A menina permanecia em silêncio, mas havia algo nela que me perturbava profundamente. Não era só o fato de ser uma criança em meio a uma situação dessas. Era o modo como seus olhos pareciam ver além, como se ela soubesse mais do que estava deixando transparecer.
- Por que você não me contou antes? - Minha voz soou dura, quebrando o silêncio.
Ayla parou, me encarando com firmeza.
- Porque você não estava pronto.
Revirei os olhos e soltei uma risada amarga.
- E agora estou?
- Você precisava saber, Rick. - Ela respondeu sem hesitar. - Quanto mais você negar, mais poder as sombras terão sobre você.
Minha mandíbula apertou. Eu chutei uma pedra com raiva, tentando processar o que ela dizia.
- Então, além de ser caçado por monstros feitos de escuridão, agora tenho que carregar um poder que nem sei usar? Que ótimo.
Ela se aproximou, segurando meu braço para me fazer parar. Seus olhos estavam fixos nos meus, sérios e determinados.
- Você não está sozinho.
- Não parece. - Retruquei, arrancando meu braço de sua mão. - Você sabe mais do que está dizendo, Ayla. E essa garota... - Apontei para a menina, que apenas nos observava em silêncio, com uma expressão que era inquietantemente calma. - Ela sabe mais do que esta falando .
- Rick, ouça! - Ayla elevou a voz, algo raro nela. - Eu estou aqui. E vou continuar aqui até o fim disso, mesmo que você me odeie por isso.
Eu a encarei por um momento, tentando decifrá-la, mas o cansaço da caminhada e da tensão constante estavam me quebrando.
- Tudo bem. - Suspirei, voltando a caminhar. - Mas se vamos enfrentar isso juntos, quero saber de tudo. Sem segredos.
- Sem segredos. - Ela respondeu. Mas havia algo em sua voz que me deixou inquieto.
De repente, um barulho atrás de nós fez todos congelarem. Um galho estalou, e a garota virou-se imediatamente, os olhos fixos na direção do som.
- Corram. - Ela sussurrou, sua voz fria e direta, nada infantil.
O chão começou a vibrar levemente, e o som grave que vinha de longe aumentava a cada segundo. Ayla praguejou baixinho e puxou sua lâmina.
- As sombras nos encontraram.
Sem pensar, segurei a garota no colo e comecei a correr, Ayla logo atrás. As árvores ao nosso redor pareciam fechar o caminho, enquanto um rugido sobrenatural enchia o ar.
- Você disse que eu não estava sozinho, Ayla! - Gritei, desviando de um galho baixo. - Prove isso agora!
Ela parou de repente e virou-se, suas lâminas brilhando sob a luz fraca que conseguia atravessar o dossel.
- Continue correndo, Rick. Eu cuido disso.
- Como assim? Você não vai...
- Agora, Rick!
Havia algo nos olhos dela, um brilho feroz que me fez obedecer, mesmo contra meu instinto. Continuei correndo, a menina firme nos meus braços. O som de lâminas cortando o ar e rugidos grotescos enchia o espaço atrás de mim.
A cada passo, sentia o peso do que estava deixando para trás. Eu sabia que Ayla estava lutando por nós, mas a cada grito que ouvia, a dúvida crescia: será que ela sobreviveria?
Suspeitei aliviado ao ver Ayla chegando. Quando seus olhos encontraram os meus, senti um peso imenso sair das minhas costas. Por um breve momento, o caos ao redor parecia se dissipar, e o alívio foi quase esmagador. Ela estava bem. A menina estava bem.
Mas então, a realidade voltou como um golpe. Eu sou o alfa. Eu sou quem deveria protegê-las, manter ambas seguras a qualquer custo. E, no entanto, tudo parecia de cabeça para baixo. As sombras não estavam atrás delas. Elas estavam atrás de mim.
Essa maldição que carrego, esse fardo... é isso que elas querem. Mas chega. Chega.
Minha mandíbula se apertou, e uma fúria ardente tomou conta de mim. Vou acabar com essas malditas sombras, nem que isso me custe a vida. Já vivi o suficiente. Já lutei o suficiente. O sacrifício não me assusta mais.
Se o preço da segurança delas for a minha vida, que assim seja.
Ayla parou a poucos passos de mim, os olhos brilhando com preocupação. Eu sabia que ela podia sentir a minha decisão, mas não havia tempo para conversas ou explicações.
Quando finalmente paramos, encontramos uma pequena clareira cercada por árvores altas. A luz do sol atravessava as copas, criando padrões de sombras que dançavam no chão.
Era um lugar calmo, pelo menos na superfície, mas eu sabia que essa tranquilidade era um engano. O silêncio da floresta não era natural, e a sensação de que algo nos observava era impossível de ignorar.
Ayla ajudou a garota a se sentar em uma pedra coberta de musgo. Eu, por outro lado, andava ao redor, inspecionando cada detalhe. Meus olhos corriam pelas árvores altas, buscando qualquer sinal de perigo, mas tudo o que conseguia encontrar era o peso da incerteza.
- Precisamos de um plano. - Falei, ainda com os olhos nos arredores. - Essas coisas não vão parar. Não podemos ficar esperando o próximo ataque.
- Concordo. - Ayla respondeu, a voz calma, mas carregada de preocupação. - Mas antes, precisamos entender exatamente o que estamos enfrentando.
Eu me virei para ela, cruzando os braços.
- E como faremos isso? Você tem um livro mágico ou algo assim escondido?
Ayla arqueou uma sobrancelha, e um sorriso breve cruzou seus lábios, mas não havia humor em seus olhos.
- Não, Rick. Mas conheço alguém que pode ajudar.
Meu ceticismo foi imediato.
- Quem?
- Uma aliada. - Ela respondeu, hesitando por um momento. - Alguém que entende a magia por trás do símbolo e o que ele significa.
- Outra pessoa misteriosa? Ótimo. - Respondi, balançando a cabeça. - Isso só melhora.
- Ela é confiável. - Ayla insistiu, com firmeza. - E se queremos sobreviver, precisamos dela.
Minha primeira reação foi desconfiar. Mas, no fundo, sabia que Ayla tinha razão. Continuar sem respostas era suicídio.
- E onde encontramos essa sua "aliada"? - Perguntei, tentando esconder meu desagrado.
Ayla apontou para as montanhas ao longe, mal visíveis entre os troncos das árvores.
- Na fronteira das montanhas. Mas chegar lá não será fácil.
- Nada nunca é. - Suspirei, ajeitando a mochila nas costas, já me preparando mentalmente para o próximo desafio.
A menina, que até então havia permanecido em silêncio, falou de repente, sua voz calma, mas carregada de uma sabedoria desconcertante.
- Não é apenas o caminho que será difícil. As sombras estão mais próximas do que vocês pensam.
Eu e Ayla trocamos um olhar. Havia algo na maneira como ela falava, uma certeza inquietante.
- E o que você sugere, pequena? - Perguntei, meio sarcástico, meio curioso.
Ela me encarou com olhos que pareciam pertencer a alguém muito mais velho do que ela.
- Nós precisamos sair agora. Se ficarmos, eles vão nos encontrar antes do pôr do sol.
O silêncio voltou, mas dessa vez estava carregado de tensão. Eu sabia que ela estava certa. A clareira, antes um refúgio, parecia agora um lugar perigoso demais para se permanecer.
- Certo. - Murmurei, pegando minha mochila. - Vamos sair daqui.
Enquanto Ayla segurava a mão da menina e começava a andar, dei uma última olhada ao redor. Havia algo nos observando. Eu podia sentir.
- Espero que essa sua aliada valha a pena. - Disse, me aproximando dela.
- Ela vale. - Ayla respondeu sem hesitação, mas o tom em sua voz revelava que talvez até ela estivesse apreensiva.
Quando saímos da clareira e entramos de volta na floresta densa, o céu parecia mais escuro, e a sensação de estar sendo seguido apenas aumentava. O caminho até as montanhas seria longo, mas algo me dizia que não chegaríamos lá sem lutar. O verdadeiro desafio ainda estava por vir.
Antes que pudéssemos planejar nossa próxima etapa, um som ecoou pela floresta. Era um sussurro baixo, quase imperceptível, mas carregado de algo maligno. O suficiente para fazer minha pele arrepiar. Me virei instintivamente, meus olhos vasculhando as árvores ao redor.
- Você ouviu isso? - Perguntei, rosnando baixo, os músculos já tensos.
Ayla assentiu, seus olhos atentos e o rosto tenso.
- Estão nos cercando de novo.
A menina começou a tremer, agarrando a mão de Ayla com tanta força que parecia estar se segurando à vida.
- Eles não vão parar. - Ela murmurou, sua voz baixa e cheia de um medo ancestral.
O cheiro das sombras começou a se intensificar, sufocante como fumaça densa. Era mais forte do que antes, como se o próprio ar estivesse impregnado de escuridão. Senti o calor da transformação começar a subir pelas minhas veias, uma energia selvagem pronta para explodir. Mas dessa vez, algo estava diferente. Era como se elas soubessem que estávamos aqui, como se estivessem nos testando.
- Fique com ela. - Ordenei a Ayla, minha voz firme enquanto dava um passo à frente, me posicionando entre elas e o perigo invisível.
- Rick, não seja imprudente! - Ayla tentou argumentar, sua voz firme e cheia de preocupação.
- Eu sou o alfa. - Rosnei, puxando meu braço de volta. - Se essas coisas querem me caçar, está na hora de aprenderem o que isso significa.
Avancei sem esperar resposta. As árvores ao redor pareciam se fechar, as sombras se mexendo de forma inquietante entre os troncos. Os sussurros se intensificaram, quase rindo de mim. Um rugido baixo escapou da minha garganta enquanto a transformação se completava. Minha visão ficou mais nítida, os sentidos aguçados.
As sombras começaram a emergir, formando criaturas grotescas de pura escuridão. Seus olhos brilhavam em vermelho, famintos, e seus corpos se moviam rápido, como predadores rondando uma presa.
- Venham. - Murmurei, mais para mim mesmo, enquanto avançava sobre a primeira delas.
A criatura investiu, suas garras brilhando como lâminas, mas eu era mais rápido. Segurei-a pelo pescoço, sentindo sua forma se contorcer em minhas mãos antes de esmagá-la contra o chão. Ela se dissolveu em uma névoa escura, mas outras surgiram no lugar.
Elas eram rápidas, mas minha raiva era maior. A segunda sombra avançou, e eu a golpeei com toda a força, arremessando-a contra uma árvore. Antes que pudesse recuperar o fôlego, mais duas surgiram.
- Rick, cuidado! - A voz de Ayla cortou o ar, e me virei a tempo de ver uma sombra maior e mais sólida emergir.
Esta era diferente, mais densa e letal, com olhos como brasas e garras afiadas que brilhavam à luz fraca da floresta. Ela avançava diretamente para Ayla e a menina.
Sem pensar, corri com tudo o que tinha. O chão parecia tremer sob meus pés, mas não hesitei. Cada passo era uma luta contra o tempo, e minha mente gritava que eu não chegaria a tempo. Mas eu tinha que tentar.
Com um salto, me lancei contra a criatura, derrubando-a antes que pudesse alcançar Ayla. Rolamos pelo chão, e ela tentou me golpear com suas garras, mas consegui segurá-las, prendendo-a sob meu peso.
- Você não vai tocá-las. - Rosnei, minha voz cheia de fúria.
A criatura gritou, um som gutural e ensurdecedor, enquanto suas sombras pareciam se fundir ao meu redor. As árvores tremiam, e eu podia sentir as sombras se reunindo, como se estivessem prestes a atacar de uma só vez.
- Ayla, leve a menina e corra! - Gritei, meu tom urgente, sem espaço para questionamentos.
Ayla hesitou, seus olhos buscando os meus por um momento. Mas ela sabia que não havia escolha. Pegou a mão da menina e começou a correr, seus passos rápidos ecoando na floresta.
Eu mantive meu foco na criatura à minha frente, mas as sombras não estavam dispostas a me deixar ir tão facilmente. Mais delas surgiram, movendo-se em círculos ao meu redor. A cada instante, o cerco se fechava mais.
Meu corpo queimava com a transformação, os músculos pulsando enquanto eu me preparava para a próxima onda. O ar ao meu redor parecia pesado, quase sufocante, mas eu não podia me dar ao luxo de falhar. Se aquelas coisas queriam me derrubar, precisariam descobrir da pior forma o que significava enfrentar um alfa em sua fúria total.
A luta ainda estava apenas começando.