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A manhã depois do beijo parecia uma manhã comum - o tipo de manhã que disfarça revoluções internas com um céu cinza claro e o cheiro habitual de café coado. Mas dentro do peito de Helena, tudo estava desalinhado. Ou realinhado. Era difícil saber. Ela acordou antes de Gabriel, que ainda dormia no sofá, os cabelos bagunçados e o braço sobre os olhos, como se protegesse sonhos frágeis.
Ela ficou ali por longos minutos, observando-o respirar. Cada inspiração parecia desenhar uma linha invisível entre eles, e a respiração dele, lenta e funda, era quase como uma música. Aquilo a assustava. Era como encontrar abrigo depois de tanto tempo à deriva - e descobrir que, talvez, você tenha desaprendido a permanecer.
Gabriel acordou com o barulho da chaleira. Ela não o chamou, mas ele apareceu na cozinha com passos leves e olhos que sorriam antes da boca.
- Bom dia, chuva?
- Ainda não - ela respondeu. - Hoje o céu resolveu dar uma trégua.
Ele pegou a caneca dela sem pedir permissão, tomou um gole do café, fez uma careta divertida.
- Ainda faz café como se fosse castigo.
- E você ainda dorme torto no sofá como se não tivesse escolha.
Eles riram. O riso deles era sempre leve, mas por trás dele havia o não dito. O peso das palavras guardadas, das dúvidas que se empilhavam em silêncios confortáveis.
- Sobre ontem... - ele começou.
Ela ficou imóvel, mexendo o açúcar com lentidão.
- Foi bonito - ela disse, interrompendo. - Só não sei se... você entende o que isso significa pra mim.
Gabriel encostou-se ao balcão, os olhos sérios.
- E você entende o que significa pra mim?
Ela suspirou, abaixou a colher na pia e finalmente o olhou.
- A gente se encontrou no meio de um vazio. E por mais que eu queira acreditar nisso - no que está nascendo entre nós -, tem uma parte de mim que ainda olha pra trás.
- Eu não quero substituir o que veio antes - disse ele, com a voz baixa. - Só quero ser o que vem depois.
A frase atravessou a sala como um sussurro que grita por dentro.
Na semana seguinte, eles se viram menos.
Não por falta de vontade - mas porque o cotidiano, esse inimigo invisível dos amantes, começou a insinuar suas exigências. Helena precisou terminar uma série de projetos de ilustração para uma editora nova. Gabriel teve que viajar para cuidar da saúde do pai, em uma cidade vizinha. Mas mesmo distantes, mantinham contato.
Mensagens curtas. Frases interrompidas. Áudios com risos. Silêncios partilhados por tela.
Em um dos áudios, Gabriel dizia:
- Fico pensando como seria te amar no tempo certo. Sem correr, sem medo. Sem fantasmas na sala. Mas talvez não exista tempo certo. Só coragem.
Ela ouviu aquele áudio dezenas de vezes, até decorar.
Quando ele voltou, havia algo diferente nos olhos dele. Uma urgência. Uma delicadeza quebradiça.
- Meu pai piorou - disse ele. - E eu não sei por quanto tempo ainda vou conseguir ficar por aqui.
Helena sentiu o chão se afastar dos pés. Sabia que esse momento viria - sempre vem -, mas isso não o tornava menos cruel.
- E você vai?
- Vou ter que ir. Mas não agora. Ainda não. Só... eu precisava te dizer.
- Obrigada - respondeu ela, em voz baixa.
Ele segurou as mãos dela.
- Me espera?
- Gabriel, eu esperei por mim a vida inteira. Esperar você não parece tão difícil.
Ele riu, mas o riso veio molhado.
- Isso foi... uma das coisas mais bonitas que alguém já me disse.
- Não foi pra ser bonito. Foi só verdade.
Na véspera da partida, ele a levou até o lugar onde tocaram pela primeira vez: o pequeno palco da biblioteca abandonada. Ela achava que seria um adeus melancólico, mas Gabriel estava diferente. Trazia no rosto uma calma quase luminosa.
- Tenho uma coisa pra você - disse, tirando do estojo um pequeno envelope de papel vegetal.
Dentro, havia uma partitura manuscrita. Era a melodia da chuva. Aquela que ele tinha tocado no primeiro dia em que ela o viu.
- Essa música é sua agora. Ela nasceu de um sonho com você. E mesmo que tudo mude, ela sempre vai me lembrar do que a gente teve.
- Gabriel...
- Não precisa dizer nada. Só guarda isso. Quando tocar essa melodia, lembra de mim, não como alguém que foi embora. Mas como alguém que existiu com você. Aqui.
E então ele a beijou. Um beijo demorado, sem pressa, sem promessa. Um beijo que dizia tudo o que as palavras não podiam.
Na manhã seguinte, ele partiu.
E Helena ficou.
Mas havia algo novo nela. Algo forte. Não era mais uma espera desesperada ou um vazio. Era uma certeza. A de que, por mais que o mundo mudasse, existiam coisas que nasciam para permanecer. E o amor, quando verdadeiro, não se mede pela presença física - mas pela capacidade de atravessar distâncias.
Mesmo quando a chuva volta.
E ela voltou.
Os dias começaram a escorrer lentos, como tinta em aquarela. Helena tentava manter a rotina, mas agora tudo tinha o silêncio dele. As manhãs eram silenciosas, mas não vazias. Ela desenhava com mais intensidade, como se cada linha fosse um fio que a ligava a Gabriel.
Começou a ir ao farol sozinha. Sentava no alto com o caderno aberto e a partitura dobrada no bolso. Aprendeu a tocar, aos poucos. Com os dedos ainda trêmulos, com o ouvido mais sensível. A melodia dele passou a ser parte dela - como um idioma secreto entre duas almas.
Nas noites de vento, ouvia áudios antigos. Ria de coisas ditas fora de contexto. Chorava em silêncio. Escrevia cartas que não enviava.
"Hoje, o mar estava mais azul do que de costume. Você teria gostado."
"Sonhei que você esquecia meu nome. Acordei com medo, mas ainda lembrava do seu."
"Espero que esteja tudo bem. Que alguém aí onde você está te abrace por mim."
Meses passaram.
Uma tarde, chovendo fino, ela recebeu uma carta. Envelope bege, papel texturizado. Reconheceu a letra antes de abrir.
Helena,
Me desculpa por não ter escrito antes. As coisas ficaram difíceis, mas agora estão um pouco mais leves. Ainda penso em você todo dia - no seu jeito de olhar pro mundo, nas suas mãos que desenham melhor que palavras.
Meu pai partiu. Mas ele foi em paz. Teve música no último suspiro. E eu tive você no pensamento.
Volto em breve. Se ainda houver espaço pra mim.
Gabriel.
Ela encostou a carta no peito, e, pela primeira vez em muito tempo, deixou-se chorar sem medo. Chorou com alívio, com saudade, com gratidão. Chorou por tudo que não podia controlar, e por tudo que ainda podia sentir.
Depois vestiu o casaco, pegou o guarda-chuva e correu até o farol.
No topo, com o mar abaixo e a cidade atrás, tirou a partitura do bolso. Os dedos dançaram pelas cordas. A melodia da chuva soou alta, como se o vento também a esperasse.
Ela tocou até o último acorde.
E quando o som se apagou, sentiu uma presença atrás de si.
Virou-se devagar.
E lá estava ele.
Encharcado, com os olhos úmidos não só de chuva. O violão nas costas. As mãos nos bolsos. E aquele mesmo sorriso de antes - o que vinha primeiro nos olhos, depois na boca.
Nenhum dos dois disse nada.
Não precisava.
Eles apenas se olharam, e, naquele olhar, disseram tudo: "Eu esperei. Eu voltei. E eu fiquei."