Capítulo 4 A SECRETÁRIA

Alguém com uma beleza que chamava atenção entra, não foi à toa que a escolhi como minha secretária, não somente por ser bela, mas com uma inteligência extraordinária, e outras habilidades excepcionais, não tenho nada a reclamar dela, sempre correspondeu às minhas expectativas, por um momento acho que vi meu corpo sorrindo quando aquela loira entrou na sala, veio ficar do lado do meu caixão, era uma natureza perfeita aos olhos dos admiradores.

Naquele momento lembrei da minha mãe me dizendo que minha concepção tinha sido um deslize, mas acho que ela queria dizer vacilo mesmo, refresquei a memória, até sorrir de verdade, tempos atrás antes das minhas viagens rotineiras, tive um dia bastante assoberbado por excesso de trabalho, precisei ficar até mais tarde, ela se ofereceu para ficar somente para me ajudar, era uma boa moça, ficamos até tarde, muitas conversas tivemos, até que um certo momento, o deslize aconteceu como mencionou minha mãe, mas foi somente uma única vez, depois disso continuamos as vidas normalmente como se nada tivesse acontecido, não tocamos mais no assunto.

Com o passar do tempo eu não me esquecia daquelas loucuras que fizemos, muitas vezes planejei uma repetição, mas tive receio de ser acusado de assédio, poderia ser uma armadilha, refreei o atrevimento em mim.

Ela chega mais perto do meu corpo agora sem nenhuma reação, parei naquele olhar, não sei dizer se eram esverdeados ou azulados, parecia que seus olhos mudavam de cor com aproximação, ela lentamente passa a mão na minha cabeça, cheguei a sentir o toque macio das suas mãos suaves, ela diz alguma coisa sussurrando bem baixinho, quase não consegui ouvi:

- Seu safado, morreu e não me deu o aumento que me prometeu!

É, havia me iludido mais uma vez na minha morte, cheguei a pensar que a presença dela era de comoção, mas não era, simplesmente veio me cobrar o que era material, agora eu me vi no aperto, como a diarreia que precisa de um banheiro, eu precisava de afago espiritual, as lágrimas dela não eram sentimentais, estou definhando, se é de possibilidade aos mortos lacrimejar, estou nas últimas, esperando apenas o último suspiro, talvez até de misericórdia.

Misericórdia! É estranho mencionar essa palavra que para mim nunca existiu, e por consequência o meu apelo é por ela, pois até eu não percebi nenhum afeto por aqueles que me rodeavam em vida, triste realidade de um morto vivo, esse trocadilho é para revelar a minha pessoa que era um vivo morto. Será que nunca fui capaz de ser causa de um afeto verdadeiro?

A secretária continua falando:

- Eu quis tanto que repetíssemos aquela noite, mas você me ignorou completamente depois!

Meus olhos acho que brilharam, os ouvidos adoçaram mais o mel da voz dessa loira exuberante, dessa vez foram eles que se inclinaram até aos seus lábios, ela gostava de mim!

- Mas você não procurou mais Gaspar, seu safadinho, talvez se tivesse rolado mais vezes, você teria me dado o apartamento que eu tanto sonho, agora já era, perdi a esperança!

Um morto desiludido dentro do caixão esperando o fechar dele, para dar adeus a esse mundo vil, tudo puro interesse!

Agora eu estou revoltado, loira azeda aguada, interesseira!

Me sinto mesmo um deslize rolando ladeira abaixo, meus filhos com certeza num futuro distante me chamarão de vacilão, quando forem cientes da minha história, triste é saber dentro de um caixão sem poder apresentar nenhuma reação que ninguém me conhecia, nem tão pouco eu conhecia as pessoas. Esperança dissoluta!

Observo as pessoas que estão ali, sinto que a tristeza não é por eu ter morrido, há algo mais profundo diante de um velório, o meu caixão é apenas um espelho que reflete a realidade de um futuro incerto, porém iminente, emergente dependendo da forma como se vive, a tristeza aparente é por ter certeza que um dia estarão dentro de um caixão também, ou seja, as lágrimas são do próprio ego desconsolado, por um dia enfrentar a realidade da morte, procurei minha querida Madalena ali, mas ela não estava, talvez estivesse isolada em algum lugar esperando a hora do desfecho, o fechar a tampa do caixão, resolvi procura-la, o único lugar que poderia estar seria nosso quarto, nosso ninho de prazeres, já não sei dizer se era de amor, talvez esteja lamentando a minha definitiva partida repentina. A morte não é uma casualidade!

Realidades me mordam! Dera eu ter ficado ali mesmo na sala vendo meu corpo, a cara de tristeza dos presentes, pressentindo as bactérias vorazes que logo me consumiriam purgando a minha existência. Meus olhos mortais veem, eles reviveram diante daquela cena, tenho quase certeza que eles se abriram dentro do caixão, nunca em vida tinha visto tal forma de lamentar de uma viúva chorosa, a contemplação de toda a lamentação da minha querida Madalena me era inusitada, não sabia dizer quem era quem ali naquela cama, o enroscamento era perfeito, confesso, senti até inveja, nunca tinha sido capaz de tais proezas, de fazer tirar de Madalena até choros de prazeres, meu melhor amigo Raul, não sei dizer exatamente se era enroscado ou enganchado, gemidos e sussurros, choros de prazeres estavam acontecendo, pensei eu: - O mundo nos proporciona novas formas de lamentação!

Acho que agora meu corpo reage, levanta daquele caixão e sai correndo!

Compreendo agora o que é o significado de gemer e chorar sem sentir dores, talvez aquilo fosse uma homenagem a minha partida. Como se fecha os olhos de alguém que já morreu?

Meu raciocínio jamais poderia deixar de ser lógico mesmo sabendo que agora eu estava morto algumas vezes, porque morrer uma vez em vida, é muito normal, mas morrer mais de uma vez depois de morto, é anormal. Tenho plena certeza que o desenrolar desse romance de Madalena com Raul não tinha começado hoje, eu pensava ter uma família funcional com tudo perfeito, dentro do que essa sociedade que ludibria exige, me fiz adequado a sociedade, mas não à minha família, morto me vem a revelação que eu era a causa do disfuncional.

E agora, como reparar os erros depois de morto?

Minha vontade era me isolar, até mesmo pensei em me suicidar, até achei um sorriso em mim quando pensei nisso, o meu estado não me permitia retroceder.

O isolamento psicológico é avassalador na destruição dos seres, o fato de estar morto já me era um isolamento, não era religioso, mas pelo o fato de ser levado à igreja de vez em quando sem a minha permissão, me fizeram conhecer histórias da bíblia que até hoje eu lembro, e umas dela era de um amigo de Jesus que na verdade era um amigo da onça, era um tal de Judas, nunca me interessei por histórias bíblicas, mas quando são ouvidas parecem enraizar na mente, principalmente quando se era contada pelo padre Bonifácio, eu lembrei dessa em especial, ele tinha traído Jesus, mas logo depois se arrependeu, tomou consciência do estrago que tinha causado na vida do seu mestre, mas só arrependimento não lhe foi suficiente, houve muito remoço, causando-lhe uma decisão extrema, se suicidou. Covardia ou coragem? Uma pergunta não muito fácil de responder, mas chego à conclusão que para se matar é preciso muita coragem.

Mas o resultado da tristeza, é que a coragem nesse momento crucial de uma vida é um ponto negativo. A coragem quando se precipita, jamais será algo positivo, é quando se entra na batalha mesmo sabendo que vai perder.

Me acho no isolamento da morte pensando em me suicidar, vendo o próprio corpo como resultado de um laço de corda inexistente que me sufocou até o último respirar, nada menos que um precipício de uma vida tirada antes de morrer de verdade.

Qual seria a diferença entre fatalidade e iniciativa própria? De quem será a culpa?

Talvez de um nó apertado no pescoço, de uma bala perdida explosiva, de um abismo sem fim, de um veículo em movimento, existem motivos e formas com ou sem expressões.

Mas a culpa é do ser humano que se afoga numa mente vazia, sem percepção de como se deve viver, a peça de encaixe que às vezes falha, chama-se preenchimento do ego positivamente, mas há necessidade se se controlar o lado negativo, são como dois irmãos gêmeos que não conseguem viver separados.

A mecânica do mundo atual, deixando de lado o fundamental sentimento, arrasando vidas inteiras na luta pela sobrevivência. Ninguém mais morre de amor, é mais fácil morrer de inanição!

Os cumprimentos habituais que valiam a suma dos relacionamentos se tornaram impessoais, a moda agora é o abraço virtual. Onde está o calor humano?

Tantas vezes deixei de abraçar meus filhos, jogando de lado o sentido família, um olá pela internet já era suficiente, perguntas sem resposta viraram mania de viver, o importante era perguntar: - Tudo bem? - Sem esperar respostas; tudo mera formalidade!

Os relacionamentos se tornaram tão mecânicos, que de vezes em quando precisamos de reparos para melhorar ou continuar funcionamento, quem será o profissional?

Automóveis não consertam outros automóveis!

O conhecimento da realidade apodrecendo dentro de um caixão, era desfavorável psicologicamente a um homem que estava vendo seu próprio corpo definhando e que logo seria devorado pelos vermes, a minha realidade e desejo era que eu obtivesse mais uma chance e fizesse tudo de outra forma.

Será que eu seria diferente?

Deixei de supri necessidades emocionais, e por essa razão seria logo esquecido pelos meus entes queridos, todos meus relacionamentos eram superficiais, por apenas momentos instantâneos foram causa de decepções que eu causei sem me importar, o importante era eu estar bem, e satisfeito. O enredo sem sentido!

Eu vivi sem perceber um conflito prolongado até a morte, o meu corpo agora está a sucumbir numa esperança que jamais existirá.

A busca desenfreada do materialismo me inundou com a ganancia do possuir, fazendo-me deixar de lado os sentimentos, não era necessária uma protelação, me tornei cego em plena luz.

Dizer eu te amo era uma simples necessidade de preenchimento carnal, palavras que eram usadas por mim como barganha de uma conquista bem-sucedida, sem a tal da cumplicidade, satisfação de um só.

Percebo agora que os fracassos dos relacionamentos são pela falta de cumplicidade!

Já não faz diferença se assumo a culpa ou não pelos fracassos, mas fiz tudo com as melhores das intenções, até acho engraçado as pessoas falarem, que de boas intenções o inferno está cheio! Será que eu era o dono do inferno na terra? Nunca deixei faltar nada à minha família, mas o que eu estou entendendo perfeitamente nesse exato momento é que a fórmula nem sempre corresponde à essência.

O que era de mais essencial a eles, eu negava, o suprir emocional, a atenção necessária, relacionamentos doentes em fase terminal.

O meu divertimento era demasiado egoísmo, me sentido feliz longe deles em busca de outras alternativas.

A felicidade existe?

A minha fórmula de vida jamais completou a essência dos meus entes queridos!

A vida nos revela surpresas todos os dias, mas a morte também, as consequências dos erros que não admitimos sempre nos cobrará mais esforço para mantermos certa postura.

Nesse momento a morte sobrepujou a vida, meus olhos de mortos pareciam querer saltar do caixão, mas não defini se era para esconder-me, ou de alegria!?

Na vida acionamos o radar da conquista, muitos por amor, outros por ter mais um troféu.

Antes de conquistar alguém, precisamos realmente conquistar a nós mesmos como forma de aceitação e compreensão,

O persistir no caos sem se machucar ou ferir alguém, é como dar murro em ponta afiada sem se ferir ou sangrar!

A dor nunca será coadjuvante!

            
            

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