Nós nos encaramos, sem saber o que fazer depois daquilo. Kaio e eu nunca tínhamos passado tanto tempo juntos, mesmo que nos conhecêssemos há muito tempo.
Nossas famílias eram amigas muito antes de nascermos, e mantinham a tradição dessa viagem todo ano. No começo eu gostava, mas depois de um tempo passei a ir por obrigação – o que não era o caso de Kaio, porque ele sempre estava irritantemente alegre.
Ficávamos em casas separadas, mas dividíamos o mesmo quintal. Todo mundo interagia o tempo todo – o que parecia ser o objetivo da viagem -, mas nós dois nunca conseguimos nem brincar juntos.
E agora estávamos sozinhos, em teoria, naquela casa.
- É melhor eu... – Kaio apontou para a porta e saiu, quase correndo.
Não era só eu que ficava desconfortável com a proximidade forçada, afinal. A antipatia sempre fora mútua.
Fiquei por um tempo no quarto, deitada na cama olhando pela janela, mas comecei a ficar entediada. Além do mais, o tempo livre em excesso estava me fazendo pensar mil coisas sobre Xande.
Saí do quarto e vi que a porta de Bento estava entreaberta. Talvez fazer um novo amigo me ajudasse a passar o tempo.
- Oi? – coloquei a cabeça para dentro.
Bento estava sentado na cama dobrando algumas roupas. O quarto também parecia ligeiramente mais em ordem.
- Ei! – ele sorriu para mim – Está se sentindo melhor?
- Tudo bem. – fiz um gesto despreocupado, embora fosse o oposto do que estava sentindo.
- Todo sábado minha vó me faz dar um jeito nesse quarto. – ele comentou – Não dura nem três dias, mas fazer o quê, né? – ele riu e eu o acompanhei.
- Aquele quarto onde estou... É de quem? – me aproximei e sentei na outra ponta da cama.
- Era da minha irmã, mas ela está morando do outro lado do país. – fiquei impressionada com a perfeição com que as camisas estavam dobradas – Faculdade, sabe como é.
Balancei a cabeça em sinal positivo.
- Acho que imaginei errado. – Bento prosseguiu, as mãos trabalhando nas roupas com agilidade – Você e Kaio não estão juntos.
- Não, não estamos. – finalmente eu conseguia dizer aquela frase – Nossas famílias são amigas, mas nós nem somos muito de conversar.
Bento demorou um pouco para continuar conversando.
- Aquele do celular é seu namorado.
Não era uma pergunta, mas mesmo assim balancei a cabeça em sinal positivo. Eu nem precisaria perguntar para saber que ele tinha opiniões semelhantes às de Kaio sobre Xande, mas mesmo assim ele falou.
- Ele não parece ser muito legal. – na boca de Bento aquilo não me irritava como quando Kaio falava.
- Acho que estou começando a perceber isso. – encolhi os ombros.
- Estão juntos há muito tempo?
- Sim. Quase dois anos...
Conheci Xande na escola. Ele era o cara do último ano, popular, que chamava atenção de todo mundo. Sempre cheio de amigos ao redor, estava presente em todos os locais onde pudesse e era bem-vindo.
Eu era uma garota comum do primeiro ano. Não saia tanto de casa, mas ia a algumas festas quando era convidada – e foi justamente assim que ele me percebeu.
Fiquei surpresa por Xande me notar, e ainda mais por ele me chamar para sair depois. E não foi uma ou duas vezes, foram cinco antes de qualquer coisa acontecer entre nós dois.
Começamos a namorar oficialmente em novembro daquele ano. Com direito a um pedido romântico à beira de um lago famoso na cidade. Claro que eu teria preferido que todos os amigos dele não estivessem presentes, mas mesmo assim estava feliz.
Quando ele foi para a faculdade, as coisas ficaram um pouco mais frias, mas Xande telefonava mais durante o primeiro ano – e também vinha com mais frequência.
Em poucos dias faríamos dois anos de namoro, e aquele último ano tinha sido muito estranho. Eu não queria admitir, mas não poderia continuar me enganando.
Sempre que nós dois conversávamos eu ficava me sentindo estranha. E tinha sido por isso que eu peguei o carro, em meio a protestos de todos, e me enfiei na chuva.
Eu tinha acabado de tirar a habilitação e não tinha nenhuma prática com o carro, não era de se estranhar que acabamos atolados. Não sei como ainda não tinha recebido um telefonema bem pouco amistoso dos meus pais.
A lembrança de Kaio se enfiando na chuva atrás de mim e abrindo a porta do carona com o carro em movimento me fez soltar uma risada.
- Qual a piada? – Bento perguntou com um sorriso.
- Não é nada. – fiquei em pé – Toda essa situação é uma loucura. Vocês são muito gentis.
- Não é nada.
Saí do quarto e desci as escadas. A casa estava muito silenciosa, então eu estava praticamente andando na ponta dos pés. Não sei porque, mas parecia errado fazer barulho se os próprios donos não estavam fazendo.
Parei na sala quando escutei sons na varanda. Talvez fosse o casal simpático, mas e se fosse Kaio?
- Tome mais café, meu filho. – escutei Dora dizer.
- Ah, eu já estou cheio. – Kaio respondeu com educação.
- É bom para ajudar a descer os bolinhos. – Chico aconselhou.
Escutei o som de líquido caindo na xícara em seguida.
- Ainda estou chateada por vocês. – Dora continuou – Jurava que eram um casal.
- Ah, não, senhora. – Kaio deu uma risada baixinha e sem graça.
Até eu, que estava em um lugar onde nenhum deles podia me ver, estava sentindo o rosto quente.
- Vocês ficam bem juntos. – Chico comentou.
- Não é mesmo, querido? – a esposa concordou.
Esperei Kaio dizer horrores sobre mim, mas isso não aconteceu.
- Ela já tem um namorado.
- É, nós escutamos. – Dora disse com pesar – Ele não pareceu grande coisa.
Maldito descontrole que me fez gritar depois da ligação com Xande.
- É, ele não é. – Kaio concordou com a voz muito séria.
Decidi que era melhor não escutar mais nada, então pisando forte de propósito, terminei de andar até a varanda. Eles tinham me escutado, porque estavam comendo com expressões inocentes.
- Oi, querida. – Dora me cumprimentou – Sente no meu lugar, eu preciso mesmo ver algumas coisas.
- Oi. – respondi, ainda sem graça por tudo.
- Vou ajudar você. – Chico ficou em pé assim que a mulher passou pela porta – Fiquem à vontade.
Kaio estava terminando de beber a xícara de café que ele não queria.
- E sobram dois. – dei de ombros.