/0/14536/coverbig.jpg?v=66b37eb8b1c7502e6e58caeab2c07925)
Helena acordou com a claridade suave da manhã filtrada pela cortina fina. Os lençóis ainda guardavam o calor da noite, e por um instante ela permaneceu imóvel, olhando o teto, ouvindo os pássaros do lado de fora. O sonho da noite anterior ainda flutuava entre seus pensamentos: Gabriel, de olhos fechados, tocando violão sob uma chuva dourada que caía de um céu sem nuvens.
Era um daqueles sonhos que não pedem explicação, apenas deixam um sentimento. E o sentimento, naquele caso, era uma saudade que mal tinha tempo de nascer.
Levantou-se, fez café, mas não tomou. Pegou o caderno de desenhos e folheou as páginas com as mãos mornas. Ali estavam traços do Gabriel que ela vinha descobrindo devagar - o perfil concentrado, as mãos nas cordas, o meio sorriso depois de tocar algo bonito. Mas também havia nela algo que se revelava aos poucos nessas páginas: o desejo de não perder mais ninguém.
Vestiu um casaco leve e saiu. O céu estava nublado, a cidade parecia coberta por uma melancolia elegante. O cheiro de pão quente escapava de uma padaria na esquina. Crianças riam na calçada, e o som era como um eco distante da infância que ela deixou em algum lugar do passado.
Seguiu em direção ao litoral, ao velho caminho entre árvores onde os dois costumavam se encontrar. Havia uma certeza calma nos passos dela, como se o corpo soubesse o caminho antes da mente.
Gabriel já estava lá.
Sentado sobre a pedra, pernas cruzadas, tocava uma melodia que ela nunca tinha ouvido antes - algo triste, lento, mas com uma beleza que fazia os olhos arderem. Ele não a viu se aproximar.
- Essa é nova? - perguntou ela, suavemente.
Gabriel parou de tocar e virou-se com um sorriso sereno.
- Sonhei com ela ontem. Era você na janela, olhando a chuva.
- Sempre chove nos seus sonhos?
- Só quando estou tentando lembrar de alguém.
Ela se sentou ao lado, abraçando os joelhos.
- E você me lembra?
Ele a olhou de um jeito que parecia atravessar camadas.
- Você me lembra tudo o que perdi... e tudo o que ainda posso encontrar.
Helena virou o rosto, como quem desvia de um espelho. O coração batia com força demais para aquele tipo de frase dita com tanta simplicidade.
- Às vezes me sinto prestes a cair - disse ela, olhando para o mar. - Como se esse lugar, você... tudo fosse feito de névoa. E que, se eu me esticar demais, vai desaparecer.
- E se eu cair junto?
Ela o encarou.
- Você faria isso?
- Eu não sei se tenho mais medo de cair... ou de ficar sozinho no alto.
As palavras pairaram entre os dois como vento antes da tempestade.
E então, sem aviso, Helena esticou a mão. Tocou a ponta dos dedos dele com os seus. Não foi um gesto romântico, nem simbólico - foi quase um pedido de ajuda mudo.
Gabriel não se mexeu. Mas também não recuou. Suas mãos ficaram ali, lado a lado, separadas apenas por milímetros. A distância entre duas mãos que não sabiam se era cedo demais... ou tarde demais.
- Posso te mostrar um lugar? - disse ele, a voz baixa.
Ela assentiu. E então, os dois se levantaram.
A caminhada foi curta, mas marcada por pequenos silêncios e trocas de olhares. Gabriel a levou até um antigo farol desativado, escondido entre mato alto e pedras. A estrutura era enferrujada e coberta por grafites desbotados, mas ainda guardava certa imponência melancólica.
- É aqui que eu venho quando o mundo pesa - disse ele. - Tem algo de verdadeiro nesse lugar.
Subiram os degraus em espiral até o topo. Lá em cima, o vento cortava o rosto, mas a vista compensava tudo. O mar se estendia em todas as direções, uma imensidão que fazia tudo parecer pequeno - inclusive os medos.
Helena se aproximou da beirada e ficou olhando as ondas. Gabriel parou a um passo atrás, como se respeitasse um limite invisível.
- Eu quase pulei daqui uma vez - ele disse.
Ela se virou lentamente. A frase havia sido dita com serenidade, sem drama, mas com uma honestidade tão crua que lhe faltaram palavras.
- Você...
- Não pulei. O vento me empurrou pra trás. Literalmente. Acho que o mundo me queria vivo, apesar de mim.
Ela o olhou longamente, depois deu um passo à frente e segurou a mão dele. Dessa vez por inteiro. Os dedos se entrelaçaram com naturalidade, como se estivessem se procurando há muito tempo.
- Ainda bem - disse ela. - Ainda bem que o mundo insistiu.
Eles ficaram ali, lado a lado, de mãos dadas, sentindo o vento, o cheiro do mar, o silêncio. Helena encostou a cabeça no ombro dele, e Gabriel fechou os olhos por um instante.
O tempo não parecia passar. Ou talvez passasse de um jeito diferente, como quando se está exatamente onde se deve estar.
Nos dias que seguiram, tornaram-se parte um do cotidiano do outro.
Helena levou Gabriel a uma cafeteria escondida no centro da cidade, onde o barista sabia o nome de todos os clientes e colocava jazz francês para tocar. Gabriel mostrou a ela um cemitério de barcos velhos na enseada norte, onde cada casco abandonado contava uma história. Ele brincou que, se um dia escrevesse um livro, começaria ali.
Ela disse que, se escrevesse um livro, terminaria ali.
- Isso seria um problema - disse ele, sorrindo. - Porque eu começaria onde você termina.
- Então escreveríamos juntos - respondeu ela, e os dois riram, embora soubessem que não estavam apenas brincando.
Na noite do décimo primeiro dia, choveu forte. Gabriel apareceu na porta do pequeno apartamento de Helena, encharcado, com o violão nas costas e um saco de pão quentinho na mão.
- Não tinha lugar melhor pra ir - disse ele.
- Eu também não - respondeu ela, deixando-o entrar.
Ela o secou com uma toalha grande, e ele retribuiu com o pão e um chá quente. Sentaram-se no chão da sala, com as costas encostadas na parede, as pernas estendidas.
- Já reparou como tudo o que é importante acontece quando está chovendo? - disse ela.
- Porque a chuva disfarça - respondeu ele. - Disfarça lágrimas, silêncios, verdades.
Ela virou-se para ele. Os rostos estavam próximos demais.
- E o que você quer disfarçar agora?
- Nada - disse ele. - Pela primeira vez, nada.
E então, ele a beijou.
Foi um beijo calmo, seguro, quase reverente. Um beijo que pedia licença, que respeitava cada pedaço de dor que ela carregava. Um beijo que não vinha para resolver nada, apenas para estar junto.
Quando se afastaram, ela não disse nada. Apenas encostou a testa na dele e fechou os olhos.
Ficaram assim, ouvindo a chuva bater na janela. O mundo lá fora podia continuar girando, gritando, apagando e reacendendo. Mas ali dentro, entre eles, havia apenas paz.
E era tudo o que precisavam.