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Segui para o elevador de serviço , que geralmente estava vazio, afim de aproveitar o silêncio da minha própria companhia. O elevador subia em um ritmo irritantemente lento, como se o próprio prédio estivesse conspirando contra a minha pressa. Eu me encostei na parede metálica, fechando os olhos por um momento. O silêncio dentro da cabine era quase hipnótico, e os ecos da música suave do carro ainda pairavam na minha mente, como uma onda que vai e vem, tentando me lembrar de respirar.
Quando as portas se abriram no meu andar, inspirei fundo, tentando preencher meus pulmões com algo além do cansaço. O corredor estava tão quieto quanto eu imaginava, e o som dos meus passos ecoava suavemente pelo espaço vazio. Assim que abri a porta do apartamento, fui recebida pelo cheiro familiar da casa: uma mistura de limpeza com o perfume suave das flores que Maria insistia em trocar toda semana. Era acolhedor, e exalava uma paz, difícil de ignorar.
A cozinha estava impecável, como sempre. Sobre o balcão, o prato que Maria havia deixado pronto para mim me esperava, embalado como um presente que ela sabia que eu precisaria. Maria era uma dessas pessoas que pareciam entender o que você precisava sem que fosse necessário pedir. Ela me conhecia bem, já trabalhava conosco desde meu nascimento e eu tinha um carinho gigante por ela. Peguei o prato, aqueci no micro-ondas e me sentei à mesa, que parecia enorme naquele silêncio. Enquanto mastigava, meus pensamentos vagavam para Tay e Gael. Eles eram o oposto de tudo que eu sentia naquele momento. Sempre rindo, sempre despreocupados, sempre vivendo o agora. Às vezes, eu me perguntava como eles faziam isso. Como conseguiam se desprender do peso das obrigações e simplesmente... existir? Já eu, parecia que estava sempre correndo, sempre tentando alcançar algo. Algo que eu nem mesmo sabia o que era.
O som seco do despertador trouxe meu foco de volta. O tempo não parava, nem mesmo para as minhas reflexões. Com um suspiro, levantei, coloquei o prato na lava-louça rapidamente e fui para o quarto. Enquanto tirava a roupa, senti o cansaço latejar em cada músculo do meu corpo, mas ignorei. Liguei o chuveiro e deixei a água quente escorrer por mim, como se pudesse lavar mais do que apenas o suor do dia.
Depois do banho, vesti o collant preto que abraçava meu corpo com firmeza, seguido pelas leggings justas que usava para dançar. Prendi o cabelo em um coque simples e me encarei no espelho. A luz do quarto parecia mais fria do que o normal, iluminando meus olhos que, apesar de tudo, ainda carregavam aquele brilho de determinação.
Peguei minha bolsa de dança e travei a porta ao sair, tentando ignorar a sensação de que o elevador estava ainda mais lento agora e que certamente eu ia me atrasar. Quando finalmente cheguei ao térreo, o calor do sol me envolveu como um lembrete de que o mundo continuava girando, independente de como eu me sentia.
Atravessar a rua até o estúdio de dança foi como atravessar uma linha invisível entre duas realidades. Assim que entrei, o cheiro de madeira polida e resina preencheu minhas narinas. Aquele aroma tinha algo de mágico, algo que imediatamente começava a dissolver o peso que eu carregava. De uma das salas, o som de um piano tocando uma música clássica preenchia o ambiente, cada nota pulsando em mim como um lembrete de que aquele era meu refúgio.
Troquei um aceno breve com algumas colegas e fui direto para o centro da sala. O chão de madeira sob meus pés parecia estável e convidativo, quase como se estivesse dizendo: "Você pertence a este lugar." O professor estava ajustando o aparelho de som, preparando a próxima música, e eu aproveitei aquele momento para respirar fundo, sentindo cada célula do meu corpo se preparar.
O primeiro acorde do piano ecoou pela sala, e meu coração acelerou. Era como se, naquele instante, o mundo tivesse parado de girar. Meus pés começaram a se mover, guiados por uma força que não era apenas minha. A dança tomava conta de mim, transformando cansaço em energia, dúvidas em confiança, e rotina em arte.
Girei, saltei, deslizei. Cada movimento era como um grito silencioso, uma declaração de que, apesar de tudo, eu estava ali. E naquele espaço, entre uma pirueta e outra, eu encontrei algo que não sabia que estava buscando: a sensação de estar viva.
A dança me transportava para um universo paralelo, um mundo só meu, onde eu finalmente me permitia viver, como Gael insistia que eu deveria. Ali, eu não tinha medos. Era como se cada passo, cada giro, fosse uma fuga perfeita, onde tudo parecia certo demais, bonito demais, intenso demais para ser ignorado. Mas, no fundo, eu sabia. Sabia que esse mundo era apenas uma ilusão, uma fantasia efêmera. Mais cedo ou mais tarde, eu teria que cair na real. Só não imaginei que seria tão abrupto.
O último acorde da música ecoou pela sala, e eu senti o silêncio pesar sobre mim como uma verdade não dita. Antes mesmo de recuperar o fôlego, meu professor se aproximou, sua expressão carregada de algo que eu não conseguia decifrar.
– May, você estava incrível, como sempre – ele começou, mas havia um "mas" no tom dele, um "mas" que eu não estava preparada para ouvir. – Contudo, percebi que em alguns momentos você perdeu a precisão nos passos. O que houve?
Sua voz estava mais preocupada do que crítica, o que só piorava as coisas. Eu me odiava por isso. Por permitir que meu corpo entregasse o que minha mente tanto tentava esconder.
– Não é nada demais – respondi rapidamente, quase ensaiando o tom despreocupado. – Só estou cansada. Minha rotina tem sido puxada, colégio, provas finais... Tenho me esforçado muito. Só cansaço, prometo.
Era uma meia verdade, e, pelo olhar dele, eu sabia que não tinha sido suficiente. Ele não comprou minha desculpa.
– Entendi – ele respondeu, sua voz carregada de um peso que eu não esperava. – Nesse caso, May, você está dispensada das aulas até a apresentação.
O chão pareceu escorregar debaixo dos meus pés.
– O quê? Não, professor, eu posso continuar! – tentei argumentar, minha voz quase desesperada.
Mas ele ergueu a mão, me cortando com uma firmeza inabalável.
– Não tem discussão, May. Você já sabe toda a coreografia, sabe exatamente o que tem que fazer. A questão aqui não é técnica, é física. Seu corpo está gritando por descanso, e se você não ouvir, ele vai te obrigar a parar. E, acredite em mim, você não vai gostar das consequências.
As palavras dele caíram sobre mim como um balde de água fria. Uma mistura de frustração, vergonha e, talvez, um toque de alívio me atingiu. Contra minha vontade, assenti, engolindo o nó que se formava na minha garganta.
Enquanto eu guardava minhas coisas, a voz de Tay ecoava na minha mente: "Você precisa aprender a dizer não. Para a rotina. Para o mundo. Para si mesma, se necessário." E agora, parecia que todos ao meu redor estavam dizendo isso por mim. Primeiro Tay, agora meu professor. E o pior de tudo era que eles estavam certos.
Saí do estúdio com os passos mais pesados do que quando entrei, a bolsa pendendo no meu ombro como se carregasse não apenas as roupas de dança, mas todas as minhas exaustões acumuladas. Lá fora, o sol parecia brilhar mais forte, como se zombasse de mim.
Eu sabia que precisava parar. Meu corpo implorava, minha mente gritava, e cada parte de mim exigia descanso. Mas havia algo mais forte, algo que me prendia ao caos da minha rotina. Não era apenas a dança, os estudos ou a correria diária; era o medo. Um medo tão profundo e enraizado que eu mal conseguia nomeá-lo. Se eu parasse agora, seria um caminho sem volta.
Parar significava abrir espaço. Abrir espaço para pensar, para sentir. Para deixar que o silêncio preenchesse os espaços que eu preenchia com movimento. E o silêncio era perigoso, porque nele, eu teria que encarar a verdade. A verdade de que não eram apenas as responsabilidades que eu carregava, mas as barreiras que eu mesma construí.
Eu havia criado um mundo inteiro de muros e armaduras ao meu redor, uma fortaleza onde ninguém poderia entrar. Passei anos me convencendo de que eu seria suficiente sozinha, que o amor era algo a ser lido nos romances perfeitos, algo que não precisava ser vivido. Afinal, viver o amor significava arriscar me machucar, me perder, ser vulnerável. E vulnerabilidade era a minha pior inimiga.
Então, mantive meu mundo em movimento constante. A dança me dava controle. A rotina me dava segurança. Não havia espaço para sentimentos. Não havia brechas para o amor, porque eu acreditava que, se ele entrasse, arruinaria tudo. Ele destruiria a ideia pura e perfeita que eu havia criado. Ele me deixaria exposta, aberta, frágil – e eu não permitiria isso.
Mas agora... agora tudo estava desmoronando. Meu corpo estava me forçando a parar, meu professor tinha razão, Tay tinha razão. Eu sabia que precisava descansar, mas isso significava abrir mão da minha fortaleza. E isso me aterrorizava.
Eu não podia permitir que o mundo real invadisse meu pequeno refúgio. Não podia dar espaço para que o amor, com toda a sua intensidade e imprevisibilidade, me encontrasse. E o amor, na vida real, não era como nos livros. Ele era incerto, desordenado, cruel às vezes. Ele era humano. E eu não estava pronta para isso.
Eu sentia o peso das minhas próprias defesas, a exaustão de carregar tanto para manter os outros à distância. Mas agora, enquanto caminhava para casa, sozinha, com o sol queimando minha pele e o silêncio preenchendo cada canto vazio da minha mente, eu percebia algo terrível: minha fortaleza não era tão impenetrável quanto eu pensava.
As rachaduras estavam lá, e, por mais que eu tentasse ignorá-las, elas se expandiam. E era isso que me assustava mais do que o cansaço, mais do que qualquer apresentação ou rotina puxada. Porque, no fundo, eu sabia... se essas barreiras caíssem, não haveria como reconstruí-las.
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Eu entrei em casa quase tropeçando nos próprios pés. O apartamento vazio me recebeu com o silêncio de sempre, mas, dessa vez, ele parecia mais pesado do que nunca. Larguei minha bolsa perto do sofá, sem forças pra ir até o quarto. Sentei, com o corpo implorando por um descanso que eu vinha ignorando há dias. Antes mesmo de pensar em trocar de roupa ou beber um pouco de água, simplesmente afundei no sofá. Meu corpo desistiu, e os olhos se fecharam sem que eu tivesse controle.
Não sei por quanto tempo dormi, mas acordei com o som irritante do celular vibrando na mesa de centro. Pisquei, confusa, tentando entender onde estava. O céu lá fora já estava escuro, e as luzes da sala ainda apagadas. Peguei o celular e vi o nome de Gael brilhando na tela.
– Oi, Gael. – Minha voz saiu rouca, denunciando o sono que eu ainda carregava.
– May, você tá viva? A Tay tá surtando porque você sumiu. Que horas você vem pra cá? – Ele riu do outro lado, o tom debochado como sempre.
– Droga... eu dormi. – Suspirei, passando a mão no rosto. – Me dá uns vinte minutos, tô indo.
– Beleza. Só não se perde no caminho, tá? – ele brincou antes de desligar.
Levantei meio zonza, com o corpo ainda pesado, mas ainda assim me sentia mais leve.Talvez fosse o cochilo ou a ideia de uma noite com pizza e risadas que me dava um pouco de ânimo. Levantei , tomei um banho,me vesti rapidamente, prendi o cabelo num rabo de cavalo bagunçado e saí correndo.