pra ver você tentar. - Ela retrucou, desafiadoramente.

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Dois anos depois

Eu havia tido um desgastante dia a treinar diversos de meus soldados em inúmeras simulações de campo, em tarefas de resgate, de combate e de evacuação. Tinha dividido o grupo de 240 homens e mulheres para que realizassem as atividades, o que tomou toda manhã e grande parte da tarde, porque eu julgava que precisávamos nos preparar melhor para qualquer tipo de emergência que nós viéssemos a ter.

Afinal de contas, um grupo desconhecido e violento controlava Houston e, como eu estava constantemente de olho na movimentação dessa facção, não gostaria de ser pega desprevenida com qualquer avanço que eles pretendessem fazer.

Assim que o período de treinamento havia terminado, tomei um banho e me dirigi ao refeitório para que jantasse, em meio a diálogos descontraídos com a cabo Álvarez e com as crianças recém-chegadas, Ruby e Michael, que estavam hospedados nos amplos cômodos localizados no terceiro andar, que John e ela compartilhavam.

Depois disso me dirigi para o meu quarto, afinal de contas eu precisava descansar. Eu pedi que fosse chamada apenas se uma situação emergencial se apresentasse, o que ocorreu horas mais tarde enquanto eu folheava meu diário e relembrava os dias posteriores à morte de meus familiares.

Minha colega tinha a chave do cômodo que eu costumava ocupar, porque eu podia estar dormindo quando alguém precisasse de uma orientação mais específica, então Alexia poderia entrar em meu quarto e me acordar. E foi o que aconteceu quando senti o leve toque em meu braço, já que eu estava distraída a ler, com apenas uma lamparina acesa.

- O que foi? - Eu indaguei em um leve resmungo, já que tinha acabado de trocar de roupa para que ficasse mais confortável.

- Preciso que você venha comigo.

- Tem que ser agora... É tão urgente assim? - Eu novamente resmunguei, visivelmente exausta, ao fechar o caderno.

- Sim, infelizmente sim. Sinto muito por isso... Não pretendo incomodar você. - Ela deu um risinho sem jeito.

- Tudo bem, vamos lá.

Eu suspirei levemente ao mesmo tempo em que saía da cama. Não quis trocar de roupa uma vez mais, até porque a expressão dela parecia de extrema preocupação. Então deixei o quarto vestindo apenas a calça de moletom azul clara e a camiseta de mesma cor, sem realmente me importar que não fossem trajes tipicamente militares.

- Preciso que você converse com Michael.

- Por que? E por que diabos isso tem que ser agora? Alexia, eu acho que passa da meia noite e...

- Porque aquela aberração tava na praia com ele.

Eu bufei sonoramente ao ouvir aquele termo. - Você tá se referindo à Abby, não é?

- Sim. A quem mais eu costumo me referir assim?

- E como sabe que ele não inventou essa história?

- Porque três dos nossos soldados a estão mantendo à força na sala onde guardamos armas brancas.

- O quê!? Que porra é essa! - Eu exclamei, visivelmente irritada e porque não dizer surpresa.

- Jimmy e Edgar estão tentando obter dela o real motivo pelo qual se aproximou do menino, mas até agora ela não disse merda nenhuma. Eu autorizei que eles fizessem o necessário para extrair a informação dela.

- Certo... Faça o seguinte então: vá pro seu alojamento, deixe-me cuidar disso do meu jeito.

- Mas Meg... Seria o que você faria logo que os seus pais e o primeiro sargento Martin foram mortos... E seria exatamente o mesmo que ela faria, sem hesitar, se tivesse raptado você.

- Isso não interessa... Porra. E diferentemente do que você acha, eu não tenho por hábito compactuar com flagelar pessoas, mesmo que seja ela e você sabe perfeitamente disso.

Como nós estávamos no último andar da base, apressei-me a descer as escadas com a cabo Álvarez atrás de mim. Ela me chamava constantemente para atrair minha atenção para si por pretender prosseguir com nosso diálogo, o que começava a me irritar; eu sabia que minha colega estava preocupada comigo e com as atitudes que eu poderia tomar a seguir, entretanto, eu não gostei do fato de ela ter autorizado os soldados a fazer o que fosse preciso para extrair informações de Mary Abigail Robinson.

Há exatos dois anos que minha relação com a líder dos Tigers era bastante conflituosa; eu temia que, se as pessoas comandadas por mim encostassem um só dedo nela, as coisas poderiam piorar de maneira a que não conseguíssemos mais cogitar haver qualquer tipo de trégua entre nós duas.

- Meg...

- Leve Michael até a sala onde a estão mantendo presa agora mesmo.

- Mas eles a estão torturando e ele é uma criança... Não posso expor o garotinho a uma coisa dessas!

- Eu sei perfeitamente o que eu tô fazendo, Alexia, também sei quais riscos eu tô correndo ao tomar essa decisão. Mesmo assim, faça o que eu ordenei.

Ela assentiu e, sem alternativas, rumou em direção aos cômodos que ocupava junto ao seu marido e às crianças, ao mesmo tempo em que eu caminhava às pressas até a sala a qual eu sabia exatamente onde se situava, por conhecer a base de trás para frente.

Eu jamais havia precisado usar a força contra qualquer pessoa até então, porém, eu imaginava que se algum dia meus soldados quisessem fazê-lo, eles pediriam minha autorização. Se ainda não havia ficado claro que decisões de extrema importância como essas teriam de ser tomadas única e exclusivamente por mim, eu começaria a fazer o necessário para que meu comando fosse plenamente levado em conta por todos sem exceção.

Até porque, embora nenhum dos homens e das mulheres sob meu comando soubesse o que havia acontecido semana passada quando eu fui ajudada por ela – nem mesmo os mais próximos a mim –, o fato de que eu tinha sido auxiliada por Abby quando ficamos cercadas por errantes me fazia sentir uma espécie de gratidão silenciosa e, com certeza, se ela viesse a acreditar que a ordem para torturá-la e para fazê-la falar tinha partido de mim, os escassos passos que nós duas demos em direção a um convívio pacífico entre nossos grupos seriam definitivamente um desperdício de tempo.

Por esse motivo eu tinha solicitado à cabo Álvarez que buscasse Michael o quanto antes. Porque eu sabia que crianças tinham o inegável poder de acalmar a líder dos Tigers e, quando eu soltasse Robinson, precisaria atuar conjuntamente com o menino, caso contrário a mulher mais forte poderia vir a matar meus soldados ali mesmo em represália, o que me forçaria a tomar uma atitude que eu não desejava, exceto quando a raiva pelas brutais mortes de meus familiares me dominava.

Assim que eu abri a porta da sala que tinha as paredes revestidas com espuma acústica, deparei-me com a visão que tanto temia: Jimmy, um de meus comandados, utilizava uma faca de cabo longo para rasgar o músculo do braço dela de modo vagaroso. A dor devia ser lancinante, porém a garota não emitia um som sequer, para meu completo espanto.

- Que merda tá acontecendo aqui?! - Eu indaguei, visivelmente furiosa ao vê-la amarrada à maca como se fosse um animal selvagem, com diversos ferimentos que precisavam de cuidados médicos. - O que vocês, seus dois idiotas, pensam que estão fazendo?!

Os soldados me encararam com visível assombro, embora não fizessem a menor menção de soltá-la, somente a olharam com desdém, fato que não escapou a minha percepção. - Senhora, nós a encontramos perto de um garotinho que devia estar em nossa base. Ele jurou não ter sido machucado por ela, então nós resolvemos, com a anuência da cabo Álvarez, amarrá-la aqui e...

- Cale a boca, Edgar. E você e seu amigo saiam dessa porra de cômodo agora mesmo. - Retruquei com impaciência. - Amanhã bem cedo quero vê-los na minha sala no terceiro andar... Vou decidir se os suspenderei por uma semana, por duas ou se será por um mês, até que entendam o real propósito de nossa missão. - Afirmei, visivelmente contrariada por não ter sido consultada.

Sem entender minha reação exasperada, os dois rapazes deixaram o local de maneira apressada. Jimmy tinha largado as ferramentas de tortura que havia utilizado – um martelo, um isqueiro, uma faca e um alicate. De modo cauteloso eu me aproximei para soltá-la sem conseguir desviar meu olhar de seus diversos ferimentos. Se havia um bom momento para retribuir seu auxílio, definitivamente aquele era o mais adequado, mesmo com todo mal que ela tinha me causado desde o início da epidemia.

Abigail foi ferida principalmente no tórax – sua camiseta preta tinha sido rasgada durante a ação, o que evidenciou a tatuagem de tigre que ela tinha no peito. Também havia cortes um tanto profundos nos braços dela, especialmente um em seu bíceps esquerdo, além de um hematoma escuro em sua testa, provavelmente provocado por uma pancada com o martelo.

- Seu fingimento foi... Incrível. Isso tudo foi... Armação pra você ficar sozinha comigo pra... Ter a oportunidade de me torturar pessoalmente, ou de me matar? - Ela questionou, de modo desconfiado.

- Não, nem pensar. Primeiro porque você sabe perfeitamente que meu grupo não tem como prática esse tipo de coisa a não ser que seja estritamente necessário, o que nunca foi até agora, inclusive. Esses dois soldados vieram de outro assentamento localizado em Fredericksburg há alguns meses, vou ter que deixar algumas coisas bem claras pra eles amanhã cedo, caso queiram continuar em meu grupo.

- Aposto que sim. Mas de qualquer forma... Eu sei perfeitamente o que está entre nós, Butler. - Ela tossiu algumas vezes e pigarreou, enquanto eu a desamarrava e retirava as algemas que prendiam seus pulsos. - Sei que você quer me matar tanto quanto eu quero acabar com você... Não precisamos esconder isso uma da outra... Não depois de tudo que houve entre nós. - Continuou em um balbucio, já que apresentava dificuldades de fala talvez por ter sido apertada na garganta em uma tentativa de estrangulamento. - Mas... Não deixe que aquele garotinho saiba... O que me tornei... O que o surto fez com que nos tornássemos. - Abby praticamente implorou ao visualizar Michael, que tinha parado à entrada da porta da sala.

- Como quiser... - Eu resmunguei em resposta.

O menino olhou para o chão e notou as diversas manchas de sangue, enquanto eu limpava, com um pano e com álcool que havia encontrado no ressinto, o tórax ferido de Robinson. Os olhos dele estavam arregalados de pavor, talvez porque pensasse que pessoas pertencentes ao meu grupo não seriam capazes de algo tão monstruoso e, com a dura noção da realidade, tudo que ele fez foi correr em direção a ela para tentar confortá-la.

Abby esticou o braço esquerdo – que era o menos machucado – com o objetivo de que ele não chegasse tão perto dela. Lágrimas escorriam pelas bochechas da criança, que soluçava ao repetir que não queria que ela tivesse se machucado ao trazê-lo até ali.

- Eu vou ficar bem, Mike, eu vou... Não se preocupe. A sargento vai me ajudar...

- Eu sabia que aqueles rapazes não acreditariam na gente... Ninguém acredita no que eu digo...

- O que aconteceu, Michael? - Eu perguntei gentilmente, antes de fazer um gesto para que a cabo Álvarez adentrasse o local e fechasse a porta.

- O soldado Garcia me ensinou como sair da base sem ser visto. Eu tava sem sono, então quis ir procurar Abby pra agradecer, porque naquele dia ela deu comida pra Ruby e pra mim... Lembra que já contei isso, não é, sargento?

- Sim, claro.

- Então... Eu fugi e fui. E nós ficamos lá na praia, ela e eu. Só que antes que Abby me achasse, os infectados me encontraram primeiro. Então ela me ajudou e a gente ficou brincando de correr na beira da praia... Foi muito divertido. Mas quando tava na hora de eu voltar... Ela quis me trazer até aqui e... Os soldados... Eu não sei o que pensaram, mas acho que...

- Eles imaginaram que ela o tinha machucado, sargento. - A cabo Álvarez respondeu.

- Imaginaram!? - Eu ergui uma sobrancelha com incredulidade e bufei de irritação. - Eles não têm que imaginar porra nenhuma, têm é que trabalhar em cima de fatos.

- Então... Você acredita em mim, Meg?

- Sim. Claro que sim, criança. Fique calmo.

O menino suspirou de alívio enquanto afastava as próprias lágrimas com as costas de suas pequenas mãos. - Que bom. E Abby... Vai ficar bem?

- Sim, vai. Ela precisa de algumas horas de repouso, ao menos pra que alguém faça seus curativos...

- Nenhum médico vai querer atendê-la, Meg, você sabe perfeitamente disso. - Cabo Álvarez voltou a falar.

- E por acaso eu tô pedindo ou ordenando alguma coisa pra alguém? Não vou nem conversar com os doutores, eu mesma vou cuidar disso.

- Tem certeza?

- Sim.

- E se ela tentar matar você? - Alexia questionou.

- Ah, claro, estou em plenas condições disso no momento. - Abby rosnou e rolou os olhos lentamente.

- Saia daqui com o Michael agora, finjam que nada aconteceu. Todos os civis estão dormindo e há quatro soldados de guarda no portão da frente. Eu vou empurrar essa maca até a grande sala de suprimentos que fica do lado do arsenal.

- Emily e Bob vão perceber que itens médicos foram usados...

Eu suspirei audivelmente. - Faça o que estou mandando, cabo Álvarez... Que merda! - E em seguida me voltei para o menino. - Amanhã bem cedo eu busco você pra ver Abby, então trate de dormir um pouco até lá.

- Sim.

Os dois deixaram a sala e, como a maca tinha rodinhas, não foi difícil empurrá-la para fora, após encontrar um cobertor para cobrir minha hóspede no mínimo inusitada. Tranquei a porta do local ao passar e guardei a chave no bolso traseiro da calça que trajava, antes de voltar a empurrar a maca na direção em que tinha dito. Ainda estava irritada pela sucessão de coisas que tinha ocorrido e, também, porque eu sabia que precisaria dormir fora do meu quarto naquela noite.

Se havia uma das coisas que eu mais gostava era do sossego do meu espaço. Porém não podia deixar a líder dos Tigers sozinha, sob pena de ser morta por qualquer desavisado que adentrasse a sala de suprimentos médicos.

Como eu detinha uma cópia de praticamente todas as chaves dos cômodos existentes na base, tranquei a porta do lugar que usaria de enfermaria improvisada e tornei a respirar fundo, antes de empurrar a maca para perto da janela.

Abby, por outro lado, mantinha-se em absoluto silêncio. Parecia calma demais apesar dos ferimentos, o que de certa forma me deixava preocupada. Preferia lidar com ela sendo explosiva e raivosa a enfrentar surpresas as quais não pudesse reagir.

- Sinto muito pelo que houve... O que eles fizeram é injustificável.

- Não, não é... Não finja que não está satisfeita, porque sei que você está. - Ela alfinetou.

- Eu optei por cuidar de você... Não me faça voltar atrás... - Comentei de modo provocador.

- Você não entendeu o que eu quis dizer. - Ela respirou fundo e voltou a falar. - Do ponto de vista moral você não admite o que foi feito por eles, isso é você com seu senso de dever que é maior do que tudo... Que tá com você durante boa parte do tempo desde que o surto começou e até mesmo antes de o mundo se transformar nessa merda. Mas eu sei que aí dentro... - Ela apontou em direção ao meu coração. - Não tá somente o senso de dever... Você é alguém que sente as mortes dos seus familiares exatamente como eu sinto todos os dias. E quando viu todo aquele sangue escorrer de meus ferimentos, você ficou satisfeita porque bem ou mal, seus soldados estavam a fazer justiça.

- Acontece, Abby, que pra mim, flagelar você não significa fazer justiça. Seria se você e eu, em uma luta de igual pra igual, pudéssemos reaver nossas diferenças.

Ela sorriu e acenou em concordância. - É isso que você gostaria, Butler?

- O quê?

- Se nós tivéssemos isso, uma luta de igual pra igual somente você e eu... Esse ódio diminuiria?

Eu suspirei e bufei sonoramente ao puxar o cobertor com alguma brusquidão. - Será que podemos falar de algo mais agradável enquanto tento consertar seus ferimentos, porra?

- Desculpe... É impossível.

- Eu não entendi...

- Porque um dos seus soldados cogitou me estuprar. - Ela comentou em um sussurro.

- Como é?

Aquilo já era demais para lidar em somente uma noite. Como se não bastasse dois de meus homens terem realizado um interrogatório com flagelação sem minha autorização, um deles ainda teria tentado forçar uma mulher que era puro músculo a algo que não queria, o que tornaria meu diálogo com eles mais longo do que eu esperava.

Eu não acreditaria em uma só palavra caso ela estivesse desamarrada, porque como se tratava de alguém forte o bastante, Abigail poderia matar os dois com as próprias mãos se quisesse, sem que fizesse muito esforço. No entanto, quando cheguei ao outro cômodo ela estava presa pelos pulsos e pelos tornozelos, o que não somente me permitia crer em seu relato na íntegra, como me fazia prometer a mim mesma que tomaria providências depois.

- Não tô falando isso pra que você os puna ou os suspenda... Não acho que deva fazer isso pelo que houve comigo. Eu sou a comandante do time dos bandidos, não vale a pena arriscar o respeito que você desfruta por conta de algo que nem mesmo tem como provar. Mas fique atenta, porque se eles têm esse tipo de prática ao interrogar mulheres, pode significar que agem dessa forma em qualquer outro momento, também.

Eu assenti em concordância e permaneci em completo silêncio enquanto fazia os curativos no tórax dela e nos braços, que foram os mais atingidos por ferimentos. Sabia que Abby tinha razão, que eu não poderia arriscar todo prestígio que desfrutava perante os soldados daquela maneira ao abordar algo que não havia como provar, mas qualquer tipo de violência me revoltava, ainda mais se fosse contra alguma mulher, mesmo que, como ela, tivesse o físico bem construído.

Então, eu ficaria mais do que atenta para o comportamento dos dois e, para isso, nomearia Adrian Garcia a acompanhá-los daqui para frente. Certamente ele não me decepcionaria, por se tratar de um soldado leal e bastante empático, que não aprovaria nenhum tipo de abuso.

- Desculpe por não ter agradecido antes pelo que você fez. Eu realmente... Não sabia como falar.

- O quê?

- Bem, primeiro você praticamente salvou minha vida há uma semana e, hoje à noite, impediu que uma criança fosse mordida por errantes.

- Eu sou conhecida por alguns de vocês como bad girl, mas não significa que sou feita somente de sentimentos ruins, Butler.

- Eu nunca afirmei que você fosse alguém ruim. Eu já disse mais de uma vez que o surto fez com que você se perdesse. Você não sabe a diferença entre fazer justiça e matar gente inocente.

- Pode até ser que você tenha razão. Talvez eu me sinta melhor se a gente lutar de verdade, sem interrupções.

Eu tornei a respirar fundo, visivelmente incomodada com o assunto que ela voltava a trazer à tona. - Por que você insiste nisso?

- Porque é exatamente o que você quer: ter a oportunidade de vingar a morte dos seus pais e do seu irmão, assim como eu também quero fazer justiça pelo que houve com Ronnie e com minha família.

Eu terminei de fechar os curativos no tórax e nos braços dela antes de cobri-la confortavelmente, então me afastei de modo abrupto. Sentei-me em uma poltrona reclinável que havia a um canto do grande cômodo e ali mesmo me ajeitei para que dormisse por poucas horas. Tendo em vista que eu já tinha passado a noite em locais piores do que aquele, não encontrei nenhuma dificuldade para fechar os olhos castanhos e me concentrar apenas em meus pensamentos.

A líder dos Tigers tinha razão ao afirmar que eu gostaria de lutar contra ela, porque nada mais me restava. Os Survivalists dispunham de sua base e de uma espécie de conselho de comandantes caso eu viesse a ser morta, o que me deixava tranquila se por ventura algo ruim acontecesse comigo em alguma missão.

Eu sabia perfeitamente quem havia matado meu irmão e meus pais e, o fato de que teria essa pessoa deitada em uma maca no mesmo cômodo que eu por horas, deixava-me suficientemente confusa e inquieta.

Não me arrependi por tê-la ajudado com os curativos, exatamente pelo fato de que ela me auxiliou em meio à tempestade semana passada. Mas senti como se todo ódio por mim represado pelos últimos dois anos me cobrasse internamente, era como se o ressentimento criasse vida própria em meu coração e me intimasse a tomar uma atitude oposta.

Talvez fosse a brutal visão de minha mãe e de meu irmão, espancados de maneira violenta por Abigail, além de meu pai que havia sido morto com um tiro no peito, que não me permitia ver com clareza a situação em que nós duas nos encontrávamos agora, porque era como se o acontecido me impelisse a querer agredi-la, especialmente quando ela me provocava a fazê-lo.

De repente abri os olhos e a surpreendi a me encarar, o que fez com que eu me sentasse, visivelmente tensa. Eu não dispunha de nenhuma arma para me defender caso ela decidisse me matar, o que eu não sabia se ocorreria ou não, por mais que eu a tivesse ajudado.

- Eu não seria covarde de encostar em você agora. - Ela balbuciou e olhou através da janela para a noite lá fora.

- Como você sabe que eu pensei isso?

- Seus olhos demonstram o que sente... Eles expressam todo medo pelo fato de eu estar aqui, dividindo o espaço com você. Mas eu posso ir embora agora, se você achar melhor.

- Não seria educado se eu dispensasse você logo agora...

- Nós nunca mais fomos civilizadas uma com a outra nos últimos dois anos, Butler. E não acho que vamos ser... Não mais, por mais que nos esforcemos pra isso. Então eu compreenderia perfeitamente caso eu precisasse sair.

- Você tem pouca esperança no futuro. - Eu argumentei, ao me mexer desconfortavelmente.

- Que futuro? Você e eu não temos família... Você ordenou que seu irmão e outro soldadinho de merda matasse meus pais, pra me vingar eu assassinei seu irmão e seus pais e... Ainda tem o Ronnie nessa história toda, porque até hoje eu não sei quem o fuzilou.

- Seus pais tinham sido contaminados...

- Eu sei. - Ela balbuciou entredentes. - Mas não torna a dor menor, especialmente pelo que houve com Ronnie.

- E se soubesse quem mandou matar seu irmãozinho, o que você faria?

- Eu não sei. Talvez eu conseguisse ser capaz de deixar pra lá... Ou de perdoar... Como dizem... Tanto faz. Mas eu reconheço que não sou muito boa nessa coisa de perdão. - De repente ela me encarou de novo, seus olhos grandes e verdes analisavam cada milímetro de minha expressão facial. - Por que a pergunta? Não me diga que foi você que fez essa merda?

- Não, não fui eu. Eu jamais fuzilaria ou teria coragem de ordenar que fuzilassem uma criança de cinco anos, porra. - Retruquei com exasperação.

- Mesmo que Ronnie estivesse infectado... Você não ordenaria?

- É claro que não. Eu conversaria com a pessoa responsável por ele, que no caso era você. Explicaria a situação e o que teria de ser feito... Mas jamais eu faria algo por conta própria.

- Bom saber.

- Bom?

- Sim. Porque se fosse você que tivesse ordenado, eu realmente perderia as poucas esperanças que tenho de que as pessoas pudessem ter um futuro melhor. - Ela me respondeu ao esboçar um leve sorriso e ficou de pé com alguma dificuldade. - Onde fica a saída de emergência? Realmente, considero embaraçoso permanecer aqui no mesmo cômodo com você... Depois de tudo que houve hoje.

- Tudo bem. Venha comigo, eu ajudarei você a chegar do lado de fora.

- Certo.

- Mas esteja em East Beach amanhã cedo pela manhã. Vou levar Michael até lá pra ver você, assim ele vai ficar mais tranquilo. - Falei, antes de jogar uma camiseta para que ela vestisse.

- Considere feito.

Eu esbocei um leve sorriso, abri a porta do cômodo e a acompanhei até a saída com cautela, para não alertar nenhum soldado a respeito da presença dela; não estava com a menor vontade de explicar nada a ninguém naquele momento.

                         

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