Minha mão tremeu, os olhos fixos no prato vazio dela. A raiva ferveu. Com um grito rouco e abafado, agarrei a travessa mais próxima e arremessei contra a parede. A porcelana se estilhaçou com um estrondo. Em seguida, virei a mesa com um movimento violento, jogando tudo no chão. Louças, taças, talheres, voaram pelo salão. A mesa de mogno ficou virada, a toalha manchada de vinho escorrendo como sangue.
- Porra! - gritei, socando a parede até sentir a pele dos nós dos dedos abrir. O sangue escorreu quente, mas nem isso me fez parar.
Luciana apareceu na porta, assustada, mas bastou um olhar meu para que ela desaparecesse no mesmo instante. A respiração ainda estava pesada quando saí, passando pelos corredores com passos rápidos. Precisava entender. Precisava de respostas.
Encontrei a doutora Samira organizando algumas anotações no escritório improvisado do andar de baixo.
- Onde ela está? - perguntei direto, a voz tensa.
A médica levantou os olhos com calma.
- Está no quarto. Assustada. Sugiro que a deixe respirar.
- O que está acontecendo com ela, doutora? - me aproximei, tentando controlar a raiva que ainda queimava sob a pele. - Por que ela me evita como se eu fosse um estuprador?
Samira me analisou com aquele olhar clínico. Deixou a prancheta e se encostou na mesa.
- Ela tem androfobia, Ezequiel. Medo irracional de homens. Um trauma profundo, causado pelo que sofreu desde muito pequena, por vários homens.
Isso não se apaga com gestos gentis ou refeições bonitas. Para ela você mente que a salvou, mas está fazendo o mesmo que os outros.
Aquelas palavras me atingiram como um soco. Dei um passo para trás, como se meu corpo recusasse o que estava ouvindo.
- Está dizendo... que ela tem medo só por eu ser homem?
- Sim. - Samira assentiu com suavidade. - Não é você. É o que você representa. O gênero, a figura masculina, o toque, a aproximação. Tudo isso é um gatilho. E, pelo que ela me contou, não é para menos.
- Ela já me deixou chegar perto antes, eu não entendo...
- Aqui? - olhou ao redor.
- Não. Não foi aqui.
- Não passou mal com sua presença antes?
- Não, mas ela não sabia quem eu era. De qualquer forma não muda muita coisa. Quanto tempo isso leva para sumir?
- Não é algo que some, Ezequiel. É tratado. Com acompanhamento. Com paciência. Ela está quebrada por dentro. Tão acostumada à dor que o toque vira ameaça, a presença masculina lhe dá náuseas. Ela precisa sentir segurança verdadeira, e isso leva tempo. Muito tempo. Porém vou convidar uma colega psiquiatra para confirmar minhas suspeitas. Tem tratamento, tem que ter paciência, não é rápido o retorno.
Parei. Fechei os olhos por alguns instantes. As mãos ainda tremiam. Eu não estava acostumado a esperar. Muito menos a ser recusado.
- Ela vai conseguir melhorar? - perguntei com a voz baixa, quase num sussurro.
- Se estiver cercada das pessoas certas, sim. Posso ajudar com o tratamento, mas como disse, precisa também de uma psiquiatra.
Fiquei em silêncio por um longo tempo. O som da minha respiração era o único ruído no ambiente.
- Obrigado, doutora. - disse por fim, me virando.
Antes de sair, ouvi a voz dela mais uma vez.
- Ezequiel, se realmente quer ajudar, não se aproxime quando ela estiver com medo. Deixe que ela venha até você. Um passo por vez.
Assenti levemente e fechei a porta atrás de mim. Dessa vez, eu faria diferente. Não com força, não com domínio. Ela tem androfobia... E eu não tenho paciência. Ou pelo menos... eu aprenderia a ter.
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Esperei.
Não por fraqueza. Não por arrependimento. Mas porque força de verdade também sabe a hora de parar.
A casa estava silenciosa. O caos que eu mesmo deixei na sala parecia distante agora, como um campo de guerra depois da tempestade. Encostei na parede do corredor, os braços cruzados, os nós dos dedos latejando. Eu podia ter invadido. Podia ter mandado. Mas dessa vez, não.
Quando a noite chegou num silêncio espesso, fui até o quarto dela. Dois toques na porta. Firmes. Diretos.
- Mariana. - falei seu nome como um comando, mas sem dureza. - Posso entrar?
Demorou. Muito. O tipo de demora que me irritaria em qualquer outro momento. Mas me contive.
- Tudo bem. - ela disse, por fim. Baixo, hesitante.
Levei a mão à maçaneta, mas parei. Mantive o controle.
- Não vou entrar. - falei, recuando um passo. - Vou falar daqui da porta. Assim você fica tranquila.
Silêncio. Mas o ar do outro lado mudou. Menos medo. Mais tensão.
- Eu precisava conversar com você. Só isso. Sem pressão.
Ouvi um movimento do outro lado. Ela se mexendo. Talvez se sentando. Talvez pronta pra fugir de novo. Eu não recuei.
- Você me pediu duas coisas - continuei. - Ainda quer negociar?
Demorou. Outra vez.
- Depende... - ela respondeu, a voz trêmula. - O que você quer em troca?
Minha expressão endureceu. Era isso. Ela ainda tinha aquela fagulha de coragem.
- Nada que te machuque - falei, firme. - Nada que tire seu controle. Mas você sabe quem eu sou, Mariana. Eu não fico esperando para sempre. Nem aceito mentira. Então, se vamos conversar, tem que ser com verdade.
Outro silêncio. Dessa vez mais carregado.
- A doutora me disse o que você tem. E não vou fingir que entendo tudo. Mas sei o suficiente para não te encostar sem permissão. Sei que você não correu de mim, correu do que eu represento. E isso, Mariana, eu posso aprender a controlar.
Minha mão encostou levemente na porta.
- Mas não me peça para sumir. Isso, eu não vou fazer. Eu cuido do que é meu.
A respiração dela ainda era irregular, mas estava ali. Me ouvindo, pensando.
- Quando estiver pronta para conversar, me chama. Até lá, eu fico no meu canto.
Dei dois passos pra trás. E então, quando já virava para sair, ouvi:
- Ezequiel, espera.
Parei. Não olhei de imediato. Esperei ela continuar.
- Eu... quero negociar.
Apenas sorri de canto. Um sorriso contido, mais perigoso do que gentil.
- Então trate de pensar direitinho no que quer, Mariana. Porque eu sou homem de palavra, e de ação.
- O que quer Ezequiel? - olhei para ela agora.