Atravessávamos a floresta em silêncio. Ayla caminhava ao meu lado, segurando a menina pela mão. Aquele símbolo na palma dela ainda pulsava como um coração batendo fora de compasso, irradiando algo que parecia vivo. Eu não perguntei o que significava. Não ainda. Eu sabia que a verdade estava por vir, inevitável como o nascer do sol.
- Estamos longe o suficiente? - Quebrei o silêncio, minha voz soando mais dura do que pretendia.
Ayla parou abruptamente, seus olhos varrendo a escuridão ao nosso redor antes de balançar a cabeça.
- Por enquanto. Mas isso não vai durar muito.
Minha paciência estava no limite. Soltei um suspiro pesado e cruzei os braços.
- Certo. Agora chega. Você vai me dizer o que está acontecendo. E quero tudo, Ayla. Sem rodeios.
Os olhos dela encontraram os meus, mas havia algo ali - algo que me fez hesitar. Medo. Não de mim, mas de algo maior, algo que ela parecia carregar sozinha há muito tempo.
- Tudo bem. - Sua voz era um sussurro, mas tinha o peso de uma confissão. Ela soltou a mão da menina e deu um passo à frente. - Mas se prepare, Rick. O que vou te contar... vai mudar tudo.
Meu riso foi seco e carregado de descrença.
- Eu sempre estou preparado.
Mentira. E ela sabia disso.
Ayla parou diante de mim, os olhos brilhando com uma intensidade que me deixou desconfortável.
- Rick, sua linhagem não foi escolhida para liderar ou proteger como você sempre acreditou.
Franzi o cenho, irritado.
- Foi isso que me ensinaram. Somos fortes, os melhores. É o que somos.
Ela balançou a cabeça, sua voz baixa, mas afiada como uma lâmina.
- Não. Sua linhagem foi amaldiçoada.
As palavras dela me atingiram como um soco no estômago. Minha mente girava, tentando processar o que ela acabara de dizer.
- Amaldiçoada? O que isso quer dizer?
Ayla deu um passo à frente, a luz do símbolo em sua mão lançando sombras dançantes em seu rosto.
- Significa que você não é só um lobisomem. Sua linhagem carrega algo selado há séculos. Algo que as sombras querem... e que destruirá tudo se cair nas mãos erradas.
Eu ri, uma risada amarga que escondia minha inquietação.
- Por que ninguém nunca me contou isso?
A menina, que até então estava em silêncio, ergueu a cabeça.
- Porque ninguém queria que você soubesse.
Eu me virei para ela, minha paciência se desfazendo em pedaços.
- O que você sabe, garota?
Ela não piscou, sua voz tão calma que me fez estremecer.
- Eu sei que você é a chave. E que as sombras não vão parar até te encontrar.
Eu dei um passo em direção a ela, um rosnado escapando da minha garganta, mas Ayla ergueu a mão, me detendo.
- Pare, Rick. Ela não está mentindo.
Me virei para Ayla, sentindo a raiva crescer como uma tempestade dentro de mim.
- E você sabe disso como? Porque, até agora, tudo o que você faz é me enrolar com enigmas.
Ela respirou fundo, seu olhar penetrante.
- Porque o símbolo que eu carrego... foi feito para proteger você. Sua linhagem.
Minhas pernas quase cederam.
- Proteger-me?
Ela assentiu, seus olhos sombrios com o peso da revelação.
- Há séculos, um poder foi selado dentro da sua linhagem. Um poder tão destrutivo que só poderia ser contido com magia antiga. Esse símbolo - ela levantou a mão, o brilho quase ofuscante - é a única barreira entre você e as sombras que querem libertar isso.
Minha mente gritava, negando cada palavra, mas meu coração... meu coração sabia que era verdade.
Eu olhei para a floresta ao nosso redor, sentindo o peso do destino pressionando meu peito.
- Então, o que fazemos agora?
Ayla apertou os punhos, o brilho do símbolo parecendo responder à sua determinação.
- Sobrevivemos. Mas não por muito tempo, Rick. As sombras estão vindo. E quando nos encontrarem, você vai ter que escolher.
Eu engoli em seco, meu instinto me alertando de que a escuridão não estava tão distante quanto ela dizia. Era como se algo estivesse se aproximando, rastejando pela floresta... esperando.
Ayla dizia que eu precisava escolher. Sobreviver, lutar, correr, tudo parecia inevitável. Mas a escolha... a verdadeira escolha, era o que me paralisava. Não eram apenas palavras ou enigmas. Era um peso. Um fardo que, até aquele momento, eu não sabia que carregava.
Por toda a minha vida, me disseram que eu era forte, que meu destino era liderar, proteger e garantir a sobrevivência da nossa espécie. Que eu era especial. E, de certa forma, eu acreditei nisso. A força, a velocidade, o instinto - tudo isso fazia parte de mim como uma segunda pele. Era quem eu era. Mas agora, tudo parecia frágil.
Eu olhei para minhas mãos. Eram mãos que já haviam derrubado inimigos, arrancado vidas, mas também protegiam aqueles que eu amava. Como algo tão humano podia conter o que Ayla dizia? Uma maldição. Um poder selado por séculos. A palavra rodava na minha mente como um eco que eu não conseguia ignorar.
Se aquilo era verdade, então tudo o que eu acreditava era mentira. Eu não era um líder. Eu era uma bomba-relógio, uma arma esperando para ser usada. Pior ainda, eu não tinha controle sobre isso. E era isso que me atormentava.
Minha vida foi construída sobre controle. Controle dos meus instintos, da minha força, das minhas emoções. Eu sempre pensei que, enquanto estivesse no comando de mim mesmo, ninguém poderia me derrotar. Mas como lutar contra algo que estava dentro de mim? Algo que eu nem sabia que existia?
Olhei para Ayla. Ela parecia tão segura de si, tão determinada. O símbolo em sua mão pulsava como se compartilhasse da sua força de vontade. Ela sabia mais do que estava dizendo, mas eu não podia culpá-la. Havia medo nos olhos dela. Não de mim, mas do que eu podia me tornar.
E então havia a menina. Ela era apenas uma criança, mas falava como se tivesse vivido séculos. Cada palavra dela carregava uma certeza assustadora. Eu não era apenas o portador de uma maldição. Eu era uma peça em um jogo muito maior do que qualquer coisa que eu pudesse entender.
Meus pensamentos voltaram para minha família, para o que significava ser parte da minha linhagem. Quantos antes de mim carregaram esse peso sem saber? Quantos morreram sem entender o que realmente eram? E, acima de tudo, por que eu? Por que tinha que ser eu?
Eu queria lutar contra isso. Queria gritar para o vazio que eu não aceitava esse destino. Mas no fundo, sabia que isso não importava. Era verdade. Tudo o que Ayla dizia, tudo o que a menina insinuava. O peso na minha alma não era só a culpa ou a dúvida. Era o poder. Estava lá, como uma fera dormindo, esperando o momento certo para acordar.
Eu me virei para a floresta, tentando afastar os pensamentos. Mas eles me perseguiam, implacáveis.
Será que eu conseguiria sobreviver a isso?
Não fisicamente, mas mentalmente?
Será que era forte o suficiente para resistir às sombras quando elas chegassem?
Ou será que eu acabaria me rendendo ao poder dentro de mim?
A ideia de perder o controle era pior do que qualquer morte que eu pudesse imaginar. Eu me orgulhava da minha força, mas se isso era verdade, então minha força era uma mentira. Uma fachada para algo terrível e incontrolável.
E então veio a pergunta que me corroía por dentro: se eu realmente tivesse esse poder, se eu fosse a chave para algo tão destrutivo... deveria mesmo lutar contra isso? Ou seria mais fácil deixar as sombras vencerem?
Não, pensei, quase gritando comigo mesmo. Eu não podia pensar assim. Não podia ceder. Mas as dúvidas estavam lá, e duvido que algum dia elas iriam embora.
A verdade era clara: não importava o que eu quisesse, ou o que eu acreditasse. As sombras estavam vindo. E quando chegassem, eu teria que enfrentar a parte de mim que mais temia. A parte que eu não entendia.
Por agora, tudo o que eu podia fazer era continuar caminhando. Colocar um pé na frente do outro, fingindo que a verdade não estava me devorando por dentro. Mas algo dentro de mim já sabia: a escolha de que Ayla falava não seria uma questão de sobrevivência. Seria uma questão de identidade. Quando chegasse a hora, eu teria que decidir quem eu era. Ou talvez... quem eu estava disposto a me tornar.
- Então, por que agora? - perguntei finalmente, minha voz mais calma, mas carregada de exaustão. - Por que isso está acontecendo agora?
Ayla deu de ombros, mas havia algo em seu olhar que denunciava mais do que desânimo. Era tristeza, como se ela estivesse carregando um peso tão grande quanto o meu.
- Porque o selo está enfraquecendo. E as sombras sentem isso.
Fechei os olhos por um momento, tentando encontrar alguma lógica no caos. Respirei fundo, o cheiro úmido da floresta enchendo meus pulmões. Quando finalmente os abri, encarei Ayla, minha mente fervilhando.
- E você? - perguntei, minha voz dura, quase acusatória. - O que você ganha com isso?
Ela não hesitou. Seus olhos se fixaram nos meus, firmes como rocha.
- Eu não ganho nada, Rick. Mas, se não te ajudar, todos nós perdemos.
Por mais que eu quisesse duvidar, não havia mentira na voz dela. A franqueza era inegável, e havia algo na maneira como ela falou que me atingiu profundamente. Ela estava aqui, se colocando no caminho do perigo, não por ela mesma, mas por mim.
Ainda assim, acreditar nela não significava aceitar.
- Certo. - Suspirei, a frustração tomando conta de mim. O peso do que ela estava dizendo era quase esmagador. - Então, o que fazemos agora?
Ayla deixou escapar um sorriso breve, mas era um sorriso vazio, carregado de uma melancolia que eu não conseguia ignorar.
- Sobrevivemos. E encontramos uma maneira de reforçar o selo antes que seja tarde demais.
Balancei a cabeça, mais para mim mesmo do que para ela, tentando me convencer de que isso era possível. Sobrevivência... era a única coisa que eu sempre entendi. Mas agora, pela primeira vez, parecia insuficiente.
Enquanto voltávamos a caminhar, o silêncio entre nós era pesado. Cada passo ecoava como um lembrete de que o tempo estava contra nós. Eu tentava me concentrar no som das folhas, no farfalhar do vento, mas as palavras dela rodavam na minha mente, implacáveis.
Minha linhagem era uma maldição. Não um dom, não um privilégio, mas uma sentença que eu nunca pedi para carregar. Eu era o portador. As sombras estavam vindo, e o selo que protegia o mundo estava falhando. Eu sabia o que isso significava: escolhas difíceis, sacrifícios inevitáveis, e um confronto com algo que eu nem sequer entendia.
A cada passo que dávamos pela floresta, sentia o peso do destino se acumulando nos meus ombros. O mundo parecia mais escuro, as árvores mais altas, as sombras mais próximas. Tudo parecia conspirar contra nós, como se a floresta fosse um prelúdio para o que estava por vir.
Deixei escapar um suspiro profundo, sentindo um nó se formar em minha garganta. Eu não queria ser o portador. Não queria ser o responsável por algo tão grande, tão destrutivo. Mas a realidade era implacável. Não importava o que eu queria. O destino não ligava para as minhas vontades.
Sobrevivência.
Era isso que Ayla dizia. Mas sobreviver era apenas o começo. Não era suficiente. Não se tratava mais de apenas salvar a mim mesmo ou aqueles que eu amava. Era algo maior, algo que envolvia todo o mundo - e eu, contra minha vontade, era o centro disso tudo.
A pergunta que não queria calar ecoou em minha mente: se o selo falhar, quem eu me tornarei? A resposta me assombrava. Porque, no fundo, eu sabia que, quando esse momento chegasse, eu não seria mais o mesmo. E talvez, apenas talvez, essa nova versão de mim fosse o verdadeiro perigo.