Capítulo 4 DANIEL

Daniel, agora amigo de Natali, resolve aparecer depois de alguns dias sem dar as caras.

– Oi, Daniel, resolveu aparecer?

– Estava realizando umas tarefas para meu pai.

– Senti sua falta, estava com saudades!

Natali abraça Daniel carinhosamente e lhe dar um beijo na testa, ele retribui. Ali já existia um sentimento ainda por revelar, mas existia o medo da inocência, olhares trocados como se quisessem falar, mas sempre receosos. Talvez pelo medo de perder a amizade, era muita admiração camuflada, de um pelo outro.

Natali agora é uma mulher vistosa, um possível retrato de sua mãe na juventude, talvez uma cópia mais aperfeiçoada em suas formosuras.

Daniel se tornara um rapaz muito belo e elegante, corpo de atleta, admirado por muitas garotas da sua idade, até mesmo as mais velhas. Ele não dá a mínima importância, seu interesse primordial é Natali, mas não tem coragem de se declarar.

– Natali, além de estar realizando umas tarefas para meu pai, também resolvi fazer um curso, mas não deixei de lembrar nenhum segundo de você. Senti muita saudade.

Natali fica um pouco constrangida pela fala Daniel:

– Daniel, aconteceram muitas coisas enquanto você sumiu, outra hora eu te conto. A boa notícia é que meu padrasto arrumou um emprego e parou de beber.

– Legal, isso é bom! Eu me lembro que ele bebia, mas não era muito, e depois que Jairo morreu ele passou a beber mais.

– Mas agora está tudo bem, tudo na santa Paz...

– Como você está indo na escola?

– Estou bem, estou pensando que, no próximo ano estudarei a noite. Quem sabe arrumo um emprego durante o dia. Minha mãe precisa de ajuda, a situação está complicada, os meninos crescendo, as despesas aumentam.

– Eu também estava pensando a mesma coisa, por isso estou fazendo o curso, buscando uma forma de me aperfeiçoar. Bem que eu estava pensando também, quem sabe, poderíamos estudar na mesma escola.

– Uma boa ideia, não iria só para escola.

– Mas primeiro tenho que falar com meu pai.

– Faça isso, por favor. Tomara que ele deixe, eu adoraria estudar com você.

Eles se davam tão bem que não viram o tempo passar, já era tarde. Daniel não percebera, foi preciso Joelma avisar do horário. Daniel vai para casa.

Natali vai deitar com um ar de garota apaixonada, suspirando brisas, caminhando em plumas, sorrindo para as paredes. O simples sumiço de Daniel por algum tempo e sua volta repentina, despertara em Natali algo diferente que ela ainda não havia sentido em sua vida.

No dia seguinte Daniel retorna, são tantos assuntos que Joelma fica boquiaberta. Se deixasse, eles passariam dois dias ali, sem comer e sem beber, somente conversando. Joelma já havia sentido isso na sua adolescência, por esse motivo, os deixa à vontade, mas claro, com um olho aberto outro fechado; nessa idade os hormônios gritam para se libertarem. Compreende que esta é uma fase de descoberta na vida dos dois, talvez algo além da amizade está surgindo ali.

O mais importante é que eles não se dão conta disso, e Joelma enxerga tudo, até com um certo humor, eles não percebem ainda a necessidade constante que se faz da presença um do outro.

Todos os dias Joelma avisa:

– Daniel, é hora de ir!

–Não, mãe, ainda é cedo!

– Minha filha já é tarde!

– Está bem, dona Joelma, eu já vou.

Ele ainda enrola um pouquinho, mas Joelma aparece novamente, somente olha para os dois, Daniel desconfiado:

– Eu já estou indo, saída mais que rápida.

Ele diz isso e se vai, Joelma acha graça.

Dia após dia, no mesmo horário, era como se fosse um namoro. Daniel já havia chegado, depois dos cumprimentos sentam no banco de cimento, sempre gelado, mas eles sequer sentem. Daniel, então, faz uma pergunta:

– Você já namorou alguém, Natali? Ou está namorando?

Natali dá um sorriso sem graça, havia sido pega de surpresa, não dava tempo de pensar numa resposta. Como dizer a ele que, na sua imaginação, era ele o namorado. Com o rosto meio corado de vergonha, não consegue dizer a sua real pretensão:

– Não, eu não tenho namorado e nunca namorei ninguém.

– Você já beijou alguém?

Natali olha pra Daniel com mais surpresa, hoje ele parecia estar disposto a deixá-la vermelha de vergonha. São interrogações que ela não quer responder assim, no repente. Talvez até já tenha imaginado uma conversa espontânea para que essas coisas fossem reveladas naturalmente:

– Já, Daniel, eu já beijei e gostei muito.

Daniel baixa o olhar, com uma tristeza repentina... talvez estivesse iludido. "Ela gosta de outra pessoa", foi o que passou em seus pensamentos como se fosse um relâmpago:

– Posso saber quem é?

Ela olha para ele, e pensa que, por um momento, ele choraria. Seu semblante alegre desaparecera, ele agora sente carregar o peso da primeira - suposta - desilusão. Ela sorri para ele:

– Daniel, o único rapaz que eu beijei foi você!

Daniel olha para ela, assustado e meio cismado:

– Eu não me lembro disso, Natali.

Ela sorri, ele fica desconcertado por acreditar que ela está tirando onda com sua cara:

– Daniel, quando eu te beijo na testa, esse é um beijo. Nunca beijei nenhum rapaz na testa, só você.

– Mas eu não estou falando desses beijos.

Natali abaixa a cabeça, envergonhada.

– Daniel, por que você resolveu tocar nesse assunto?

– Preciso saber, não pode?

– Estou sem graça!

– Eu estou a fim de você!

– Mas nós somos somente amigos.

Ela diz isso quase se arrependendo, mas são as primeiras palavras que saem da sua boca. Ela está nervosa, sem saber como reagir. Realmente sabe o que deseja, mas estava fugindo, talvez por medo de encarar o primeiro contato físico:

– Tá bom, Natali. Eu me enganei, achei que você estava a fim também.

– Não, Daniel. Você me pegou de surpresa.

– Então eu tinha que escrever um bilhete avisando que entraria nesse assunto?

Natali ri com a ironia de Daniel:

– Claro que não, Daniel. Eu pensava que essa hora demoraria a chegar, por isso estou surpresa.

– Eu não entendo, eu sinto que você gosta de mim, por isso resolvi falar.

– Eu sei, Daniel. Eu gosto de você, mas estou meio sem jeito.

Os dois se encaram por um minuto, fazendo desse momento algo único na vida de dois adolescentes. O coração acelera tanto que, no silêncio da noite de lua clara, dá para ouvir o ritmo das batidas do coração, o pulsar da corrente sanguínea. Os dois tremiam.

Daniel leva as duas mãos na face de Natali e segura levando sua face ao encontro da face dela. Quando os lábios estão em busca do caminho do encontro, Natali recua:

– Para, Daniel. Eu estou nervosa!

– Natali, eu sei que você quer, eu também quero.

– Minha mãe pode ver, e os meninos também.

– Sua mãe está cochilando na sala, os meninos estão brincando na rua. Seu Edson já foi para o quarto.

– Mas Daniel, me dá um tempo... Eu gosto de você, mas eu não estou preparada.

– É apenas um beijo!

– Para você é, pra mim é especial.

– Um bolo de cenoura não se faz só, precisa dos ingredientes e de quem faça!

Natali dá uma gargalhada e Daniel fica sem graça.

– Que comparação mais besta, Daniel. Eu não sou o ingrediente do bolo.

– Sei lá, foi a primeira coisa que veio à minha cabeça.

– Bem esquisito ser comparada com ingredientes de um bolo!

– Eu não soube me expressar muito bem, me desculpe. Mas o que eu quis dizer foi que para tudo na vida existe um começo, o primeiro passo, não começamos nada pelo fim.

Natali então pega Daniel de surpresa, e toma a iniciativa. Sem ele esperar, ela lhe dá um beijo. Ele fica pasmado, o sangue no momento ferveu, misturando entre a emoção e o medo de não saber fazer. Mas esse é um ato impulsivo de cada ser humano, cada um tem o seu jeito especialmente individual de fazer e sentir. É nesse momento que descobrimos uma química jamais aperfeiçoada por cientista, tudo é extremamente sobrenatural.

Eles se afastam um do outro, ela o olha, séria. Ainda com o jeito ruborizado, de corpo e espírito. É um sentir diferente, algo que ela jamais provara antes, talvez o gosto invisível de uma paixão ou mesmo o sabor indescritível do amor. Para ela, era muito estranho o que estava acontecendo agora, estava a conhecer seu corpo através das imperfeições dos sentimentos, pois, eles nunca nos definem. O que realmente nos definem são as ações, mas o início de tudo é dentro da nossa mente.

Daniel olha para Natali depois do beijo, dá um sorriso, nesse momento entra o ego do machismo em busca da aprovação, ao qual os homens já têm desde sempre:

– Gostou?

Quem sabe, não seria melhor dizer "nunca senti nada igual". Ou até mesmo "foi demais"! "nunca vou me esquecer desse momento". Mas o ego sempre fala mais alto, mais parece que o ato da liberação dos feromônios faz parte do ego machista. Ela respondeu:

– Sei lá, é uma sensação diferente, meio estranha. Acontece dentro e fora de mim, definiria com todos os sabores do mundo, misturados. O sentir é um sabor sem explicação.

– Não entendi nada, mas deixa para lá.

– Como vou deixar pra lá se pra mim é especial?

– Não, eu quis dizer que foi bom. Pra deixarmos pra lá as explicações.

– Daniel você perguntou se eu gostei e eu expliquei da minha maneira. É como mentir, saber que é pecado, mas o sabor do pecado é o fazer. O ato é doce, as consequências são sempre amargas.

– Não seria mais simples você responder: gostei ou não gostei. Minha cabeça tá em parafuso.

Daniel ainda não sabe, com tempo deve aprender. É que as mulheres se ligam aos mínimos detalhes e gostam de serem ouvidas.

– Daniel, meu amigo, nesse beijar, sentir o gosto do pecado em mim, me chamando para mais além.

– Depois desse beijo ainda sou seu amigo?

– Claro que é, inimigos não se amam.

– Você me ama, então?

– Não sei definir o amor, o pecado talvez. Gostei desse sentir inexplicável.

– Se apenas um beijo você complica tanto, imagine outras coisas!

– Que outras coisas?

– Deixa pra lá, com o tempo aprenderemos juntos. Me beija de novo.

Então Natali beija Daniel mais uma vez, sem o receio do primeiro beijo. Como todas as adolescentes, fantasias foram formadas antes de tudo acontecer. Daniel nunca saberia as verdadeiras razões e o resultado de cada ato na cabeça dela. Somente elas sabem, são os segredos mais secreto do íntimo de uma mulher.

Ela sabe qual é a outra coisa a qual Daniel se referiu. Às vezes, a virgindade do corpo não refletem a virgindade da cabeça, nem sempre são similares.

Natali faz uma viagem momentânea em seus pensamentos, o coração pergunta à sua a mente, aguçada pelo momento. Será que seu padrasto admirava suas pernas com tanto desejo que dava pra perceber em seus olhos quase pulando para fora do rosto, como Daniel está demonstrando agora achando que ela não percebeu, será que ela realmente em seu íntimo não gostava de provocar esses desejos, e até se divertia com isso.

Ela realmente gostava de ser cobiçada com olhares, era seu gostar secreto, que nunca revelaria a ninguém, quem sabe um dia a alguém especial, a resposta do seu íntimo a esse gosto secreto era respondida com um sorriso sinistro ao ego que só ela mesmo entendia, fora dos padrões normais de uma adolescente, enchia-se de vaidade exagerada.

Antes de Daniel ir embora, ele firma com ela um compromisso de namoro, consentido por ela. Informaria a sua mãe e logo ele iria falar com Joelma, assim combinaram.

Natali passa todo o dia com ar de apaixonada. Espera Joelma chegar e conta o que tinha acontecido. Joelma recebe a notícia com bastante naturalidade, é como se soubesse de tudo.

– Coisas da adolescência.

ela comenta.

Ao entardecer, Daniel chega à casa de Natali, ela o recebe no portão com um beijinho selado. Se sente meio envergonhada por seus irmãos presenciarem. Neiva comenta:

– Namorando?!

Mas os dois não dão atenção, saem pra dar uma volta, com autorização de Joelma. Quase anoitecendo, os dois retornam, tinham ficado numa pracinha ali perto da sua casa. Sentaram no banquinho de cimento, era uma noite fria. Sentiram-se à vontade para se aquecerem com abraços, ficaram namorando por um bom tempo.

Quando Edson chega, estavam se beijando. Ao ver aquela cena, não se conteve, fica furioso, e vai logo gritando:

– O que é isso?

– Daniel é meu namorado!

– Passa já pra dentro, Natali. Isso é uma vergonha, sua mãe não está vendo isso não?

– Ela sabe que Daniel é meu namorado!

– É um moleque! Um moleque!

Edson vai em direção a Daniel para agredi-lo. Natali se coloca na frente dele e pede para Daniel ir embora.

Os vizinhos, curiosos, nesse momento deixam suas telas internas de entretenimento e visualizam a tela dos acontecimentos, pelos cantos das janelas. O espetáculo ao vivo parece ser mais interessante. Mas assim é o viver, a vida e as ocorrências alheias são mais importantes do que as próprias.

Joelma ao ouvir a gritaria de Edson, sai apressada para saber o que estava acontecendo:

– O que está acontecendo aqui?

Natali chora sentada no banco. Seus irmãos ficam todos com medo de Edson e da sua reação, correm para o quarto e se trancam. Faz um bom tem que eles não viam Edson brigar.

Ele puxa Natali pelo braço pra fazê-la entrar. Natali repete pra ele:

– Eu não vou entrar!

Joelma tem uma reação explosiva ao ver a cena:

– Larga ela, Edson! Solta agora!

Edson não diz mais nenhuma palavra, solta Natali e entra.

– O que aconteceu Natali? Joelma pergunta.

– Ele me viu eu beijando o Daniel, não gostou, ficou irado, queria até bater nele.

– É normal, filha, é ciúme de pai.

– Ele não é meu pai, e isso não é ciúme de pai, mas de um alucinado. Ele não me vê como filha, ele me deseja.

Quando Natali termina de falar, Joelma ergue a mão e lhe dá uma bofetada na cara. Natali, chorando, diz:

– Mãe, por que a senhora fez isso? A senhora nunca me bateu, e sabe que eu tenho razão.

Joelma com os olhos lacrimejados e arrependida pelo seu ato repentino, se ajoelha diante de Natali:

– Perdão, minha filha, me perdoa!

Ela abraça Natali, chorando. A garota fica paralisada, sem nenhuma reação. Olha pra sua mãe que está chorando, com o coração amargurado, não menciona uma só palavra, apenas se levanta, vai para seu quarto que divide com Neiva que, já está dormindo e se tranca. Talvez até o coração, agora esteja selado com cadeado pra nunca mais abrir.

Edson, ainda enfurecido, conversa com Joelma:

– Eu não quero mais aquele moleque aqui em casa.

– Mas Edson, ele é um bom menino.

– Não quero nem saber, Natali tá muito nova pra namorar.

– Mas se nós não deixarmos, ela vai fazer escondida, o que é pior.

– Ela precisa aprender te obedecer, e papo encerrado.

Joelma aceita tudo, passivamente. Não querendo mais desentendimentos ou tampouco que ele voltasse a beber, ela promete que vai conversar com Natali para terminar o namoro, mas ela própria tem certeza que tudo que estava acontecendo não era uma simples preocupação de pai.

Ele procura Joelma como se nada tivesse acontecido, ela se sujeita a ele, simplesmente por acreditar estar cumprindo seu papel de mulher. Não tem mais alegria e os prazeres dos primeiros anos de casada, as vezes até finge estar gostando, é a decadência do casamento diante do comodismo e rotinas diárias.

Joelma é uma mulher vistosa, mas ela não se sente assim, sente estar cumprindo mais uma tarefa do seu casamento. É uma triste situação, simplesmente se sujeitar, é como se fosse um depósito de excremento sexual. Ela sente que nesses momentos, Edson não pensa nela, mas sim, em sua filha. Algumas vezes, ouvia ele sussurrar o nome de Natali, mas aceitava tudo em silêncio. Por causa de Natali, ela decide ser usada, com esperança de que ele nunca ousasse tocar em sua filha, o resto era só se acostumar com a situação.

Os dias se passam e tudo corre aparentemente normal. Reinaldo, Cristiano e Neiva vivem em seus mundos exclusivos, alheios aos acontecimentos, era uma questão quase que inconsciente de autoproteção.

Natali prometeu que terminaria com Daniel, mas continua encontrando com ele em segredo. Joelma tinha conhecimento disso, quando estavam namorando Daniel sempre dizia:

– Tenho a impressão que estamos sendo observados.

– Deve ser por que estamos namorando escondido.

– Não é não. Natali, tenho certeza que tem alguém nos vigiando.

– É só impressão sua, me dá um beijo!

Às vezes, uma paixão supera todos os obstáculos, mas Daniel era muito desconfiado, tinha também muito medo que o padrasto de Natali fizesse algum mal pra ela. Natali se sente segura e tranquila, acredita que sua mãe sempre avisará de alguma coisa, mas ela esquece que nem tudo que Edson fazia, Joelma tem conhecimento.

Nesses encontros em segredos, eles procuravam sempre lugares afastado para não serem vistos juntos, as vezes eram lugares ermos e isolados.

– Natali, tem horas que você me deixa doido!

– Que conversa é essa, Daniel?

– Você aprendeu rápido demais.

– Tive um ótimo professor.

Daniel abraça Natali e a acaricia com suas mãos, tentando viajar a lugares desconhecidos.

– Daniel, é melhor parar, sua mão tá muito boba hoje!

– É vontade, Natali!

– Essa vontade só está com você, então é melhor parar!

– Por que não podemos, Natali? Eu te amo!

Natali fica pensativa.

– Você não me ama, Natali?

Ela não responde, apenas dá um sorriso, beija-o com muito ardor:

– Não! Se você não parar com essa mão boba eu vou embora!

– Tá bom, não forçarei mais a barra!

– Daniel, quando eu achar que é a hora, você será o primeiro a saber. Não imagino essas coisas assim, dessa forma, no meio da rua. É muito estranho.

– Tá certa, me desculpe, terei mais paciência.

– Eu serei completamente sua um dia.

Quando ele ouve essas palavras, se alegra por inteiro. Continuam namorando sem sinal verde. Mesmo em lugares mais afastado, Daniel tinha sempre a mesma sensação de que estavam sendo observados.

Natali vive uma vida pacata, as vezes achava até divertido estar namorando escondido, dá uma sensação de aventura.

Bate, de vez em quando, uns momentos de nostalgia, quando relembrava de Jairo. Sente ainda muita falta dele, todos acreditavam que ela esquecera a promessa de vingança. Se lembra com frequência, só não mencionara com mais ninguém, nem mesmo com Daniel. Tinha essa ideia de vingança fixa em sua mente, e sabia que realizaria, nem que demorasse toda uma vida.

Outra vez, Natali pergunta para sua mãe sobre seu pai. Joelma enruga a testa, a boca entorta um pouco para um lado, de um jeito quase charmoso e, rapidamente disfarça e muda de assunto.

Natali se pergunta "que mundo era esse, no passado dela, que nunca queria comentar?", o que havia por trás de tanta fuga quando o assunto tinha a ver com seu pai.

Edson, agora mais calmo e, acreditando que Natali realmente havia rompido o namoro com Daniel, ao perguntar por onde anda Natali, Joelma sempre inventava uma desculpa. Edson aparenta acreditar, era sempre convincente.

Ele, por sua vez, parece nutrir ainda mais paixão por Natali, ou uma obsessão doentia. Joelma percebe tudo. Havia uma distância que ele mantinha de Joelma, só a procurava quando estava com suas necessidades a serem descarregadas. Ela aceitava tudo por amor a Natali, mas se sentia um lixo em todo final de ato.

No íntimo de Joelma, seu sofrimento solitário, no qual Natali nem tem noção, enquanto estiver dessa forma, sem pretender tocar em Natali, tudo permaneceria bem, ou quase isso. Joelma acredita que seu destino já havia sido traçado, que a reta final era ali, ao lado de Edson, suportando seus sussurros e sendo usada como mercadoria sem valor.

É a alma tentando sobreviver às lamúrias do corpo, que vaga por terrenos ermos pela segurança de seus filhos. Para ela nada mais importa, apenas a segurança deles, aceitaria tudo de ruim na vida apenas para protege-los.

Joelma não acredita em Deus, devido ao seu próprio sofrimento, um Deus que a deixara sofrer, mesmo tendo tanto poder pra resolver qualquer coisa, apenas num piscar de olhos. São muitos momentos de reflexão em seu íntimo... desespero e agonia.

Em alguns momentos, recua, quando pensa em seus filhos. Eles precisam da proteção de um Deus que, pra ela não existe, mas para eles, sim. Havia confusão em seus pensamentos, como alguém que se julga ateu e que na hora do sufoco apela para Deus, pedindo ajuda.

Ela mesma nunca foi de agradecer a Deus, se inspirava no dom maternal como sendo seu próprio Deus a adorar, tudo que consegue é por esforço próprio, não por uma força sobrenatural.

Considerava Deus um brincalhão, invisível aos olhos humanos, que desejava que as pessoas percebessem sua presença apenas com o sentir, um ser misterioso que brinca de esconde-esconde..., mas Joelma não passa essas ideias para seus filhos.

Natali percebe em algumas atitudes que, sua mãe, não fazia muita questão de apelar para Deus, mas ela fazia suas preces, recorria a Ele na aflição. Acredita que Deus era que lhe dá forças para viver e superar barreiras. Ela sempre repetia:

– Tudo nessa vida é momentâneo e, haverá de passar, sejam as coisas boas ou ruim, elas passam. Ainda reflete sobre a salvação, tem a certeza dela, mas, se confunde sempre com o pensamento de vingança. Não entende como uma pessoa consegue perdoar uma ofensa, como perdoar o assassino do seu irmão. Considera muito hilária essa atitude, é uma lacuna a ser preenchida na vida de Natali.

Pensa no seu pai, que não consegue se lembrar... Será que é como Deus que, não conseguimos imaginar sua imagem verdadeira, as premonições antes dos acontecimentos...ela não conseguia entender que força era essa, de onde vinha, seria vinda de Deus ou de outra coisa?

Alguns meses se passam, Edson não bebe mais, mas o seu modo de agir continua possessivo, isso deixa Joelma muito preocupada, Natali continua namorando Daniel, em segredo. O alívio de Joelma é que desde o dia da confusão, Edson não dirigiu a palavra a Natali. Isso evita principalmente os conflitos, mas seus olhares sempre a procura com admiração, talvez, uma obsessão.

Está chegando o natal, Natali e os irmãos passam de ano com méritos, estão de férias.

Natali, então, resolve sair para mais uns dos seus encontros secretos com Daniel, ela realmente parece gostar dessa situação. Pensa que se não fosse isso, o namoro não teria durado tanto. Ele espera pacientemente pelo dia prometido por ela, mas ela sempre se esquiva. A mão dele tenta recordar a fazer viagens a lugares desconhecidos, mas ela o freava sempre.

– Natali, acho que vi uma sombra de alguém. Hoje eu tenho certeza que nos observam.

– Vamos embora, estou sentindo as mesmas coisas do dia que Jairo morreu, não gosto dessa sensação.

– Você tem certeza que seu padrasto não te seguiu?

– Quando eu saí, ele ainda não tinha chegado do serviço.

– Não gosto dessa sensação de estar sendo observado.

– Então, vamos embora.

– Vamos namorar só mais um pouquinho.

Vamos embora, prometi para minha mãe que voltaria mais cedo hoje. Para ajudar a montar a árvore de Natal.

– Eu só queria mais um pouquinho!

– Vamos embora, quero evitar conflito com aquele idiota do meu padrasto.

– Só mais um beijinho!

Se beijam, saem daquele lugar até um certo ponto, depois se despedem. Quando Daniel se afasta, Natali sente uma vertigem e grita:

– Daniel!

– O que foi, Natali? Você me assustou!

– Não vá por esse caminho, por favor!

– Você está bem, Natali?

– Só foi uma tontura passageira, estou melhor. Mas algo está me dizendo pra você não ir por aí, não passe no escuro, vá pelo claro.

– Tá bom, eu vou pelo outro caminho, mas eu vou te levar em casa.

– Não, Daniel, meu padrasto pode ver.

Mas ele convence Natali a deixa-lo ir, quando chegam próximo à casa, com todo cuidado para não serem visto juntos, se despedem:

– Não vá pelo caminho de sempre.

– Tá bom. Mas eu acho besteira, pelo outro caminho eu demoro mais.

– Por favor, Daniel, me atenda!

– Tá, eu vou pelo claro, não se preocupe.

– Vou confiar.

Daniel se foi, Natali foi para sua casa, chegando antes do padrasto, uma meia hora depois Edson chega com umas sacolas cheias de presente, inclusive, até para Natali.

– Não tá cedo pra comprar os presentes, homem?

– Não, mulher, se deixar para comprar mais próximo, as lojas ficam muito cheias.

– Foi por isso que você demorou hoje...

Ele, então, tira das sacolas e, dá a cada um o seu presente. Os meninos e Neiva o abraçam com muito carinho. Joelma se sente um pouco emocionada. O presente de Natali ele pede para Joelma entregar. Calças, blusas, vestidos e saias, ele sabe exatamente as medidas de Natali. Todos os presentes são de bom gosto. Para Joelma ele dá vários presentes também. Além das roupas, ele dá à Natali um conjunto de pulseiras, brincos e anéis. Joelma fica um pouco cismada, mas nada comenta, ela simplesmente quer paz dentro de casa.

Quando Joelma entra no quarto com os presentes, Natali recusa, Joelma implora para que ela aceite, apenas para evitar confusão. Após muita insistência da parte da mãe, ela resolve aceitar e pede para agradecer. Ao ver os presentes, lágrimas saem dos olhos de Natali, pensa que tudo poderia ser diferente. Joelma percebe, a abraça com muito carinho e chora junto com ela.

– O que você está sentindo agora, minha filha?

– Não sei, mãe, é só vontade de chorar, tudo poderia ser tão diferente. Estou sentido um aperto no coração, muitos calafrios.

– Deve ser a emoção da chegada de mais um final de ano.

– Acho que não é, eu senti a mesma coisa antes de Jairo morrer.

– Filha, não se preocupe, isso não é nada. Talvez seja a falta de Jairo que você está sentindo agora, vocês dois eram muito apegados.

Joelma abraça Natali com ternura e proteção de mãe, mas seu coração está preocupado com tal melancolia de sua filha...:

– Boa noite, filha. Durma bem!

– Mãe!

Joelma quase saindo do quarto quando Natali a chama de volta:

– Pega, mãe, isso aqui deveria ser pra senhora.

Com as mãos estendidas, nelas a caixa com o estojo de pulseiras, anéis, brincos e colares:

– Que é isso, minha filha?

– Mãe, é a senhora é quem merece esse presente e não eu, é seu por direito.

– Mas ele comprou pra você, minha filha.

– Ele deveria ter dado esse presente pra senhora, que é a merecedora desse presente.

– Ele comprou presente pra mim também.

– Somente roupas, não foi?

Natali olha nos olhos de sua mãe, fixamente, com lágrimas, vê Joelma fazendo uma afirmação à sua pergunta, Natali sente um constrangimento no seu coração, na verdade sua mãe era quem tinha o direito de ganhar presentes, e não ela. Edson comprara apenas o que Joelma precisa, apenas roupas e não algo que agradasse sua alma, inspirasse afeição.

– Minha filha, ele comprou pra você, deve ficar com você pra que não haja contendas.

– Mas isso não é correto, mãe.

– Minha filha, eu admiro tanto você, tão nova, se mantém com uma integridade maravilhosa, mas devemos evitar confusão.

– Eu vou usar, mas esse presente é seu, eu vou guardar depois de usar uma vez. Ele será sempre da senhora, são todas lindas, seu esposo tem bom gosto.

– Aposto que foi a vendedora que escolheu.

Natali sorri, Joelma concorda que os presentes seriam seus, Natali só guardaria, mas no seu íntimo ela sente vergonha que, por um momento, ela tenha sentido ciúme de Natali por Edson ter lhe dado os presentes. Saiu do quarto com o coração cheio de orgulho por saber que sua filha está crescendo e se tornando uma mulher com integridade e carisma.

No dia seguinte, rumores pela vizinhança de que tinha sido encontrado um cadáver nas proximidades, um rapaz aparentemente jovem. Estava muito deformado por muitas pancadas no rosto, o crânio tinha sido arrebentado, não dava pra reconhecer.

Natali acorda com uma forte sensação de fim, parece que era o fim do mundo. Um imenso vazio tomara conta de sua vida naquele momento, não sabe definir porque se sente assim, com muito medo.

– Mãe, estou triste e com medo ...

– Por que, filha?

– Não sei, mãe, é uma sensação estranha, não tenho motivo algum pra estar assim... sinto que aconteceu ou vai acontecer algo muito ruim.

– Já aconteceu, filha...

Natali sente um arrepio em todo o seu o corpo, esperando o pior.

– O que aconteceu, mãe?

– Encontraram um rapaz morto, logo ali na rua de baixo. Dizem que não sabem quem é, seu corpo estava todo deformado, quebraram sua cabeça, o deixaram irreconhecível, foi muita covardia.

Natali sente em seu íntimo uma tristeza profunda, uma enorme vontade de chorar e gritar, coração acelera e desfalece. Cai ao chão.

Joelma, imediatamente, dá um grito de desespero. Cristiano vai correndo pra ver o que tinha acontecido e, ao ver Natali caída, não pensa duas vezes e, sem perguntar nada pra sua mãe, sai à procura de uma vizinha que é enfermeira e a leva pra socorrer Natali.

Feito os procedimentos necessários, Natali volta a si:

– O que aconteceu, mãe?

– Você desmaiou, minha filha.

Joelma e a enfermeira pegam Natali e a levam ao quarto. Um silêncio interrogativo entre os olhares de Joelma e a enfermeira se perde nos ares, sem palavras, elas já sabem da pergunta uma da outra: será que Natali está grávida? Natali é muito aberta com Joelma, se realmente tivesse acontecido alguma coisa, Joelma seria a primeira a saber.

Natali é colocada na cama, já havia melhorado, todos saem do quarto, mas Cristiano fica com ela:

– O que você acha que aconteceu? Joelma pergunta.

– Joelma, pode ser uma fraqueza, anemia faz isso. Seria bom ela ir ao médico pra examinar, somente os exames podem responder.

– Eu desconfio de algo, creio que você também...

– É uma possibilidade.

– Mas será? Ela sempre me conta tudo, acho que algo assim ela não me esconderia, conversamos muito sobre essas coisas.

– Deixe-a melhorar, daqui uns dois dias você conversa com ela, ela se abrirá com você. Também acho que vocês são muito amigas, tenho observado isso, se for mesmo isso que estamos pensando, outros sintomas virão, leve ela ao médico.

– Está bem, você sempre foi uma amiga, muito obrigado por ajudar. Se Deus quiser ela não está grávida, acho que ela não fez nada, acredito nisso.

– Seria bom mesmo, ela ainda é uma criança. Mas deve procurar um médico, as vezes um desmaio não é nada, mas outras vezes é indício de um problema.

– Obrigado, minha amiga, qualquer coisa eu te aviso.

– Certo, vou pra minha casa, precisando é só chamar.

Joelma fica só com os seus pensamentos, pensa numa suposta gravidez de Natali...isso não poderia ser verdade, se fosse, sua vida viraria um inferno, Edson não aceitaria de forma alguma. Ela se sente ansiosa, talvez, em desespero antecipado. Quando Natali melhorar, ela conversará com ela, pois, de alguma forma, terão de resolver esse suposto problema,

Ela pensa que Natali perderia o brilho da juventude, como ela própria perdeu quando ficou grávida, precocemente, de Natali. Torce para que não se confirme.

Natali conversa no quarto com Cristiano:

– Cristiano, você sabe que eu namoro escondido com o Daniel?

– Claro, aqui em casa só quem não sabe é meu pai, até Neiva que é voadora tá sabendo. Mas nós combinamos não contar nada para o meu pai e nem pra ninguém.

– Acho que alguma coisa aconteceu com Daniel, eu sinto isso.

– Por que você desmaiou, Natali?

– Não sei, foi uma tontura repentina, senti uma coisa estranha, tão forte e, não vi mais nada.

– Você tá doente?

– Acho que não, é só fraqueza mesmo. Preciso que você me faça um favor...

– Fale!

– Queria que você fosse até a casa de Daniel, ver se está tudo bem e, também avisar que hoje eu não vou encontrar com ele, você explica que eu não estou bem.

Cristiano toma seu café da manhã, vai até a casa de Daniel para levar o recado de Natali e, ver também se está tudo bem.

Depois de quarenta minutos, Cristiano retorna com notícias de Daniel:

– E aí, Cristiano, falou com Daniel?

– Não falei, mas conversei com o pai dele.

– Com o pai dele? Ele não foi trabalhar hoje?

– Não, ele não foi, estão todos preocupados, Daniel não apareceu em casa ontem. Está desaparecido. Não é costume de Daniel passar a noite fora, sem avisar. Ele me perguntou se tinha vindo ontem aqui em casa, eu disse a ele que tinha bastante tempo que Daniel não vinha aqui.

Natali fecha os olhos, quase que com a mesma sensação do desmaio, mas resiste. Sente a mesma intuição de que algo de ruim havia acontecido. Pensa que o rapaz que haviam encontrado morto, seria o próprio Daniel:

– Cristiano, o rapaz que mataram ainda está lá na rua?

– Não, já levaram o corpo.

– Era em qual rua?

– Abaixo daquela praça que de vez em quando você fica com Daniel. Uma rua meio escura que vai direto pra casa dele, eu fui por lá. O carro tinha acabado de levar o corpo, tinha muito sangue derramado. A polícia acha que ele foi espancado até morrer, não dava pra saber quem era, acham que é briga de gangues.

Natali pensa um pouco consigo mesma: será que Daniel teimou e voltou pela rua escura?

O rapaz morto poderia ser Daniel.

Cristiano sai do quarto, ela fica a pensar em toda as possibilidades, tinha quase certeza em seu coração que aquele rapaz era Daniel.

Seus pensamentos voltam para Jairo, tudo que sentiu naquele dia estava sentindo outra vez, não restava mais dúvidas, aquele rapaz morto era Daniel.

– Deus não é tão injusto! Ela repete isso em voz alta e Cristiano retorna ao quarto nesse exato momento:

– Com quem você está conversando, Natali?

– Com ninguém, Cristiano, eu só quero ficar só!

– Tá bom, eu vim ver se você estava precisando de alguma coisa.

– Desculpe, meu irmão, eu não estou precisando.

Cristiano se retira do quarto, com ar de preocupado. Ele sente que sua irmã não está bem, mas, mesmo assim, resolve atender seu pedido de ficar só.

Natali, com todas as certezas no coração, chora silenciosamente, não tem mais nenhuma dúvida em sua mente... era Daniel, ela repete consigo mesma em som audível:

– Minha alma está sendo empurrada para a sobrevivência desde a morte de Jairo, agora ela não consegue mais, faleceu.

Aquele brilho da juventude desvanecera do coração, um amadurecimento precoce formatou a vida como sendo enganosa para ela. ela tinha em seu ser uma revolta permanente agora ao ponto de colocar a culpa em Deus, falava que Deus era cruel.

Ali está uma garota totalmente fria, ao ponto de ser gelo, suas emoções já não existem, as lágrimas foram retidas no seu coração. Mesmo sem confirmação nenhuma, ela se antecipara, calcula cada pensamento, cada ação.

Enquanto isso, Joelma pensa em suas dúvidas com relação à sua filha, como faria pra entrar no assunto sem causar uma possível contenda. Pensa em dar mais um tempo, não era o momento ideal para uma conversa, o natal estava chegando, ela quer paz nesse momento, nada de pensar em consequências futuras.

Ao anoitecer, Edson chega em casa com uma felicidade extrema no rosto, trouxe três pizzas grandes e refrigerantes, Joelma pergunta:

– Tem festa hoje, Edson?

– Não, Joelma, só me sinto feliz hoje.

– Chame todos pra comer, enquanto tá quente.

Edson está numa felicidade extasiante. Natali acha muito estranho, mas passa em branco, era só mais um momento em família.

Quando todos estavam na sala, inclusive Natali, ele fala:

– Mulher e crianças, estou feliz hoje por que fui promovido, agora sou chefe de produção, o salário melhorou.

Todos festejam, menos Natali. Para o espanto de todos, Edson pergunta à Natali:

– Você não gostou da notícia, Natali?

– Gostei, meus parabéns.

– Não parece...

Joelma interrompe a conversa deles, antes que vire uma contenda:

– Sabe, Edson, Natali passou o dia todo de cama, está um pouco adoentada, por isso não está alegre.

Edson então muda de tom, fica preocupado:

– Levou ela ao hospital?

– Não, a nossa vizinha enfermeira veio aqui, examinou ela, deve ter sido alguma coisa que comeu e não fez bem.

Edson se mostra exageradamente preocupado:

– Mas, Joelma, ela é enfermeira e não médica.

– Mas ela já está melhor, homem.

– Amanhã eu não vou trabalhar, vamos levá-la ao médico.

– Não precisa, Edson, já estou melhor. Minha mãe fez um chá, melhorei muito, amanhã estarei recuperada.

Joelma ali, fica preocupada com duas coisas: a iniciativa de Natali ter falado e, Edson com intenção de leva-la ao médico. Se Natali estiver realmente grávida, ele não poderia descobrir dessa forma, o terreno teria de ser preparado antes.

– Homem, preste atenção, você acabou de ser promovido. Logo no primeiro dia como chefe, não vai trabalhar?! Isso não é bom.

– Está bem, você tem toda razão. Senta aí, Natali, pega um pedaço de pizza pra você.

Natali atende ao pedido dele, por perceber o quanto Joelma havia se esforçado pra que a noite não terminasse em confusão. Natali se manteve alheia aos demais, seus pensamentos eram somente em Daniel. Por um momento resolve ser positiva e tirar as tragédias de seu pensamento.

O poder negativo de um ser humano, pode influenciar o percurso de toda uma vida.

Tudo corre muito bem naquela noite memorável para Edson, mas sua felicidade parece ser contagiante, não somente pela promoção, mas algo a mais havia acontecido.

Ele sente algo, mas não sente culpa do mal que ele estava fazendo a duas pessoas ao mesmo tempo. Parece tudo normal, de acordo com sua visão e pretensões futuras.

Para quem tem consciência, a culpa amarra e escraviza o coração quando se comete um erro. É o navegar sem poder sair do lugar, é âncora que arrasta, fixa em rocha no fundo do mar. O fundo do coração é uma constante agonia.

Edson é, em outras palavras, um homem dominado pelos desejos insanos. Mesmo tendo uma mulher nova, vistosa e carinhosa, sua obsessão por Natali se tornara mais evidente a cada dia, causando sofrimento a mãe e filha.

Natali não consegue dormir, pensando em Daniel. Dorme já quase pela manhã. Ela chega ver a hora que Edson sai para trabalhar, e então, consegue adormecer. Joelma sente que Natali não havia dormido direito, e a deixa dormir até mais tarde. Pede aos outros que não façam barulho.

Ao final da manhã, Joelma chama:

– Acorda, dorminhoca!

– A senhora não foi trabalhar hoje?

– Não, é final de ano, o serviço diminui, peguei o resto da semana de folga. Também quero conversar com você.

– Lá vem bomba! Quando a senhora faz essa cara de séria e entorta a boca, o negócio é sério.

– Natali, isso é mentira, eu não entorto a boca!

– Se preocupa não, mãe, a senhora fica mais linda quando entorta a boca.

– São seus olhos, filha.

Natali dá um sorriso e diz:

– Fala, dona Joelma, o que será que a senhora tem de tão sério pra me falar?

– Vejo que está bem melhor.

– É, mas só consegui dormir depois que amanheceu.

– Eu pressenti, por isso que te deixei dormindo até agora.

– Dona Joelma, você é uma mulher incrível!

– Para de me chamar de dona Joelma, eu sou sua mãe, eu não gosto que me chame assim.

– Eu sei, por isso estou chamando.

– Vamos levantar, escovar os dentes pra almoçar, já é hora do almoço.

– Tá bom, dona Joelma, eu já vou.

Natali levanta da cama, depressa, levando uma leve palmada no bumbum que Joelma lhe dá. Uma mãe contente por ver sua filha alegre e disposta.

Depois do almoço, Joelma chama Natali ao quarto para a tal conversa, torce muito para que seja uma conversa amigável.

– O que há de tão importante, mãe?

– Natali, eu não quero que você minta pra mim.

– Eu não minto, minha mãe, nunca lhe escondo nada.

– Preciso te fazer uma pergunta séria, mas estou perguntando por que quero ficar sem dúvidas.

– A senhora tá me deixando preocupada, faça logo essa pergunta.

Joelma dá uma olhada bem séria para Natali, como se tivesse com um nó na garganta, com um certo receio da pergunta e também da resposta:

– Natali, você ainda é virgem?

Natali dá uma gargalhada.

– Era esse o assunto sério?

– Sim, minha filha.

– Mãe, eu não sou mais.

Joelma suspira e fecha os olhos, parece que foi ao outro mundo e voltou.

– Meu medo era esse...

Natali ri novamente.

– Minha filha, você acha normal isso?

– Mãe, na minha idade nenhuma garota é mais virgem.

– Quando aconteceu?

– Aconteceu o quê, mãe?

– Que você perdeu a virgindade.

– Quando dei o primeiro beijo.

– Nossa, minha filha, logo assim de cara, no primeiro beijo...

Natali dessa vez abre um sorriso irônico, sua mãe fica pasmada:

– Mãe, relaxa!

– Como vou relaxar, minha filha?

– Não sou virgem, mãe, meus pensamentos funcionam a mil por horas, mas o meu corpo é intacto, está do mesmo jeito, com hormônios à flor da pele, mas tenho resistido aos apelos deles. Daniel às vezes tenta, mas resisto. Confesso pra senhora que as vezes é difícil, mas fujo sempre.

– O quê? Não estou entendendo nada!

– Mãe, eu não sou de ferro, mas tenho conseguido me controlar, eu ainda não fui tocada, Daniel insiste, mas eu não deixo. Às vezes tenho vontade, mas também tenho medo. Então, mãe, ainda sou virgem, mas não sou pura.

– Minha filha, era muito fácil você dizer que é virgem ainda. Você me deixou confusa, eu não teria coragem de falar pra minha mãe o que você acabou de me falar. Acho que levaria uma surra até sair sangue dos couros.

Natali dá uma risada gostosa, meio sarcástica.

– Natali, eu estou falando sério!

– Mãe, a senhora sempre diz pra eu ser aberta com a senhora, é o que eu estou fazendo.

– Mas você deveria me poupar de certos detalhes, não estou preparada pra isso.

– Vai me dizer que quando a senhora tinha a minha idade, não sentia essas coisas?

– Acho melhor parar com esse assunto.

Natali mais uma vez ri da sua mãe, deixando-a totalmente desconcertada.

– Só queria saber se você ainda era virgem, só isso.

– Por que a senhora quis saber?

– Por causa do seu desmaio, achei que você poderia estar grávida.

Natali ri novamente:

– Pode confiar, não estou, ainda sou virgem, como nasci.

– Posso confiar?

– Claro que pode, no dia que acontecer, a senhora vai ser a segunda a saber.

– Como assim, a segunda?

– Pois a primeira pessoa que vai saber, será o rapaz com quem eu fizer.

– Natali, hoje você tá cheia de graça!

– Estou não, mãe, só conheço uma.

– O quê, filha?

– A Graça, a enfermeira, só conheço ela, portanto, não estou cheia de graça.

– Você hoje tá que tá!

Natali dá uma gargalhada que contamina toda a casa; Cristiano, Reinaldo e Neiva começam a dar gargalhadas na sala, Joelma não resiste e ri também, juntos com eles.

– Mãe, a senhora não lembra que eu te falei que estava sentindo as mesmas coisas quando Jairo morreu? E que eu estava com pressentimentos ruins?

– Sim, mas quando aconteceu com Jairo, você não desmaiou.

– Mas é que dessa vez foi muito forte. Eu me senti fraca, algo me consumia, tenho quase certeza que aquele corpo encontrado lá em baixo era do Daniel.

– Minha filha, não diga isso, não era ele.

– Eu sinto, mãe, eu sei que é ele.

– Minha filha, se por um acaso for ele mesmo, fique com esses pensamentos só pra você, pois, podem achar que você é suspeita por saber e falar que era ele.

– Não tem lógica, mãe, matar uma pessoa que gostava muito, não tenho coragem de fazer isso nem com quem eu não gosto, imagine com quem eu gosto muito.

Joelma percebe quando Natali se refere a quem não gosta, certamente ela estaria se referindo à Edson, ela tenta tranquilizar Natali:

– Minha filha, daqui a pouco ele dá um jeito de te mandar um recadinho por alguém, para que vocês se encontrem hoje. Não aconteceu nada com ele.

Natali viaja um pouco em sua mente e, por um instante, relembra o primeiro beijo com Daniel. Muitos já tinham acontecido, mas o primeiro foi especial, ainda tinha o gosto da inocência. Seus olhos lacrimejam. Joelma percebe e abraça sua filha com atenção, e com medo dela outra vez desmaiar:

– Minha filha, fique tranquila, nada aconteceu com Daniel.

– Tenho certeza, mãe, agora foi confirmado em meu coração.

Por um instante, Joelma sente uma sensação de terror, o medo assola seus pensamentos, dando a certeza que ela está acreditando no que sua filha está falando. Daniel realmente está morto.

Mas a vida tem que continuar normalmente, até que todas as dúvidas sejam tiradas.

Num certo momento do dia, Cristiano retorna da rua, ele tem apenas dez anos, mas é esperto, já entende muita coisa. Às vezes, age com a maturidade de um adulto, uma inteligência fora do comum:

– O corpo que foi encontrado já foi identificado, já sabem quem é.

Natali gela da cabeça aos pés, seu coração treme, sua pele fica pálida, Joelma rapidamente se aproxima dela com medo de outro desmaio:

– Fala, Cristiano, quem é o rapaz?

– A notícia não é boa, mas eu tenho que falar.

– Fala logo, meu filho!

– É o Daniel!

Joelma abre a boca, fica imóvel. Ao confirmar a notícia, ela vê em Natali uma reação oposta do que pensara, esperava por um desmaio, mas vê uma pessoa fria, sem reação. Percebe, naquele momento, uma amargura em Natali, como se nada mais importasse pra ela, nem mesmo a morte de alguém que ela gosta tanto:

– Natali, você não vai dizer nada?

– É o destino agindo traiçoeiramente outra vez, o que tem que ser, será. Já aconteceu, não adianta lamentar.

Ditas essas palavras, com um gelo irreconhecível para sua mãe, sem mencionar nada mais, vai para seu quarto. Mais um enterro em sua vida e, um pedaço do seu coração sendo enterrado junto. Cristiano comenta com sua mãe:

– Mãe, o pai dele tá muito mal, uma tristeza, não para de chorar.

– Eu sei, já senti essa dor de perder um filho. Mais tarde eu vou lá.

– Eles me disseram que o enterro é amanhã, quem está tratando disso é o tio dele, o pai não tem força para resolver nada.

– Já sabem quem o matou, quem cometeu essa brutalidade?

– De acordo com o que eu ouvi na rua, a polícia ainda não tem nenhuma pista, a única suposição é que deve ser briga de gangues, mas Daniel não era de gangues. Deve ter sido morto por engano.

Joelma não para de pensar na atitude fria de Natali, ela recebeu a notícia como não se importasse com Daniel. Não entende como uma garota tão sensível, se tornara insensível. Muitas coisas estavam acontecendo desde os seus quatorze anos: primeiro perdeu Jairo, depois a transformação do homem que ela tinha como o pai e, agora a morte de Daniel. Tudo isso estava transformando Natali, de uma forma negativa. Sentiria saudade ou ficaria amargurada pelo resto da sua vida?

A saudade profunda pode causar uma nostalgia intensa, até mesmo uma pressão psicológica. Um sentimento de insatisfação que carregaremos sempre no inconsciente, sem um aparente motivo. Isso acontece por falta do conhecimento do nosso próprio eu, tudo evidencia para um caminho que, descobrimos que a felicidade não mora dentro de nós.

Ao fim de mais um expediente de trabalho, Edson retorna para casa com uma alegria estampada no rosto, coisa que não era muito comum. Joelma acha estranho, uma simples promoção não é motivo para tanta felicidade. Pensava que tinha algo a mais, só não sabia o que era.

– Vocês já sabem, o moleque morreu.

– Edson não seja tão cruel! Nós todos gostávamos dele!

– Menos eu!

O olhar de Natali para Edson vai igual fuzil, fulminante, com tiro certeiro. Ele sente e não fala mais nada sobre Daniel.

Durante o jantar, os olhares de Natali para Edson o deixam sem graça. Ela parece estar à procura uma conexão entre Edson e Daniel. Pensa que, possivelmente, ele tem algo a ver com o assassinato de Daniel, mas abandona a ideia. No dia do assassinato, Edson estava fazendo compras, é certo que chegara muito tarde, mas estava amarrotado com sacolas nas mãos, não poderia ser ele. Mas continua procurando respostas em Edson, sem perguntar nada.

            
            

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