Capítulo 3 Catarina, você me deve essa.

Assim que desliguei o telefone, ele voltou a tocar.

Meu primeiro impulso foi ignorar. Eu já tinha feito o necessário, falado com Don Antonio, resolvido a questão do voo - ou, ao menos, iniciado a resolução. Mas quando o visor acendeu com o nome Kelly Preston, não pude evitar sorrir. Atendi com um simples "alô", e do outro lado, a voz de Kelly soou como um sopro de normalidade numa existência cada vez mais marcada por sangue e estratégia.

- E aí, como foi? - ela perguntou, ansiosa.

- Obrigada pelo encaixe, Kelly. A Dra. Miranda Carter é tão competente quanto você disse. Fez todos os exames. Está tudo bem com o bebê. - Respondi enquanto voltava a me sentar.

Houve um suspiro do outro lado da linha.

- Eu falei pra você não se preocupar. Às vezes o bebê só está quieto. Eles se adaptam à rotina da mãe e ficam calmos. É comum.

Cruzei uma perna sobre a outra na poltrona estofada do lounge privado. Minhas mãos repousavam sobre a barriga levemente arredondada, o movimento quase instintivo agora.

- Eu sei... mas ele estava calmo demais. Silencioso, até. Parecia que havia acontecido alguma coisa. Enfim... Obrigada por tudo, ela até conseguiu ver o sexo do bebê.

Kelly hesitou, depois retomou com leveza:

- Qual o sexo? Não. Melhor me contar quando almoçarmos juntas hoje, o que acha?

- Não vai dar, Kelly. Eu estou voltando pra Itália.

Houve um silêncio do outro lado da linha. Não surpresa, mas frustração. Depois:

- Como assim, Catarina? Vai voltar sem nem me avisar?

- Pois é. Mas surgiu uma coisa. Uma coisa urgente. Preciso voltar logo. São oito horas de voo... e mais o fuso.

- Certo, mas você viu como Nova York está? Está debaixo d'água. Tempestade fechando aeroporto, previsão de neve em pleno outono... eu duvido que alguma aeronave levante voo.

- Por enquanto, não tem previsão. Mas é questão de tempo. E estou vendo outras rotas, outros aeroportos.

- E enquanto isso... a gente pode almoçar, não pode? - insistiu ela, e eu podia ouvir o desafio na voz. - Afinal, você não pode ficar muito tempo sem comer, parada em um aeroporto esperando alguma resposta. Esses ambientes de aeroporto são horríveis e estressantes, ainda mais para uma grávida.

Olhei ao redor do lounge: mármore italiano no piso, madeira escura nas paredes, obras de arte discretas, garçons silenciosos em ternos sob medida. Sorri com ironia.

- Difícil eu ficar estressada aqui, Kelly.

- Catarina, você me deve essa. Eu consegui um encaixe com a obstetra mais prestigiada de Nova York. Acha que é fácil?

- Sério que vai jogar o encaixe? - perguntei, rindo.

- Claro! Sei que você odeia ficar devendo favores. É o único jeito de conseguir um sim seu.

Ela estava certa. Detestava dívidas. Cada uma delas era um risco, uma vulnerabilidade. Mesmo as pequenas.

- Tá bem - cedi. - Onde?

- Qual aeroporto você está?

- Teterboro.

- Perfeito! - ela quase gritou. - Estou no Joseph M. Sanzari Children's Hospital.

- Achei que você ainda estivesse trabalhando no New York-Presbyterian.

- Longa história. Melhor contada num almoço entre amigas.

Suspirei, vencida.

- Você não vai desistir, né?

- Você me conhece, Cat. Nunca.

- Vinte minutos. Te encontro aí.

- Tem um restaurante maravilhoso aqui. Até daqui a pouco.

Desliguei.

Lorenzo me observava de braços cruzados, encostado na parede como um cão de guarda atento.

- Está tudo bem? - ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.

- Vamos para o Joseph M. Sanzari Children's Hospital - respondi. - Visitar uma amiga.

Ele assentiu e, com um gesto sutil, girou o pulso no ar. Como se aquele pequeno movimento fosse uma linguagem própria, uma ordem silenciosa, os homens de terno preto e gravata vermelha se colocaram em movimento. Um por um, saíram de suas posições, como peças num tabuleiro, prontos para a próxima jogada. Todos me seguiram enquanto caminhávamos para fora do lounge, os saltos dos meus sapatos soando firmes contra o mármore.

As pessoas no saguão desviaram os olhares e depois os voltaram para nós com aquela mistura de medo e fascínio que sempre me acompanhava. Eu estava acostumada. Não era a primeira vez que eu chamava a atenção como se estivesse envolta em pólvora.

Foi então que notei. Um homem de terno cinza, sentado num dos sofás mais afastados, fingia ler um jornal. Mas seus olhos, escondidos por óculos escuros, nos seguiam. E, discretamente, ele levou a mão ao bolso interno do paletó, retirou um telefone e o levou ao ouvido.

- Mudança de planos - eu li em seus lábios, antes de se levantar, deixando o jornal sobre a mesa de centro.

Havia algo naquela interação que me fez franzir a testa.

***

O Bentley Bentayga preto deslizou suavemente pelas ruas encharcadas. As gotas de chuva corriam pelas janelas, distorcendo as luzes da cidade como se Nova York chorasse junto com o céu.

- Lorenzo - murmurei, quebrando o silêncio. - Aquele homem lounge... terno cinza, óculos escuros que lia o jornal. Veja se consegue interceptar a chamada que ele fez antes de sairmos. Não gostei do que li nos lábios dele.

- Está feito - ele respondeu com a calma que me fazia confiar nele até nos piores dias.

Fechei os olhos por alguns segundos, sentindo o peso do bebê contra meu ventre. Havia uma vida que se alimentava da minha, que pulsava silenciosamente. Ele não conhecia ainda o mundo ao qual pertencia, mas eu conhecia. E por isso faria o que fosse preciso para protegê-lo.

O hospital era menor do que eu imaginava. Estranhamente acolhedor. A ala pediátrica tinha tons suaves de verde e azul, quadros infantis nas paredes, e o cheiro estéril comum aos hospitais era mascarado por algo adocicado. Kelly me esperava na entrada do restaurante interno, elegante em um jaleco branco por cima de um vestido vinho. O cabelo loiro preso num coque despreocupado, e o sorriso, sempre fácil, abriu-se assim que me viu.

- Você veio mesmo!

- Eu pago minhas dívidas, lembra?

Ela me puxou para um abraço leve, cuidadosa com minha barriga. Depois olhou para Lorenzo e para os outros homens atrás de mim.

- Acho que você não sabe almoçar sozinha.

- Segurança. Necessária, por conta das empresas que represento.

Entramos no restaurante, e a hostess nos levou até uma mesa nos fundos, um pouco mais afastada. Kelly logo pediu dois sucos naturais, sem nem me consultar, como se soubesse exatamente o que eu precisava. E ela sabia.

- E então? Vai me contar o sexo?

Inclinei a cabeça, um leve sorriso no rosto.

- Um menino.

Kelly levou as mãos à boca, emocionada.

- Ai, meu Deus. Um menino! Vai ser lindo, forte e mandão, igual à mãe.

- Espero que mais equilibrado - murmurei.

Ela deu risada.

- E o nome?

- Ainda não sei.

Mentira. Eu tinha um mente, mas ainda não tinha coragem de dizer em voz alta. Não sem sentir o gosto amargo do passado na garganta.

- E você? - mudei de assunto. - Achei que ia ficar no New York-Presbyterian pra sempre.

Kelly abaixou os olhos. Quando os ergueu de novo, havia algo sombrio ali.

- Aconteceu uma coisa. Uma paciente... não consegui salvar. Culpa médica. Ou, pelo menos, foi o que alegaram. Me transferiram discretamente.

- Foi injusto?

- Completamente. Mas esse hospital me acolheu. E eu adoro trabalhar com crianças. - Ela tocou minha mão. - Algumas perdas deixam marcas, não importa o quão forte a gente ache que é.

Assenti. Sabia exatamente o que ela queria dizer.

O garçom chegou com os pratos. Saladas bem servidas, leves, coloridas. Eu fingia apetite, espetando as folhas verdes com o garfo como quem procura respostas entre os vegetais. Kelly, por outro lado, comia como se estivesse há dias sem tocar em comida. Isso era típico dela.

- Eu tô feliz de te ver, sabia? - disse Kelly, mastigando com gosto. - A gente nunca conversou de verdade depois que você voltou da Itália. Você simplesmente... sumiu. Saiu do hospital. Terminou com o Adam. E puff. Evaporou.

Sorri de leve, levando o copo de suco até os lábios. Estava gelado, cítrico, doce demais.

- Pois é... - murmurei. - Tudo ficou muito corrido. Eu tive que assumir as empresas da família. Você sabe, depois da morte do meu pai adotivo.

Kelly assentiu com a cabeça, como quem entende, mas no fundo eu sabia que ela não entendia. Nem podia.

- Foi isso que você falou ontem, né? No telefone. Depois de meses de completo silêncio. Igual ao Adam, aliás. Depois que voltou da Itália, ele sumiu também. Não atendeu minhas ligações. Nunca falou o que aconteceu.

Ela largou o garfo por um instante.

- Sabe a última vez que a gente conversou? Eu e Adam? A gente tinha encontrado o seu diário. Aquilo... - ela riu nervosa. - Aquilo foi um choque. Tinha coisas sobre máfia. Família Mancuso, ter te adotado, mas ser da máfia. Sobre o seu meio-irmão, o Dante.

Endireitei a postura. Meu pulso latejou por debaixo da manga longa do casaco. Precisei mentir. Precisava cortar o sangue do assunto antes que transbordasse.

- Kelly... aquilo eram só histórias. Sabe, eu escrevia para manter a mente ocupada. Ficção. Coisa de adolescente entediada, presa num mundo de luxo.

Ela me olhou com uma expressão que misturava descrença e curiosidade.

- Tudo bem - disse, hesitante. - Mas preciso confessar: aquelas partes em que você descreve os encontros com o Dante... uau. Eram bem intensas. Confesso que já li umas histórias assim, sabe? Fanfic de irmão e irmã. Aquela tensão de amor proibido, aquela coisa de tabu, fetiche...

- E? - perguntei, já esperando o golpe.

- E que... não parecia só fantasia. Parecia real. Aquilo tinha peso. Paixão. Dor. Não era como aquelas histórias genéricas. Você sentia aquilo.

Sorri com os lábios, mas não com os olhos.

- Fruto da mente criativa de uma jovem isolada numa casa cheia de regras e mordomias. Por isso pareceu real. Mas pode acreditar: nada daquilo aconteceu.

Kelly me observou por um tempo, como quem pondera se deve ou não acreditar.

- Tá. Vou fingir que acredito. Mas me responde uma coisa... - ela se inclinou sobre a mesa, os olhos brilhando. - O irmão era tão gostoso quanto você descreveu?

Fechei os olhos por um breve instante. Quando os abri, meu olhar já era de gelo.

- Ele morreu.

Kelly arregalou os olhos, genuinamente surpresa.

- Ai meu Deus. Catarina... me desculpa. Eu não fazia ideia...

- Tudo bem. - Tomei mais um gole do suco. - Faz tempo.

Mentira. Ela pegou o guardanapo e secou os cantos da boca. O silêncio que se seguiu foi quase confortável.

- Já pensou em transformar aquilo que você escreveu em um livro? - perguntou ela, voltando ao tom leve de antes.

- Publicar? Não. - Sorri. - Definitivamente não.

- Olha, se essa sua vida de herdeira não der certo, talvez tenha futuro como escritora. Aquilo ali era quente. E envolvente.

- Eu vou pensar no assunto.

Então ficamos em silêncio, e eu comecei a olhar ao redor. O restaurante no hospital era elegante. Limpo, iluminado, com vista para o jardim interno. Lá fora, a tempestade que assolava Nova York tinha dado uma trégua. Lá dentro, o mundo parecia contido, calmo. Falso.

- Posso te perguntar uma coisa? - disse Kelly.

Suspirei.

- Quem é o pai do bebê?

Dei uma risada seca.

- Achei que você não fosse perguntar.

- É o Adam, né? Foi por isso que ele ficou todo estranho? Eu super entendo se ele não estava preparado pra ser pai, tudo o que ele leu deve ter confundido a cabeça dele...

- Kelly... que diferença faz? No fim das contas, o filho é da mãe.

Ela me olhou, como se quisesse argumentar. Mas não disse nada. De repente, o telefone de Lorenzo vibrou. Ele se inclinou, sussurrou algo no meu ouvido:

- Rastreamos o homem do aeroporto. E a chamada. Ele disse "Mudança de planos. Ela vai sair pela lateral. Sigam." - Ele me encarou. - Acho que ele estava falando de você.

Endireitei a postura. Assenti com a cabeça quase imperceptivelmente. Quando Lorenzo recuou, Kelly franziu a testa.

- Algum problema?

- Nada com que você precise se preocupar - Sorri, tentando acalmar o ritmo do coração. - Só negócios.

Ela me estudou por um instante. E então sorriu.

- Você mudou. Desde que voltou da Itália. Tá mais... fria. Mais... forte, talvez.

- A gente muda, Kelly. A vida exige.

Ela desviou o olhar para o prato. A salada já havia desaparecido, enquanto a minha permanecia quase intacta.

- Você nunca me contou por que terminou com o Adam.

- Porque não tinha o que contar. - Apertei o garfo entre os dedos. - Nós éramos dois mundos tentando se encaixar. Eu precisava voltar pra minha vida. E ele... ele teria se encaixr em uma que nunca foi dele.

Kelly balançou a cabeça.

- Ele te amava. Isso, sim, foi real.

Olhei para ela e, por um segundo, deixei a máscara escorregar.

- Eu também o amava.

Porém, amava mais ao Dante. E o amor, no nosso mundo, é um luxo que quase sempre custa caro demais.

O celular de Kelly vibrou e ela pegou, conferindo a tela.

- Tenho que voltar pro andar de internação. Um dos meus pequenos pacientes entrou em crise. Mas foi bom te ver, Cat.

Levantei-me. Ela me abraçou com força, e por um instante, desejei que tudo fosse mais simples. Que meu mundo fosse esse: hospitais, amigas, almoços.

Mas não era.

- Se cuida. E assim que seu bebê lindo nascer, me manda foto. - Ela sorriu, saindo às pressas pelo corredor.

Lorenzo se aproximou novamente.

- Ele saiu do radar por alguns minutos, mas reapareceu em Fort Lee. Já temos dois homens seguindo.

- E a chamada?

- Direto para um número criptografado da 'Ndrangheta. Aparentemente, eles já sabem que você está nos Estados Unidos.

Fechei os olhos por um instante. Então eles sabia. E provavelmente já sabiam que eu estava grávida também. Isso mudava tudo.

Abri os olhos e comecei a andar. Os homens da segurança seguiram nossos passos. Lorenzo me acompanhava em silêncio.

- Preciso ir até a casa segura. Agora.

- Sim, senhora.

A tempestade podia ter cessado do lado de fora, mas dentro de mim, ela apenas começava.

Porque se eles sabiam... Era questão de tempo até nossos caminhos se cruzarem em Nova York.

                         

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