- Você tem como missão de vida me irritar?
Antes que ele pudesse dar uma resposta, Bento apareceu em um carro velho.
- É melhor eu levar vocês até seu carro.
Nós dois entramos sem falar nada, eu no banco de trás e Kaio no da frente. Fiquei surpresa por ele conseguir indicar o lugar onde o carro estava atolado com tanta facilidade. Talvez só o meu senso de direção fosse péssimo.
Acabou que o carro não estava em um lugar tão ruim como pareceu no dia anterior, pelo menos estava fora da estrada, sem risco de alguém bater. Mas ainda assim, havia bastante tempo pela frente até a ajuda chegar.
- Acho que vocês dois deveriam voltar lá para casa. – Bento pareceu notar que Kaio e eu estávamos irritados um com o outro – Meus avós não se importam mesmo em ter visita. Acho que até gostam.
Nenhum de nós dois disse nada.
- Não vai adiantar esperar aqui. – Bento prosseguiu.
- Tudo bem. – Kaio cedeu primeiro.
Os dois entraram no carro, depois olharam para mim, parada pateticamente no meio da terra. Sem dizer nada, entrei no banco de trás.
A família toda agora estava ciente de que Kaio e eu não nos dávamos bem. Dava para perceber como estavam evitando conversar conosco, sempre dizendo para que ficássemos à vontade enquanto faziam alguma coisa em um cômodo diferente de onde estávamos.
- Viu o que você fez? – sussurrei, brava – Estamos deixando os donos da casa desconfortáveis.
- Se você não tivesse saído do quarto batendo o pé como uma criança de cinco anos, isso não estaria acontecendo. – ele rebateu, também em sussurros irritados.
Quando eu achava que não tinha muito como piorar, Bento trouxe o celular.
- Seu pai precisa falar com você. – ele o entregou para Kaio.
Ele saiu imediatamente para a varanda, me deixando sozinha com o rapaz que estava completamente sem jeito.
- Sinto muito por atrapalhar a rotina de vocês. – encolhi os ombros.
- Tudo bem. – Bento trocava o peso de uma perna para a outra – Toda essa situação pode ser bem estressante para um casal.
- Casal? – repeti – Não, não, não. – me levantei balançando a cabeça – Nós dois não...
- Olha, eu preciso que você fique calma. – mas neste momento Kaio voltou com uma expressão nervosa – Mas uma ponte caiu e não tem como eles chegarem aqui.
Realmente sempre tinha como piorar.
Caí no sofá com um gemido, o que foi a deixa para Bento fugir e nos deixar a sós.
- Eu sei que é ruim. – Kaio se abaixou na minha frente – Mas temos um teto e boas pessoas dispostas a ajudar.
Ergui os olhos, com uma resposta sarcástica na ponta da língua, mas o rosto de Kaio tentava me tranquilizar. Por alguma razão, ele parecia realmente preocupado.
- É. – concordei, respirando fundo.
- Me desculpa por ter dito que Xande é um idiota, Clara. – agora ele estava realmente disposto a estender a bandeira branca – Eu só acho que você não deveria ter a necessidade de sair daquele jeito para ir conferir o que ele estava fazendo.
- Não era conferir. – retruquei, embora talvez realmente fosse o caso.
- Não se engane. – Kaio balançou a cabeça, ainda falando suavemente – E, foi você que me disse para ficar no quarto, o jeito como ele te tratou no telefone...
Senti meu estômago afundar.
- Não se trata uma namorada desse jeito, Clara. – ele concluiu, olhando para os lados só para não ver meu rosto triste – Eu vou explicar o que aconteceu para Dora e Chico.
Fiquei sozinha, sentindo o peso das palavras de Kaio. Eu odiava dar razão a ele, e ainda esperava que estivesse errado, mas naquele momento eu estava concordando.
Quando voltou, Kaio me encontrou na mesma posição.
- Certo, já expliquei tudo. – ele parecia estar agindo em algum modo de sobrevivência ou resolução de problemas – Eles disseram que não tem problema que nós fiquemos aqui, embora tenha apenas um quarto livre. Faço questão que seja seu, aliás. – Kaio começou a andar de um lado para o outro – Falei que estamos dispostos a repor tudo que comermos e, mesmo que eles tenham dito que não precisa, acho que deveríamos fazer isso mesmo.
Me levantei.
- Obrigada, Kaio.
Observei seu rosto perplexo antes de subir as escadas para o quarto que eu tinha usado antes, provavelmente seria esse o livre, e me deitei. De repente estava me sentindo muito cansada, a ponto de cair no sono por algum tempo – o que seria ótimo porque eu não queria pensar em Xande e em todas as coisas erradas.
Acordei com uma mão suave no meu ombro.
- Querida, já está na hora do almoço.
Me sentei, sonolenta, e vi Dora com um sorriso acolhedor nos lábios.
- Desculpa por mais cedo. – pedi – Eu estava muito nervosa.
- Não se preocupe com isso, querida. Seu namorado já explicou tudo.
- Ele não é meu... – comecei, mas outra vez fui interrompida.
- O vovô disse que está na mesa. – Bento colocou a cabeça para dentro do quarto.
- Ótimo! – Dora exclamou, e saiu do quarto animadamente.
Me arrastei para o andar de baixo. Todos já estavam sentados, então fui para a única cadeira livre – que era a do lado de Kaio.
Estranhamente eu estava sem graça para olhar para ele, então me concentrei no meu prato o tempo todo. Foi uma refeição silenciosa, algo a que eu não estava acostumada – minha família costumava conversar muito nessas ocasiões.
Assim que terminei, pedi licença para voltar para o quarto. Estava cogitando seriamente pedir para Bento me deixar fazer outra ligação para Xande. Tudo aquilo estava além do ridículo. Não era possível que meu namorado não estivesse preocupado com as coisas que eu disse.
- Clara? – Kaio bateu na porta antes de abrir – Você está bem?
- Sim. – eu estava sentada na cama – Por quê?
- Você me agradeceu mais cedo. – ele estava sem jeito, trocando o peso de uma perna para outra.
- Ah, isso. – dei uma risada baixinha – Você me ajudou muito. Ontem com a jaqueta, hoje tomando a frente dos planos enquanto eu estava nervosa demais para raciocinar. – eu odiava ter que admitir aquelas coisas, mas precisava ser justa – Se eu estivesse sozinha, o que era para ter acontecido se você não tivesse se enfiado no carro no último minuto, não sei o que eu teria feito.
Ele sorriu, o que não era muito comum enquanto estávamos interagindo, e veio se sentar ao meu lado na cama.
- Vai ficar tudo bem. – sua mão pareceu ir em direção a minha, mas desistiu no último instante e apoiou no colchão – Logo a ponte vai ser consertada, a chave vai chegar e você vai poder correr para o seu namorado.
Dei um suspiro profundo.
- Olha, quanto a isso...
Bento surgiu na porta com o celular na mão.
- Telefone para você, Clara.
Fiquei em pé de um pulo. Sempre havia uma esperançazinha de estar entendendo tudo errado.
- Oi?
- Amor, sou eu. – Xande parecia bem humorado do outro lado – Eu tentei o celular, mas depois percebi que você tinha me ligado de um número estranho.
- Eu tentei te explicar mais cedo. – mantive meu tom normal, embora aquilo estivesse me deixando irritada – O carro atolou, fiquei presa.
- Mas e esse celular?
Como ele podia focar apenas nisso?
- Estou na casa de umas pessoas que encontrei. – me virei para a parede para ignorar Kaio e Bento, que continuava parado na porta – Eles foram muito gentis em...
- Fico feliz por você ter conseguido ajuda. – Xande me cortou, ainda animado – Isso significa que você vai vir?
- Estou com problemas no carro e uma ponte caiu, então...
- Nossa... – sua voz veio de mais longe, como se ele tivesse afastado o celular do rosto – Sinto muito por isso.
Finalmente um pouco de empatia!
- Acho que logo tudo vai se resolver.
- Mas você não se importa de eu sair com os meninos hoje, não é?
Abri a boca, mas não consegui dizer nada.
- Quero dizer... – Xande se apressou em dizer – É só um churrasco, nada demais. É aqui perto de casa mesmo.
- Bom, é...
- Que bom, amor! – ele exclamou – Nos falamos mais tarde!
Fiquei parada um bom tempo com o celular na orelha. Uma mão o tirou de mim, e vi que era Bento. A expressão no rosto dele era desconcertada, nem mesmo olhava nos meus olhos.
Assim que escutei os passos dele saindo do quarto, me virei e vi que Kaio estava do mesmo jeito. Os dois tinham escutado tudo, toda aquela conversa ridícula.
Cruzei os braços com força para não chorar. Só o que me faltava era chorar na frente de Kaio na casa de pessoas que nós tínhamos acabado de conhecer.
- Clara, eu... – ele se levantou, mas não sabia o que fazer – Você precisa de alguma coisa?
A raiva subiu por mim.
- Como ele pode falar desse jeito comigo? Ele não sabe onde eu estou e nem com quem! E se eu estivesse na casa de um assassino? – depois de começar a desabafar era difícil parar – Como ele pode agir desse jeito?
Eu estava arfando, e olhei para Kaio como se realmente quisesse uma resposta, então não pude reclamar quando ele disse:
- O seu namorado é um idiota.