Havia passado-se uma semana desde o dia em que contei tudo à Aimée e dois dias em que minha ida a uma clínica havia sido marcada. Eu sabia que aquilo poderia não ser o certo, mas eu não seria capaz de seguir com a gravidez, ao menos não com tudo tão recente e com meu psicológico tão abalado. Iniciei a terapia há três dias e tenho notado resultado, mas sempre que fico sozinha, meus pensamentos me traem e pequenos flashes aparecem em minha mente. Não peço atenção sempre à minha amiga, pois sei o quão cansativa é a sua rotina, além de que ontem a mesma acabou discutindo com sua mãe por algo relacionado à sua irmã mais nova. A relação de ambas não é uma das melhores do mundo e isso me faz pensar na minha família que sequer se preocupa comigo ou me liga para saber se estou viva.
Quando vim para Bahia e decidi ficar, meu pai passou a me ignorar e minha mãe sequer se importou. Não peguei dinheiro deles ou pedi ajuda, já vinha juntando dinheiro há algum tempo para poder sair de casa. Família nem sempre é sinônimo de felicidade e a minha era a minha destruição. Tive muita sorte em encontrar Aimée assim que entrei na faculdade de administração. Hoje ela é a única família que importa pra mim, a única que tá sempre comigo.
Já eram quase onze da manhã quando me despeço da minha terapeuta e resolvo ir pra casa. Às vezes eu saia para me distrair, mas não conseguia comer ou beber fora de casa, já que o medo e o receio sempre estavam ali me assolando. O trânsito estava caótico devido a quantidade de turistas que visitavam Camaçari durante a época de Carnaval, o que resultou em uma demora de meia hora para que eu chegasse ao supermercado mais próximo para fazer algumas compras. Havia parado de trabalhar, mas como ainda tenho uma quantidade de dinheiro na minha conta, eu gasto ajudando com as compras do mês de Aimée. Com o mês findando, a dispensa está extremamente vazia e na geladeira só tem água. Era uma maneira de me distrair e algo que me fazia bem.
Finalizo as compras próximo à meio-dia e dirijo até o apartamento que eu morava antes de ir ficar com Aimée, para pegar algumas roupas e checar se estava tudo certo por lá. Era um bom lugar para morar, ficava no centro de Camaçari e era mais espaçoso que o apartamento de Aimée, além de não ser alugado. No entanto, quando pedi para ela se mudar para cá, ela negou e disse que mesmo seu lugarzinho sendo pequeno e apertado, era um lugar calmo para viver, ao contrário do local onde meu apartamento ficava. Não a julgo, também não ficaria por muito tempo em sua casa para mudar tanto a sua rotina, seria no mínimo dois meses.
Ao terminar de pegar minhas coisinhas, volto para o carro e dirijo de volta para o apartamento da minha amiga, batuco em minha mente que no dia seguinte eu iria na clínica para realizar o procedimento.
[...]
Abasteço a geladeira com as compras e as outras coloco no armário. Já havia feito um pouco de macarrão para almoçar e o prato esperava por mim. Abro a tampa da panela e sinto o cheiro forte e azedo do extrato de tomate. Meu estômago vai embrulhando aos poucos e logo corro para o banheiro, abaixo-me na altura do vaso sanitário e coloco tudo que eu havia comido naquele dia para fora, ou seja, nada.
Eu não havia sentido enjôo até hoje, era sempre tontura e muito sono. Sinto que minhas tripas vão sair junto a cada força que eu faço para colocar o que não havia em meu estômago para fora. As lágrimas grossas escorrem pelo meu rosto e meu corpo está trêmulo, como se eu fosse desabar. Era sempre assim que eu percebia que estava grávida.
Sento-me no chão do banheiro ao lado da privada e pego um pedaço de papel higiênico pra limpar minha boca. O gosto amargo estava em minha língua e minha vontade era de levantar pra mastigar algo que o tirasse, mas não consegui, minhas pernas não tinham forças e então, decido ficar ali até o momento em que meu corpo me autorizasse a levantar.
Cinco minutos depois me ergo, limpo as lágrimas de meu rosto e jogo o papel higiênico no lixo. Sinto-me exausta e sequer havia feito algo que me deixasse assim. Retiro meu vestido que acabou sujando e volto para o quarto para colocá-lo no cesto. Foi quando na procura de uma toalha, eu paro em frente ao espelho e noto o pequeno volume abaixo da minha barriga, um pequeno montinho. Arregalo meus olhos pela surpresa, não imaginei que já estivesse aparecendo, e automaticamente minhas mãos tocam ali, em meu ventre. Não tinha movimento, mas foi o suficiente para eu saber que uma vida cresce ali dentro e por meros segundos, aquilo acalenta meu coração. Balanço minha cabeça e sigo meu caminho a procura de uma toalha para que eu pudesse tomar banho.
[...]
Não consegui me alimentar e apenas dormi pelo resto da tarde. Acordo com a porta da frente batendo e imagino que fosse Aimée chegando do serviço. Levanto-me com a toalha enrolada em meu corpo, já que depois do banho tive coragem apenas de me jogar na cama e fechar meus olhos. Um sono imenso me consumia.
Visto uma calcinha de algodão e coloco um blusão, logo amarro meu cabelo em um rabo de cavalo e saio do quarto indo para a sala, onde uma garota cansada e estressada encontrava-se retirando o tênis.
- Tá tudo bem? - pergunto, enquanto vou até a cozinha pegar um copo d'água.
- Humm, sim. Não é algo que você tenha que se preocupar, Bel. Como foi seu dia? - Minha amiga estava com a voz exausta e eu sorri fraco para ela, enquanto levo o copo até a pia para lavá-lo.
- Foi bom até o ponto que tinha que ser. Vá tomar um banho, esquentarei uma lasanha pra você enquanto isso.
- Obrigada, você é a melhor! Mainha me ligou no serviço hoje e Elle ficou virada no cão, depois te explico melhor. - Pega sua jaqueta, tênis e bolsa e corre para o quarto e eu apenas ri, abro o congelador e pego a lasanha, coloco-a em uma pequena travessa e levo até o micro-ondas.
Deixo o mesmo no cronômetro de dez minutos e vou para a sala, sento no sofá e coloco a almofada sobre meu colo para em seguida ligar a televisão. Ainda sinto sono, mas não vou dormir ou iria acabar passando a noite toda acordada. Coloco em um canal qualquer que passava jornal e pego meu celular. Felipe, meu ex namorado, havia bloqueado-me de todas as redes sociais e eu sequer havia tido coragem de apagar nossas fotos; foi naquele momento que, aos poucos, fui excluindo cada uma. Ele não havia acreditado em mim e disse coisas horríveis, como: abriu as pernas para vários e agora não sabe quem é o pai, quer mesmo me fazer acreditar que você foi estuprada?
Homens são os seres mais nojentos e escrotos da face da terra, mas para o meu total azar, infelizmente, sou heterossexual.
- Que cheiro bom. Para minha sorte, não foi você que fez. - Ouço a voz de Aimée e manejo a cabeça, enquanto observo ela vir para a sala com uma toalha enrolada na cabeça e seu pijama totalmente infantil.
Minha melhor amiga tem vinte e quatro anos e uma alma de criança.
- Você é muito engraçadinha, querida. Saiba que hoje eu fiz um delicioso macarrão - digo orgulhosa. - Só não comi por causa do enjôo, mas pelo menos fiz.
Dou de ombros e observo ela gargalhar de mim e ir para cozinha no mesmo instante em que o apito do micro-ondas sonda. Bloqueio a tela do celular e deixo para apagar o restante das imagens depois. Direciono-me até a bancada e sento-me no banquinho, apoiando meus cotovelos sobre o mármore, enquanto noto olheiras cansativas abaixo dos olhos da mulher que coloca em seu prato um pedaço da lasanha.
- Sinto que vou desmaiar de canseira a qualquer momento. - Ela suspira e senta à minha frente com seu prato e um copo de suco.
- Você precisa encontrar um emprego que te valorize e pague bem, Aimée. Você se mata na lanchonete e recebe uma mixaria. - Encaro seus olhos e ela suspira. Sabe que eu estou certa, mas é teimosa.
- Eu vou procurar um melhor em breve, prometo. Maju aceitou a proposta que eu fiz pra ela e depois que as férias se iniciar, ela virá pra cá. Mainha ligou me xingando no serviço e eu mal pude dizer um "a" que ela desligou o telefone em minha cara e logo dona Elle reclamou por eu estar usando o celular em horário de serviço. - Com a voz desanimada ela me conta sobre o episódio e toma um longo gole de suco. - Mas logo isso melhora. E você, se sente preparada pra amanhã?
Amanhã. O dia em que eu irei na clínica realizar o procedimento do aborto. Havia pegado o resto do dinheiro que eu tinha no banco para pagar a clínica. Aimée me disse que o governo poderia arcar com os custos, mas para isso eu teria que registrar B.O e fazer corpo de delito, e eu não queria passar por tudo isso para em seguida o procedimento demorar tempos e depois ainda ser julgada pela sociedade hipócrita em que vivemos.
Eu agradeço por ter essa mínima condição de realizar um aborto seguro, já que muitas mulheres acabam indo pelo meio de remédios e chás que colocam a vida de muitas em risco, além de pessoas julgarem e dizerem que abriu as pernas porque quis, como se gravidez fosse 100% culpa e escolha da mulher.
- Eu vou estar. Com você do meu lado, eu estarei preparada.
E lhe ofereço um sorriso, disfarçando a dor no peito que eu sinto, enquanto minha mão descansa sobre meu ventre.