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O mês de julho em Vale Serena chegava devagar, como tudo naquela cidade. As folhas secas dançavam pelas calçadas, os ventos sopravam mais frios, e o céu, mesmo limpo, parecia guardar segredos no azul mais pálido. As aulas continuavam em ritmo normal, mas o que realmente movimentava os corredores da escola era um único assunto: a tradicional Festa de Inverno.
Ana Clara nunca se interessara muito. Ela evitava multidões, luzes piscando, músicas altas e danças forçadas. Para ela, essas festas eram como cenas de um filme que ela assistia de longe, sempre do lado de fora da tela. Mas aquele ano seria diferente. Não porque ela quisesse. Mas porque agora havia Miguel.
- Você vai, né? - ele perguntou numa manhã, enquanto organizavam juntos os últimos detalhes do trabalho de artes. Estavam sentados lado a lado no pátio, e o sol atravessava as folhas da árvore sobre eles, criando sombras móveis no caderno aberto.
Ela franziu os lábios.
- Festa não é muito a minha cara.
- Mas a sua cara muda quando tá comigo.
Ela olhou de lado, e os olhos dele estavam fixos nos dela, calmos, mas intensos. Miguel tinha essa habilidade estranha de dizer coisas simples como se fossem confissões profundas. E sempre deixava o coração dela desorganizado.
- Talvez eu vá - respondeu, com um sorriso de canto.
- E dançaria comigo? - ele continuou, fingindo naturalidade, mas com um brilho travesso no olhar.
- Depende. Vai ser aquela dança tradicional da escola? Porque se for, preciso de um mês de ensaio só pra não pisar no seu pé.
- Eu corro o risco.
Os dois riram, e o silêncio que se seguiu foi confortável, como se as palavras estivessem se abraçando no ar.
No dia seguinte, Ana Clara encontrou um bilhete dobrado dentro do seu estojo. A letra era familiar: firme, inclinada, com traços de alguém que não tinha pressa.
"Se você for à festa, me encontra perto da fogueira. Estarei usando aquele moletom azul que você disse que combinava com meus olhos (você achou que eu não percebi, mas percebi). Miguel."
Ela relia o bilhete durante a aula de Geografia como se fosse um poema secreto. Parte dela queria ignorar. Parte maior queria muito mais.
Na sexta-feira da festa, a cidade parecia ter sido retocada por algum artista invisível. As luzes nas ruas tremeluziam, as casas exalavam cheiro de canela, e a escola estava irreconhecível. O pátio havia se transformado num arraial delicado, com bandeirinhas de papel, barracas com comidas típicas, fogueira artificial no centro e uma pequena pista de dança improvisada perto do palco.
Ana Clara chegou com um vestido azul-claro, de tecido leve, que combinava com a fita simples que prendia seus cabelos em um meio coque. Não se produziu demais, mas parecia ter saído de uma história de amor antiga. Caminhou devagar pelos arredores, sentindo o frio nas mãos, o coração inquieto no peito, e os olhos procurando... até encontrá-lo.
Miguel estava de costas, ao lado da fogueira. O moletom azul realmente destacava seus olhos, que brilharam quando ele a viu se aproximando. Ele não disse nada logo de cara - apenas sorriu. E aquele sorriso era suficiente para acalmar e bagunçar tudo ao mesmo tempo.
- Você veio.
- Eu prometi, não prometi?
- Prometeu.
Houve um instante de silêncio em que o tempo pareceu parar. A música tocava ao fundo, as pessoas dançavam, riam, e eles dois estavam ali, como se fossem outra história dentro da mesma cena.
- Quer... dançar? - ele perguntou, estendendo a mão, com um pouco menos de confiança do que o normal.
Ana Clara hesitou por dois segundos. Depois pegou a mão dele.
- Só se me prometer que não vai rir se eu errar.
- Prometo não rir. Mas não prometo não me apaixonar mais.
Ela riu, sem acreditar. Mas ao mesmo tempo, acreditando em tudo.
A dança não foi perfeita. Ela realmente pisou no pé dele uma vez, e ele tropeçou tentando girá-la. Mas nada disso importou. Eles riam juntos, abraçados pelo som da música, pela timidez que se desfazia aos poucos, e pelos olhares que trocavam como se estivessem em um universo só deles.
Quando a música parou, continuaram ali, de mãos dadas. Ele não soltou. E ela não queria que ele soltasse.
- Tem uma barraca de chocolate quente ali - ele disse. - Vamos?
- Só se vier com conversa boa e mãos quentes.
- Tenho as duas.
Sentaram-se em uma mesa de madeira ao lado da barraca. As luzes ao redor tremeluziam, e havia o som da multidão, mas tudo parecia embaçado para ela - como se os sentidos tivessem focado apenas nele.
- Sabe, Ana... - ele começou, mexendo no copo. - Desde que cheguei aqui, tudo parecia meio cinza. A cidade, a escola... até os dias. Mas aí teve você. E você tem cor.
Ela ficou em silêncio. Estava com medo de se mover e quebrar aquele instante. Ele continuou:
- Você é diferente. Não do tipo "estranha". Do tipo que faz a gente querer ser mais calmo. Que faz a gente pensar antes de falar. Que faz a gente escrever coisa brega no caderno e depois esconder pra ninguém ver.
- Você escreve coisas bregas?
- Você não tem ideia.
Ela riu, e o riso saiu mais solto do que o normal. O vento bateu em seus cabelos, e Miguel os ajeitou com cuidado, como se fosse algo natural.
- Ana Clara... - ele disse, mais baixo agora. - Eu tô tentando não me precipitar, mas você... você faz tudo parecer urgente.
Ela mordeu o lábio, olhando para o fundo da caneca.
- Eu nunca tive ninguém assim. Nunca... me deixei ser vista, de verdade.
- Eu vejo você. Desde o primeiro dia. Lá na sala, no lugar da janela.
Os olhos dela se encheram de um brilho úmido, mas não triste. Era emoção pura. Quase medo.
- E se isso for só coisa de escola? Só mais uma dessas histórias que começam e somem?
Ele se aproximou um pouco mais.
- Então deixa começar. Mesmo que dure um capítulo só. Mas deixa acontecer.
Ela respirou fundo. O coração parecia martelar nos ouvidos. E então, num impulso silencioso, ela se aproximou. Os lábios se tocaram devagar, como se confirmassem a verdade do que os olhos diziam há semanas. Não foi um beijo apressado, nem um beijo tímido demais. Foi exato. Foi deles.
E naquele instante, com o som da festa ao fundo, com o cheiro de chocolate no ar e a brisa fria da noite, Ana Clara soube. Aquilo não era mais só um flerte. Era o início de algo que ela guardaria, mesmo que tudo acabasse no fim do ano.
Porque ele a olhava como se ela fosse um segredo bom. E ela o sentia como se ele fosse um poema escrito na palma da sua mão.