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POV ISADORA
A caixa branca sobre a pia parecia uma bomba-relógio.
A chuva batia nas telhas com uma cadência hipnótica e cruel, como se marcasse os segundos até o fim de tudo. O banheiro dos fundos era frio, pequeno e mal iluminado, mas oferecia a única privacidade que Isadora encontrara desde o anúncio devastador na noite anterior.
Estava descalça, o cabelo preso às pressas e as mãos úmidas de suor, embora sentisse frio. O teste ainda estava virado, o visor contra a parede, como se ela quisesse fingir que não dependia daquilo. Que não fosse real.
Se for negativo, eu respiro. Finjo que ontem nunca aconteceu. Esqueço que acreditei em alguém como Enzo.
O coração martelava alto como se quisesse sair pela garganta.
Se for positivo... eu...
Ela não conseguiu terminar o pensamento. Só sabia que não estava pronta.
O tempo pareceu parar quando estendeu a mão e virou o teste devagar, os olhos se ajustando ao visor digital ainda embaçado pela umidade do ambiente.
Duas linhas.
Nítidas. Cruéis. Inquestionáveis.
Isadora deixou o teste escorregar da mão.
Sentou no chão de azulejos gelados, as costas encostadas na parede, o peito colapsando num silêncio aterrador.
Não chorou. Nem um soluço.
Estava em choque. Os olhos arregalados encaravam o vazio como se quisessem sair dali, escapar do próprio corpo.
Estou grávida.
A ideia ecoou como um trovão abafado. Ela repetiu mentalmente, mas a realidade não parecia se encaixar.
"Estou grávida."
Do homem que a ignorou.
Do homem que mentiu - e agora beijava outra, na frente de todos.
As mãos dela buscaram o celular com movimentos quase automáticos. Abriu o chat com Enzo. A última mensagem dele ainda estava ali, seca, simples, antes do desaparecimento: "Descanse bem."
Ela digitou:
> "Preciso falar com você. É urgente."
Esperou. O ícone azul apareceu. Visualizado.
E então, sumiu. Bloqueado.
Tentou ligar. Uma. Duas vezes. A chamada não completava. Voz de operadora. Silêncio. Rejeição.
O celular escorregou das mãos e bateu no chão com um som seco, um estalo que parecia pequeno demais para o tamanho da dor que reverberava dentro dela.
Ela ficou ali, por longos minutos. O silêncio preenchido apenas pelo barulho da chuva e da respiração curta.
***
Vestiu qualquer roupa. Um casaco velho, chinelos de dedo. Não penteou o cabelo. Mal enxergava o caminho à frente.
Saiu pela lateral da casa sem avisar ninguém. Os pingos de chuva grudavam nos cílios e escorriam pelo pescoço, gelados, como se quisessem acordá-la daquele pesadelo.
Caminhou até uma farmácia de bairro, uma daquelas discretas que quase ninguém notava. As prateleiras cheiravam a desinfetante e mofo. O chão rangia. A atendente nem levantou o olhar.
Isadora estendeu o dinheiro com dedos trêmulos e comprou outro teste.
Sabia que o primeiro já bastava. Mas precisava da confirmação. Queria algo que dissesse: foi um erro.
Saiu com a sacola em mãos e se encolheu sob a marquise da frente, tentando se proteger da chuva fina. Respirava com dificuldade. A cabeça girava.
Foi então que o corpo dela colidiu com outro.
- Me desculpe - murmurou automaticamente, abaixando o olhar.
Uma mão grande segurou seu braço, evitando que ela tropeçasse.
O toque não foi agressivo. Mas foi firme.
Ela ergueu os olhos e encontrou um homem que parecia ter saído de um pesadelo elegante.
Terno escuro impecável. Cabelos castanhos penteados com precisão. Mas o que mais a atingiu foram os olhos - cinza-escuros, quase sem brilho, como aço molhado. Olhos que não pareciam apenas olhar. Pareciam avaliar. Pesar. Sentenciar.
Isadora se encolheu um pouco, o instinto gritando sem motivo claro.
- Você deveria tomar mais cuidado. - A voz dele era baixa, grave, com um tom de aviso, não de gentileza.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele a soltou e entrou na farmácia como se o esbarrão nunca tivesse acontecido.
Isadora ficou ali, parada, a respiração presa.
Ela não sabia quem ele era. Mas o calafrio que subiu pela espinha deixou claro: aquele homem não era alguém comum.
***
Clara estava na cozinha quando Isadora voltou.
- Meu Deus, menina. Você tá encharcada! Onde você foi desse jeito?
- Eu... só precisava ver uma coisa - respondeu, desviando o olhar.
Subiu direto para o quarto, com passos que vacilavam. Fechou a porta, sentou na cama e guardou o segundo teste na gaveta do criado-mudo. Ainda não queria vê-lo. Ainda não conseguia aceitar.
Deitou, encolhida, os olhos fixos no teto. O ventilador fazia um barulho irregular. A chuva agora era apenas um som distante.
A frase de Enzo ecoou na mente:
"Ninguém nunca vai machucar você de novo."
Mentira.
O enjoo veio outra vez. Correu até o banheiro, mas dessa vez, vomitou apenas ar - e lágrimas.
***
No fim da tarde, vestida com uma roupa seca, o rosto lavado, o cabelo preso com mais firmeza do que o coração, Isadora desceu as escadas.
Encontrou Clara perto da lavanderia.
- Preciso ir até o escritório do meu pai. Agora.
Clara a olhou, surpresa. Quase preocupada.
- Aconteceu alguma coisa?
Isadora respirou fundo, firme.
- Só preciso saber se ele ainda é capaz de fazer alguma coisa por mim.
Não esperou resposta. Caminhou até o corredor que daria para o escritório do pai, cada passo mais firme que o anterior.
Ela ainda não sabia como Eduardo reagiria. Mas sabia que aquilo que carregava dentro de si - aquela vida nova e frágil - ia mudar tudo.
Ou destruir o pouco que ainda restava.