Desligo o alarme e tento me desvencilhar de seus braços, mas ele me puxa de volta para perto de seu corpo. Viro-me para ele e acaricio sua pele cheia de sardas com as pontas dos dedos. Não havíamos conseguido sair para jantar na noite passada, então ele perguntou se poderia dormir aqui e apesar de acordarmos cedo no dia seguinte, tentamos aproveitar esse momento juntos o máximo possível.
- Fê, acorda - digo baixinho e ele resmunga algo que não compreendo. - Anda, você tem prova hoje.
Ele faz um careta de dor e eu dou risada. Ele está no quinto semestre de Direito, enquanto eu estou no quarto de Biblioteconomia.
- Nem me lembre. - Abre os olhos castanhos devagar e deixa um selinho em meus lábios. - Bom dia, amor.
- Bom dia, meu bem. Achou que se esquecendo dela, ela desaparecia? - brinco.
- Como adivinhou?
Ele ri e desvio de seu aperto, levantando-me da cama e caminhando em direção ao banheiro. Ouço seus passos atrás de mim e o barro ainda na porta.
- Eu te convidaria para entrar, mas já enrolamos muito por hoje e sair do banho já com o café da manhã pronto me faria muito feliz.
Lanço-lhe uma piscadela e Fernando fecha a cara. Gargalho e tranco a porta do banheiro. Tiro o pijama e caminho até o chuveiro, ligando-o e fechando o box de vidro atrás de mim. Desfaço o coque em meu cabelo e deixo a água morna cair por todo meu corpo. Os cachos escuros batem em minhas costas e aproveito para lava-los e hidrata-los.
Ao finalizar o banho, puxo a toalha do gancho e seco meu corpo. Saio do banheiro enrolada com o tecido felpudo e abro meu guarda-roupa, tirando uma calça mom jeans, uma regata branca com um decote pequeno e tênis da mesma cor. Jogo-os em cima da cama e pego meu celular na cômoda, checando as notificações. Vejo pela barra uma mensagem de Lorenzo:
E aí, como foi o almoço ontem? [5h33m].
Ontem, um pouco antes de chegar na casa de vovó, deixei meu carro na oficina. O mecânico responsável disse que iria avaliar e me dar uma resposta referente ao orçamento hoje. O carro é um pouco antigo, então acabo me perguntando se compensaria mesmo consertar ou seria melhor comprar um novo. Financeiramente, é claro que a primeira opção, afinal, não seria eu a pagar.
A mensagem que enviei para Lorenzo ontem foi apenas para saber se, de fato, aquele número era dele e depois de confirmar que sim, me arrependi amargamente, já que ele é um pé no saco e sempre me recorda porquê odeio homens.
Visto-me e começo a finalizar meu cabelo. Alguns minutos passam e Fernando entra no quarto.
- Para quem estava preocupada se iríamos nos atrasar ou não, você está demorando bastante, hein? - resmunga, indo em direção ao banheiro. - O café já está pronto, vida.
- Obrigada, você é o melhor.
- Também te amo.
Sorrio e termino de finalizar meu cabelo com o braço dolorido. Ser cacheada definitivamente não é fácil. Pego minha mochila e vou até a cozinha. Esquento o café novamente e me sirvo com pães e frutas. Logo após terminar de comer, aguardo meu namorado, que não demora a aparecer trajando um terno azul escuro com uma gravata borboleta listrada na mesma tonalidade e com seus cabelos ruivos perfeitamente alinhados. Como ele se arruma tão rápido?
- Meu Deus, deveria ser crime alguém ser tão bonito assim.
- Você teria pegado prisão perpétua. - Dou risada e vejo-o avaliar minha roupa em seguida. Lá vem. - Mas não acha melhor colocar uma blusa mais comportada, amor?
- Não gostou? - pergunto, olhando para minha blusa. Não há nada demais nela.
- Eu gostei, mas outros caras também vão.
Reviro os olhos. Como todo homem que nasce em uma sociedade estruturalmente machista, Fernando ainda tem muitos pensamentos a desconstruir. A minha sorte é que mamãe me criou ensinando-me como homens são ou esse projeto de advogado já teria me manipulado há muito tempo.
- E mulheres - complemento. - Você sempre esquece que sou bissexual.
- Eu não esqueço, só não me preocupo com elas - balança os ombros.
Mas deveria, quis dizer.
Decido que vou assim mesmo e apesar de emburrado, ele pega o molho de chaves e saímos do apartamento, fechando a porta e seguindo até o estacionamento. Hoje ele será meu motorista particular, já que meu carro está no conserto, e como estudamos em faculdades diferentes ele passará primeiro na minha e depois na sua.
Músicas sertanejas nos acompanham durante todo o trajeto e ao chegarmos, despeço-me dele com um beijo rápido, para que não se atrase. Saio do carro e encontro Anabel em frente ao local.
- Amiga, você não vai acreditar - ela me aborda quando me aproximo, cruzando nossos braços e caminhando para dentro da instituição.
Rio. Ela adora uma fofoca e não há nada que aconteça nesse lugar que ela não saiba, e foi graças a sua alma de jornalista que demos início a nossa amizade.
- Se você não me contar, não mesmo.
- Credo, tá naqueles dias? - Reviro os olhos. - Enfim, sabe a Sofia?
- A irmã da Larissa?
- Ela mesma. Vazou um vídeo dela com o professor de física. A faculdade inteira só fala disso.
Olho ao nosso redor e o corredor está repleto de burburinhos, basta somente que Sofia o cruze de cabeça baixa para que eles aumentem.
- Meu Deus, essas pessoas não tem o que fazer, não?
Ana dá de ombros e solta meu braço para entrarmos na sala de aula. A professora ainda não chegou, então sentamos em nossos lugares e mantivemos a conversa em um tom de voz um pouco mais baixo.
- Eu, particularmente, não sinto pena alguma, ou você se esqueceu de como ela saiu espalhando para todo mundo quando você beijou a irmã dela?
No início da faculdade, Sofia fez da minha vida um verdadeiro inferno quando eu fiquei com a Larissa, mesmo ela sendo assumidamente lésbica a muito tempo, e eu nunca entendi o porquê disso.
- Bom dia, hoje vamos falar sobre... - diz a professora de Documentação Audiovisual, após entrar na sala de aula. Desvio o olhar de Ana e presto atenção na aula.
[...]
Alguns meses depois que iniciei a minha graduação, eu passei em uma entrevista para trabalhar na biblioteca da faculdade, então agora eu passo a maior parte do tempo aqui, o que não é incômodo algum por ser algo que amo. Recebemos hoje um novo lote de livros técnicos e acabo de abri-lo para verificar algumas informações, quando escuto passos quebrarem o silêncio do ambiente.
- Boa tarde, você sabe me dizer se... - Ergo a cabeça para conversar com a pessoa, e as palavras morrem em sua boca assim que vê meu rosto.
A sua mensagem não respondida ecoa em minha mente, assim como a colisão de nossos carros e o exato momento em que os cacos caíram na calçada e a porta tornou-se uma lataria velha amassada. Tento dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas tudo que deixa minha boca é:
- V-você? - indagamos em uníssono.