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A semana passou como um sussurro. Dias costurados em chuva miúda, vento do mar e silêncios confortáveis. Desde a conversa na clareira, Helena e Gabriel passaram a se encontrar quase todos os dias, como se o acaso tivesse decidido repetir a mesma trilha de coincidências até que ambos entendessem o recado: não estavam sozinhos em suas dores.
Gabriel voltava à pedra com o violão. Tocava pouco, mas sempre algo diferente. Helena, por sua vez, começou a desenhá-lo - primeiro de longe, depois com mais detalhes. Havia algo nos gestos dele que a cativava: a forma como franzia a testa ao afinar as cordas, como fechava os olhos por um segundo antes de começar a tocar. Cada nota que ele extraía das cordas parecia uma lembrança, uma saudade vestida em melodia.
Ela nunca perguntava o nome das músicas. E ele nunca explicava.
Mas naquela quarta-feira, algo mudou.
Helena chegou à pedra mais cedo. Trazia pão de queijo, chá em uma garrafa térmica e um cobertor velho de lã. O céu estava limpo, pela primeira vez em dias. Sentou-se à beira da pedra e, enquanto esperava, abriu seu caderno de esboços.
Desenhou o mar primeiro, depois os contornos da pedra. Então, com a ponta do lápis, começou a traçar o perfil dele. Já não se sentia invasiva ao fazer isso. Era como capturar a presença dele de um modo seguro, sem forçar palavras ou gestos.
Gabriel chegou pouco depois das nove, usando a mesma jaqueta jeans de sempre, agora mais desbotada, e com o violão às costas. Quando viu o cobertor e o chá, ergueu as sobrancelhas, surpreso.
- Estamos sofisticando o ritual?
- Resolvi oficializar - disse ela, sorrindo. - É o nosso não-encontro. Café da manhã com vista para o mundo.
Ele se sentou ao lado dela, ajeitando o violão no colo. Pegou um pão de queijo e mordeu sem cerimônia.
- Sabe... - começou, entre uma mordida e outra - eu não esperava isso.
- O quê?
- Essa rotina. Essa paz.
Helena não respondeu. Só passou a ele a caneca de chá, que ele aceitou com um leve toque nos dedos dela.
- Ontem - continuou ele - sonhei com uma música que eu e meu irmão compusemos. A gente nunca chegou a gravar. Mas era... nossa.
- Você ainda lembra?
Gabriel olhou o mar.
- Parte dela. O suficiente pra saber que não quero esquecer.
- Pode tocar?
Ele hesitou, depois assentiu lentamente. Afinou as cordas com gestos lentos, respeitosos. Quando começou a dedilhar, Helena sentiu algo subir pelo peito, uma emoção sem nome que parecia vir de um lugar ancestral.
A melodia era simples, mas cheia de alma. Tinha algo de lamento, mas também de ternura. Ela fechou os olhos por um momento. Imaginou dois meninos em uma garagem, rindo, criando mundos com acordes.
Quando a última nota soou, o silêncio que se seguiu foi quase sagrado.
- É linda - disse ela.
- Era dele. Eu só... acompanhava.
- Você sempre diz isso. Que só acompanhava. Mas ninguém acompanha algo tão bonito sem ser parte.
Gabriel suspirou, encarando o horizonte.
- Ele era luz, Helena. Eu era sombra.
Ela pegou o caderno e o abriu em uma página em branco. Desenhou dois círculos - um preenchido de preto, o outro branco - e entrelaçou os dois com traços de lápis, como se um orbitasse o outro.
- Luz e sombra precisam uma da outra - disse. - A luz sem sombra é cega. A sombra sem luz é puro vazio.
Ele a olhou com mais atenção, como se visse nela algo novo.
- Você fala como quem sente isso há muito tempo.
Helena fechou o caderno devagar.
- Sinto.
Por um instante, Gabriel estendeu a mão, como se fosse tocar o rosto dela. Mas recuou no último segundo.
- Você tem medo de ser feliz?
A pergunta a atingiu em cheio. Não esperava.
- Tenho. Não porque não queira. Mas porque não sei mais como é.
- Eu também - disse ele, quase num sussurro.
O silêncio se instalou entre eles. Mas dessa vez, foi denso, carregado de coisas que não sabiam nomear. E, como todo silêncio intenso, foi quebrado por algo mundano.
- Quer conhecer meu lugar? - ele perguntou.
- Seu lugar?
- Onde eu fico quando não estou aqui. É... meio bagunçado.
Ela assentiu. Queria saber mais. Precisava saber mais.
Desceram juntos a encosta e seguiram por uma trilha pouco usada, entre arbustos e cercas abandonadas. O caminho levava a um antigo armazém de pesca, de madeira envelhecida, escondido atrás de dunas. Quando Helena entrou, sentiu o cheiro de sal, madeira e papel. Havia estantes com livros velhos, um colchão no chão com mantas coloridas, partituras espalhadas, uma vitrola antiga e uma parede inteira coberta de rabiscos, letras de músicas, frases soltas.
- Eu vivo aqui - disse ele, sem vergonha. - Fico até juntar coragem pra seguir viagem.
Helena andou devagar, absorvendo tudo. Pegou uma folha rabiscada com uma letra:
"Os olhos dela eram chuva / E eu aprendi a me afogar sorrindo."
- Você escreveu isso?
- Talvez - disse ele, encolhendo os ombros. - Talvez tenha sonhado.
Ela leu de novo, em silêncio.
- Parece comigo.
Gabriel riu, nervoso.
- Eu tava escrevendo sobre mim.
- Mesmo assim - disse ela - ainda parece comigo.
Sentou-se no colchão, olhando ao redor.
- Nunca mostrei esse lugar pra ninguém - ele confessou.
- Por quê?
- Medo.
- De quê?
- De alguém querer ficar.
O que veio depois foi silêncio. Mas um silêncio diferente. Carregado de desejo, de proximidade, de algo que ameaçava nascer.
Helena deitou-se por um instante, sentindo o coração bater mais rápido. Gabriel sentou ao lado, o violão de novo nas mãos.
Dessa vez, tocou algo leve. Uma melodia feliz, quase infantil. Ela sorriu.
- Você sorriu - disse ele, espantado.
- Eu sorrio às vezes.
- Não assim.
Ela não disse nada. Só fechou os olhos e deixou a música entrar como um vento morno depois de um inverno longo demais.
Quando o som cessou, ela abriu os olhos e o encarou.
- Gabriel...
- Hm?
- Se eu quiser ficar, você me expulsaria?
Ele hesitou.
- Se for por hoje, não.
- E amanhã?
- Amanhã... a gente toca outra música.
A tarde caiu lenta. Eles não se beijaram. Não ainda. Mas os corpos se aproximaram até quase se tocar. E naquele quase, havia mais verdade do que em qualquer jura de amor.
Quando Helena voltou para casa, o mundo parecia diferente. As paredes estavam do mesmo jeito. A rua, ainda úmida. Mas dentro dela, havia um espaço novo. Um som novo. Uma esperança em forma de melodia.
Naquela noite, sonhou com uma canção sem letra. Mas sabia que era deles.