Eu me sentei, concluindo que em algum momento da noite nós escorregamos até o chão, e me desvencilhei de seu braço.
O sol já estava nascendo e a chuva felizmente tinha parado, então me levantei para ver em que estado estava minha blusa pendurada na janela.
- Clara? – Kaio murmurou no chão.
Me virei para ele, que apertava os olhos, aparentando confusão – e talvez uma dor no ombro pelo modo em como o estava movendo.
- Já parou de chover. – por algum motivo eu estava me sentindo constrangida agora que estava claro – Nós deveríamos aproveitar para tentar fazer alguma coisa.
Me concentrei na blusa, ainda muito úmida, enquanto Kaio se levantava.
- É, concordo com você.
- Eu deveria devolver a sua jaqueta... – coloquei a mão no zíper, mas não o abri porque lembrei que não estava usando nada por baixo além do sutiã.
- Não se preocupe, estou bem. – ele fez um gesto despreocupado e andou para o lado de fora.
Eu o segui e observei onde nós estávamos. Havia uma casa há poucos metros.
- Erramos a ajuda por pouco. – comentei, apontando a direção.
- O azar estava conosco ontem. – ele concordou.
Ir até a casa era a melhor opção, já que nós precisaríamos ligar para que alguém trouxesse a chave reserva do carro.
A casa não era muito grande, mas era bem bonita. Toda de madeira, com uma varanda circundando, e um segundo andar com janelas bem grandes.
Kaio bateu na porta e eu resolvi ficar um pouco mais atrás. Ele poderia explicar a situação sozinho.
Uma mulher idosa abriu a porta pouco tempo depois, usando um roupão. Pareceu ter sido tirada da cama um pouco cedo demais.
- Desculpe por acordá-la. – Kaio disse – Nosso carro ficou preso e acabamos nos protegendo ali. – ele apontou para a construção – Pedimos desculpas por isso também. – ele deu uma risadinha sem graça.
- Vocês dormiram aí fora? – ela se espantou – Estava muito frio. Podem entrar.
Aliviados, nós passamos pela porta agradecendo. E continuamos agradecendo enquanto ela nos conduzia até a cozinha.
- Vou fazer um chá para esquentar vocês dois. – a senhora pegou água e levou até o fogão – Vocês podem ficar doentes.
- Dora, quem está aí? – escutamos um segundo antes de um homem igualmente idoso passar pela porta.
Ele olhou para nós dois como se fossemos duas coisas muito fora do lugar.
- O carro deles ficou preso na estrada. – Dora respondeu tranquilamente – Estou fazendo um chá, Chico.
- Bom, mas eles não podem ficar com essas roupas molhadas. – ele gesticulou para nós – E também deveriam tomar um banho.
Kaio parecia tão sem graça quanto eu.
- Tem razão. – Dora bateu com a mão na testa – Pode mostrar para eles o banheiro? Eu já encontro alguma roupa que sirva.
- Claro. – Chico concordou – Vamos.
Kaio e eu nos entreolhamos, depois demos de ombro simultaneamente e seguimos o homem até o andar de cima.
Chico parou na primeira porta e a indicou.
- Você pode usar aí... – vi que ele me olhava.
- Clara. – completei.
- Clara. – repetiu – Pode ficar à vontade, Dora vem em um minuto.
- Obrigada. – coloquei a mão na maçaneta e girei.
- Você vem comigo, rapaz. – ele continuou andando.
- Vai ficar bem? – Kaio sussurrou.
- Claro que sim. – respondi, sem entender aquela súbita preocupação comigo.
- Legal. – ele seguiu adiante.
Passei pela porta e percebi que era um quarto. Tudo era simples, mas de bom gosto. Havia uma cama de solteiro, um guarda-roupa simples e cortinas nas janelas. E, para minha alegria, uma outra porta que levava até um banheiro.
A água quente me fez suspirar por minutos. Consegui até esquecer um pouco tudo que havia acontecido e minhas preocupações.
- Clara? – a voz da senhora me tirou do transe – Estou deixando roupas para você em cima da cama.
- Obrigada! – respondi alto.
Pouco depois desliguei o chuveiro, me sequei em uma toalha rosa macia e fui me vestir. Pensei que encontraria algo mais neutro, mas havia uma blusa de moletom rosa e uma calça jeans – que ficou só um pouco larga.
Decidi descer porque ficar no quarto pareceu meio estranho, e vi que Kaio já estava sentado na cozinha tomando uma xícara de chá. Ele estava usando uma camisa de flanela vermelha e preta que, incrivelmente, caía muito bem nele, e calça jeans que parecia um pouco justa nas coxas.
- Aí está ela. – Dora sorriu, se virando do fogão.
Kaio olhou para mim, e me apressei em sentar na cadeira de frente para ele.
- Estou fazendo um café da manhã reforçado. – a senhora prosseguiu alegremente.
Comemos, visivelmente realizados, e só então Kaio resolveu pedir para usar o telefone.
- Não está funcionando por causa da tempestade. – Chico informou, entrando na cozinha para comer também – Mas geralmente consertam rápido.
Fiquei preocupada. Eu estava me controlando todo aquele tempo, mas queria ligar para Xande mais uma vez. Ele devia ter visto minhas ligações e ficado preocupado.
Naquele momento um rapaz, talvez um pouco mais velho do que eu, entrou na cozinha coçando a cabeça e bocejando.
- Opa. – ele parou onde estava assim que viu dois estranhos na mesa.
- Oi, meu nome é Clara. E esse é Kaio. – gesticulei na direção dele – Nós dois...
- Nosso carro quebrou na estrada. – Kaio completou.
- O tempo estava muito ruim ontem. – o rapaz comentou despreocupadamente, indo se servir – Não era uma boa ideia andar por aí.
Kaio me olhou de um jeito que mostrava concordância, mas deixei passar porque não queria entrar em uma discussão na frente das pessoas que estavam nos ajudando.
Depois disso, pedi licença para ir até a varanda. Ficar dentro da casa parecia um pouco estranho, e além disso eu ainda estava cansada demais para interagir.
Me sentei em uma cadeira de balanço e olhei para o horizonte. A vista era bonita, isso não se podia negar, mas eu queria muito estar em outro lugar.
Naquele horário, se o carro não tivesse empacado, eu já estaria na república de Xande. Provavelmente já estaria tranquila por ter constatado que a estranheza dele no telefone não era nada mais do que uma impressão minha – como sempre.
- Clara, você está bem? – Kaio surgiu ao meu lado com a testa franzida.
- Estou sim. – eu não iria abrir meus sentimentos para ele.
- Sei que você queria estar lá com seu namorado. – ele se aproximou – Mas logo vamos dar um jeito de voltar para casa.
Kaio estava tentando me confortar?
- É, eu sei. – concordei, mais para que ele parasse de falar do que qualquer coisa.
Ficamos parados no mesmo lugar por um tempo. Continuei olhando para a frente, então não sei para onde ele estava olhando.
- Clara, eu... – Kaio começou a dizer, mas o rapaz de antes passou pela porta.
- Soube que vocês precisam de telefone. Eu tenho um celular.
Fiquei em pé de um pulo.
- Aliás, meu nome é Bento. – ele se apresentou.
- Isso é ótimo! – exclamei.
- Claro que é. – a voz de Kaio era entediada.
- Podem vir comigo. – Bento chamou.
Mais uma vez subimos as escadas até um quarto, só que o do rapaz era bem mais bagunçado do que o que eu tinha usado.
- Fiquem à vontade. – ele entregou o aparelho nas mãos de Kaio e saiu.
Kaio fez uma ligação para seus pais, onde explicou tudo que tinha acontecido desde que tínhamos saído, depois escutou pacientemente o que me pareceu um sermão.
- Eles vão falar com seus pais e procurar a chave. – ele me entregou o celular.
- Entendi. – peguei o aparelho.
- Pode ligar para ele. – Kaio deu de ombros – Eu vou lá para baixo.
- Pode ficar. – falei enquanto me sentava na cama bagunçada. Ele ia ver como não tinha nada de errado com meu relacionamento.
- Certeza? – aquilo pareceu pegá-lo de surpresa.
- Sim. – eu já estava discando o número – É meio estranho ficar lá, não acha?
- É. – ele sorriu – É, sim.
Enquanto eu escutava os toques se prolongando, Kaio sentou no chão ao lado de uma pilha de roupas.
Tudo que eu precisava era que Xande atendesse e me tranquilizasse, mas fui perdendo as esperanças e ficando tensa – e irritada porque aquilo estava acontecendo justo na frente de Kaio.
- Alô?
Fiquei surpresa ao ouvir a voz de sono de meu namorado.
- Xande, oi. É a Clara.
- Oi, Clara. – sua voz se tornou mais suave quando percebeu que era eu – Eu tentei falar com você ontem, mas...
- Ah, me desculpe por isso, amor. – ele me interrompeu – Eu estava ocupado. Sabe como é a república. Os meninos chamaram amigos para cá, estava estava uma barulheira danada...
- Não tem problema. – me senti um pouco aliviada – Eu só ia dizer que estava indo te ver.
- Me ver? Agora? – escutei um som do outro lado que sugeria que ele estava se levantando.
- Ontem. – respondi com incerteza – Mas o carro atolou e eu acabei dormindo no meio do nada.
- No meio do nada? – a voz dele estava dando um pouco de eco, então imaginei que estava entrando no banheiro.
- É, mas acabei encontrando ajuda e...
- Que bom que deu tudo certo então. – Xande me interrompeu – Podemos nos falar depois? Eu acabei de acordar e preciso usar o banheiro.
- Ah, tudo bem. É que eu...
- Que bom! Nos falamos depois.
E ele desligou.
Fiquei um tempo com o celular no ouvido antes de soltá-lo na cama. A conversa tinha sido tão estranha que em vez de me acalmar, me deixou com um vazio.
- Clara? – eu quase tinha esquecido que Kaio estava ouvindo.
- O quê? – levantei meus olhos para ele.
- O seu namorado é um idiota.