/0/14536/coverbig.jpg?v=66b37eb8b1c7502e6e58caeab2c07925)
A chuva persistia, insistente, como se abril quisesse provar algo. Helena passou a manhã observando as gotas escorrerem pela janela da cozinha, riscando o vidro com movimentos indecisos. O bule de chá chiava no fogão, preenchendo o ambiente com um cheiro de camomila e lembrança. Ela não pensava em sair. Não naquele dia. Não depois do que sentiu ao encarar aqueles olhos escuros.
Mas a inquietação era como uma corda presa ao tornozelo - puxava devagar, dia após dia.
Meio-dia chegou sem anúncio, e a tempestade parecia desacelerar. O céu clareou o suficiente para que o cinza virasse prata, e a vontade de respirar sal e maresia a venceu. Ela calçou as botas, vestiu o casaco longo de lã que herdara de Leonor e pegou o caderno de esboços, agora religiosamente sob o braço.
Ao atravessar a estrada de terra que separava sua casa do mar, reparou nas marcas fundas dos pneus, afundadas pela chuva da noite anterior. A vila ainda dormia, mesmo sendo tarde. Não havia muito o que fazer por ali - as pessoas viviam como se o tempo tivesse desacelerado. Um ritmo preguiçoso, cheio de rituais: o pão pela manhã, o peixe no fim da tarde, o sino da igreja aos domingos.
Na praia, o cenário parecia um quadro impressionista: o mar revolto, pincelado em cinza e branco; as gaivotas em voo baixo, cortando o céu opaco. E ele - claro, ele - no mesmo lugar.
Dessa vez, de pé.
Sem violão.
Aproximou-se devagar, mas ele percebeu. Virou-se lentamente, as mãos nos bolsos da jaqueta jeans surrada. Um fio de cabelo escapava por baixo do gorro preto, molhado de chuva.
- Você de novo - disse, e o tom não era de incômodo. Era curiosidade embutida em um sorriso quase imperceptível.
- Você é parte da paisagem agora - respondeu, com um leve encolher de ombros. - Como as pedras, as gaivotas...
- As pedras têm nome - ele rebateu.
Helena arqueou uma sobrancelha, surpresa.
- Essa aqui - apontou para a pedra grande onde costumava se sentar - é chamada de Pedra do Silêncio. Pelo menos, é o que o velho do mercado diz. Mas ele também jura que viu sereias em noite de lua cheia, então...
Ela soltou um riso breve. Pela primeira vez em muito tempo, algo soou leve dentro dela.
- E você? Tem nome? - arriscou.
- Gabriel.
- Helena.
Silêncio. Mas um silêncio que não incomodava. Era como se o ar entre eles precisasse se acomodar à nova realidade: nomes trocados, identidades reconhecidas, pontes lançadas sem promessa de travessia.
- Mora aqui? - ele perguntou, chutando uma pedra menor com a ponta da bota.
- Agora sim. Por um tempo, pelo menos. A casa da minha tia-avó ficou vazia. Resolvi... respirar um pouco longe de tudo.
Gabriel assentiu, sem perguntar o que era "tudo". Ela gostou disso. A ausência de curiosidade invasiva. O respeito ao não-dito.
- E você? - devolveu.
Ele hesitou.
- Tô por aqui. Temporariamente também.
- Músico?
Gabriel olhou para o mar antes de responder. Os olhos perderam o foco por um instante.
- Já fui.
Helena quis perguntar mais, mas sentiu que seria invasivo demais. Então só assentiu.
- Posso te mostrar uma coisa?
A pergunta veio rápida, inesperada. Ela hesitou por um instante, mas seguiu o impulso.
- Pode.
Ele a guiou até a encosta, subindo por uma trilha que serpenteava entre pedras cobertas de musgo. A chuva tinha parado, e o som das ondas ganhava mais nitidez. Ao fim do caminho, havia uma clareira - um pequeno espaço entre arbustos e pinheiros baixos, com vista direta para o mar aberto. No meio, um banco de madeira envelhecida, coberto por líquens.
- Ninguém vem aqui - disse ele. - É meu refúgio.
Helena sentou-se sem pedir permissão. Gabriel fez o mesmo.
- Por que você me trouxe?
Ele demorou a responder.
- Porque... você não parece querer fugir daqui. Só fugir de si.
A frase a atingiu como um soco. Ela olhou para ele, surpresa. Mas não havia julgamento no tom. Era só uma constatação.
- Você também, né?
Gabriel olhou para o chão. Os dedos entrelaçados, os olhos cheios de passado.
- Talvez.
Ficaram ali por longos minutos, sem dizer nada. Helena abriu o caderno no colo e começou a desenhar. Não ele - ainda não. Mas a pedra. O banco. As folhas dançando com o vento.
- Você desenha?
- Desde sempre.
- E por que parou?
Ela parou de traçar a linha.
- Porque... olhar demais para dentro, às vezes, machuca.
Ele assentiu, como quem entende.
- Eu também parei de tocar por isso.
Dessa vez, ela olhou para ele com mais intensidade.
- O que aconteceu?
Gabriel demorou. As palavras vieram lentas.
- Meu irmão... morreu há dois anos. A gente tinha uma banda. Ele era tudo o que eu não sou. Brilhava. Eu... só acompanhava. Quando ele se foi, pareceu errado continuar. Como se tocar fosse fingir que ainda existia música entre nós.
Helena sentiu o nó na garganta subir, engolido com dificuldade.
- Eu perdi minha irmã.
Os olhos dele encontraram os dela. E por um instante, não havia dois estranhos ali. Só dois corações quebrados, reconhecendo as rachaduras um do outro.
- Como?
Ela hesitou. Não contava aquilo para ninguém. Mas ali, naquele banco esquecido entre a floresta e o mar, tudo parecia mais simples.
- Carro. Chovia. Ela estava dirigindo. Eu disse para irmos outro dia. Ela insistiu. Eu... insisti também. Queria chegar logo em casa.
Gabriel não disse nada. Apenas tocou o próprio peito, como se guardasse aquilo ali.
- A culpa é uma prisão - ele disse. - E você não percebe, mas começa a decorar a cela com flores, para parecer menos sufocante.
Helena sorriu com tristeza. Era exatamente isso.
O tempo passou devagar ali. Como se o mundo tivesse se esquecido deles. Quando as primeiras gotas da nova chuva começaram a cair, Gabriel se levantou.
- Vamos? A trilha fica escorregadia.
Ela o seguiu sem pensar.
Desceram em silêncio, o som das folhas molhadas sob os pés, o cheiro da terra úmida preenchendo tudo. Quando chegaram de volta à praia, a vila começava a despertar: janelas abrindo, vozes infantis ao longe, cheiro de pão fresco vindo da padaria da esquina.
- Obrigada - ela disse.
- Por quê?
- Por... me lembrar que ainda existe gente que sente do mesmo jeito.
Gabriel sorriu, mas não respondeu. Apenas assentiu.
- Eu sempre estou naquela pedra, se quiser aparecer de novo.
Ela queria.
E sabia que iria.