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- Você meu filho foi um deslize do acaso, que se tornou fato nove meses depois, Eustáquio que era seu tio, agora seu pai, me encantou e eu cedi sem medo, me apaixonei, e o amei, mas seu pai nunca desconfiou
Primeira vez que ouço a palavra cedi nesses termos, ela deveria me poupar desses detalhes sórdidos, o que é pior, ainda diz que eu fui um deslize, eu nem me lembrava do nome dele, agora sei que ele é meu verdadeiro pai, se chama Eustáquio, estou me sentindo profundamente mal, pensando em minha breve vida, meu verdadeiro nome não era Gaspar, era simplesmente deslize, ainda bem que me encontro morto, pois se estivesse vivo, enfartaria agora sem salvação!
Olhei diretamente para o velho safado cara de fuinha, amigo da onça, pegou a mulher do próprio irmão e ainda fez um filho para ele criar, agora eu tinha que aceitar a realidade nua e crua que me devorava as entranhas, como se devora uma sopa lentamente por ela estar quente, mas eu estava gelado e rígido!
Percebi outra coisa, que o deslize não fora somente uma única vez, o ímpeto da impulsividade se tornou rotineiro, ele, o cara de fuinha, parecia grude que não descolava dela, o pior de tudo é que me achava parecido com meu pai, mas sempre me identifiquei com esse velho safado, agora entendo tudo isso, sem questionar meu caráter.
Imaginem o vexame que eu presenciaria em poucos minutos, me lembrei, não estou mais vivo, mas eles passaram esse vexame, meu suposto pai se debruça sobre o meu caixão, abraçando meu corpo gelado, foi algo surpreendente até para minha mãe que não esperava essa atitude, meu suposto pai gritava chorando, agarrado ao meu paletó de madeira, tem gente que passa a vida toda sem saber o gosto de usar um paletó, um terno completo, e no estágio final da vida tem o desprazer de usar um de madeira, ele fala chorando alto:
- Meu filho me perdoa por não ter sido o seu pai!
- Que vergonha eu senti pela minha mãe!
O cara de fuinha revelando um segredo guardado por minha mãe como um tesouro precioso, por uma vida toda, todos ali na sala ficaram estarrecidos com aquela atitude do meu suposto pai, alguém pergunta:
- Eustáquio bebeu?
Minha mãe não sabia onde enfiar a cara de tanta vergonha que estava sentindo, ela, era vista por todos como uma mulher recatada, dona de um caráter ilibado, e sempre preservou essa postura, era incapaz de cometer infidelidade era dessa forma que ela era vista.
Me lembrei de certas ocorrências na minha infância, às vezes ela me levava para igreja, era o martírio da minha infantilidade. Suplício incondicional de uma vida mal começada!
Isso acontecia uma vez por semana, íamos como ela chamava, à casa de Deus. Chegávamos na igreja, ela entrava para um lugar reservado que mais se parecia com um caixote de madeira, o qual ela chamava de confessionário, ela me dava ordens para eu ficar rezando, eu fingia que rezava, nunca aprendi nem o pai nosso, ela passava uma hora conversando com o padre, e eu esperando sentado naqueles bancos duro de madeira, às vezes eu me cansava e deitava no chão, depois que ela saía de lá ainda passava mais uma hora rezando, eu achava que era a penalidade pela falta cometida.
Eu notava que o padre saía dali balançando a cabeça negativamente, ele sabia do tamanho do pecado da minha mãe, creio que eram muitos, porque ela rezava uma novena depois, eu sofria com a espera.
Se a minha vontade fosse aceita, e as pessoas pudessem me ouvir, eu pediria para que meu corpo fosse retirado dali e sepultado imediatamente, afinal de contas nenhum velório merece tanta revelação, minha morte sendo motivo de chacota, pudera eu fugir dali para bem longe, estou morrendo de vergonha de mim mesmo, tentando entender tudo isso por atacado, acredito e me chamo eu mesmo de deslize, possivelmente toda a minha vida eu tenha sido um deslize e meu apelido poderia ser, baba de quiabo, mas de nada adiantou ser escorregadio. Famigerada espinha de peixe que me fez sucumbir!
Azar ou casualidades do acaso?
Não tenho muitas certezas agora como eu tinha em vida, mas o destino me pregou uma enorme pegadinha, e me foi resolvido enxergar a realidade depois de morto. Olhos abertos diante da morte. Mazelas de um velório!
Penso se é possível acontecer tudo isso com todas as pessoas que padecem diante dessa devoradora de vidas? A minha esperança agora é que não haja tanto sofrimento por causa dessa famigerada víbora que me devorou, arrebatou o viver, em vida, nunca me dei ao luxo de uma simples depressão, que para alguns é avassaladora, mas por incrível que pareça, estou angustiado com tanta revelação inesperada, a tristeza está me consumindo, minha vontade é deixar de existir mesmo estando em estado mortal, se eu pudesse tomar um antidepressivo, tomaria agora sem nenhuma objeção.
Minha mãe, uma mulher dentro dos padrões normais de uma sociedade que mais parece devorar as pessoas do que adequar aos parâmetros de felicidade, a aparência mesmo que seja superficial, aparente vida social, é essencial para sobrevivência, vejam o caso da minha mãe, a vida toda vivendo uma vida dupla, mas manteve a pose de uma mulher sem questionamentos, agora eu entendo o porquê de o padre Bonifácio sempre se retirava do confessionário balançando a cabeça negativamente.
Imagino o quanto foi difícil para assumir o caso dela com meu tio, o pior de tudo que o fruto desse caso era eu, o deslize, a mesma postura decisiva que usava para se mostrar uma mulher sem questionamentos duvidoso, agora ela usou publicamente, e ainda teve a coragem de falar:
- Dane-se todo mundo, eu amo o Eustáquio desde de sempre!
Ela o abraça sem se importar com mais nada e diz:
- Meu amor, tenha calma!
Ao ouvir tais palavras, era como se eu estivesse morrendo outra vez, minha mãe, mulher corajosa, destemida, acaba de matar um defunto com as palavras que jamais um dia em minha vida, pensei que ouviria. Eu me sentia naquele momento como se todos ali estivessem debochando da minha cara e dizendo: - O nome dele é deslize!
As escolhas que deliberamos em toda a nossa vida, é um equilíbrio inevitável entre causa e efeito, simplesmente acontece. Vejo a inevitável causa das escolhas que nem sempre atinge somente quem a faz, eu sou um resultado que poderia ser evitado, mas sou filho do acaso, e pela primeira vez dou graças por não estar mais vivo.
Vejo agora na minha morte o retrato da ilusão, da covardia, e descubro que para falar a verdade precisamos ser corajosos, mas nem sempre a verdade é bem recebida, tem gente que prefere ser iludido. O efeito da mensagem para quem não quer ouvir, é nulo. Era exatamente o que eu preferia ser naquele momento, preferia ser um surdo analfabeto.
Mas como se veda a audição de um morto?
Tudo gritava ao meu entendimento como se fossem pancadas arrebentando meu ego, tirando de mim todas as certezas.
Será que vivi justamente, será que a vida não me foi fugaz ou furtiva? Eu era feliz?
Por causa da minha vida totalmente devotada ao ser materialista, eu me sentia totalmente feliz, pois sempre conseguia realizar meus objetivos sem me questionar os métodos que eu usava, às vezes até exclusos. E agora, do que me serviu tudo isso?
O cérebro sempre será o lógico do nosso ser, às vezes até atormenta a imaginação. Eu era diferente ou igual a todos? Os diferentes são rejeitados por aqueles que não os compreendem.
Viver como eu vivi, baseando-me em mentiras sem conseguir raciocinar o quanto a verdade atormentava mentira, mas não conseguia perceber nem por um segundo, e agora percebo quem foi a minha adorável mãezinha.
Vivendo uma mentira sem retroceder, baseando-se nas razões do amor! Uma suposta verdade sem lógica
Pergunta que não quer silenciar a essa morte cruel e amarga:
- Em que consiste os propósitos da vida que de uma forma traiçoeira a morte surrupia?
Uma senhora sútil chamada experiência responde:
- A concentração no próprio ego jamais elucidará os propósitos de uma vida.
O algoz da minha vida fugaz, foi a morte!
É inusitada essa minha forma de pensar, o que era somente matemática em vida, agora em morte me encontro fazendo coisas que nunca fiz, filosofando com experiência, mas o tempo que me fora ofertado para viver, não foi usado com sabedoria, faltou o afeto, eu neguei!
Ouço o meu caçulinha dizer:
- Meu pai já era!
Minhas lágrimas congeladas insistem em derreter, com tanta realidade nua e crua para audição de um morto que convalesce com a verdade, vejo que fui um fracassado relacional.
O que faço para persistir diante de tantos fracassos?
O desistir nunca deve ser visto como opção se os frutos forem promissores, o improvável deve ser posicionado como alternativa, um momento de alegria do meu ser foi revelando-me, a disposição, me foi realçada como pigmentos de otimismo, que não me seja ópio de lubricidades, pode até ser que me venham conquistas reais de vida plena.
Mas o que um morto pode conquistar?
A obscuridade mesmo sendo vista de uma forma negativa, poderá influenciar, dependerá do ponto de vista de cada ser!
Jamais poderemos ter controle sobre os efeitos das ações, sejam elas realizadas com esmero zelo ou relaxadamente, os efeitos serão inevitáveis.
Me lembrei que meu caráter sempre fora colocado em prova, mesmo diante de reações adversas, eu perseverava.
Lembrei do meu filho caçulinha dizendo que o pai dele já era, eu duvido se eu já fui, e mais uma vez eu pergunto a mim mesmo, não existe mais quem me responda nesse espaço solitário sem sentido: - Será que algum dia já fui alguma coisa, já consegui me sentir vivo de verdade, ou o meu objetivo em vida foi em vão, somente pensava em ter e nunca ser?
O silêncio do meu vazio respondeu ironicamente: - O meu refletir foi a descoberta do eu, sem resposta, o próprio silêncio era a resposta. Imponderação do ser!
Quem mais prevalece na crueldade, a vida ou a morte?
A vida toda vivi com um amigo íntimo chamado orgulho, e só agora, diante desse desalento chamado morte foi que consegui evidenciar o que vem a ser de verdade o orgulho: - Ele consegue isolar o ser dentro de um casulo recheado de ilusões deixando próprio ego viciado em egoísmo, predominar!
Pobre criatura é minha mãezinha, sempre teve tudo que desejou do meu tio que era o seu marido, o pai que me criou, mas encontrou a felicidade de verdade em meu tio.
A fidelidade nunca esteve atrelada ao que realmente possuímos, simplesmente está vinculada ao que somos.
Olhei em volta do meu caixão, o velório estava cheio, muitos ali com cara de pesar, a maioria eu não conhecia, mas falavam de mim como se me conhecessem há muito tempo, ousaram até comentar:
- Ele era um homem tão bom!
- Que Deus o tenha em um bom lugar!
- Ele estará num lugar melhor!
Demagogias dos seres, sempre questionei esses tipos consolo aos defuntos, é muito interessante falarem sempre as mesmas palavras, clichê montado remotamente sem raciocínios lógicos, a referência à morte como um bom lugar, ou um lugar melhor, com relação ao defunto, poderia ser a pior pessoa da face da terra, mas quando morre fica sendo a melhor de todas. Se morrer é ir para um lugar melhor, então por que ninguém quer morrer? Percebo que ninguém no velório trocaria de lugar comigo!