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As manhãs na escola pareciam mais claras desde aquela sexta-feira. Havia algo diferente no ar - não apenas para Ana Clara, mas também para Miguel, que agora chegava sempre dois minutos antes do sinal, só para vê-la entrando no corredor. Ele se encostava no batente da porta da sala com aquele sorriso torto que fazia o coração dela tropeçar.
Era engraçado. Eles não haviam combinado nada. Não haviam colocado nome em coisa alguma. Mas desde a Festa de Inverno, tudo mudara entre eles. Um toque de mão que antes era por acaso agora era proposital. Um olhar demorado não era mais tímido, era intencional. E as palavras... ah, as palavras. Vinham mais doces, mais leves, como se os dois falassem em um idioma que só eles entendiam.
Ana Clara agora escrevia no caderno não só as matérias, mas também sensações. Ela não era boa em dizer as coisas em voz alta, mas no papel tudo se tornava mais fácil. Dobrava as páginas e guardava no fundo da mochila, como se temesse que alguém pudesse descobrir seus segredos.
"Quando ele me olha, é como se o mundo diminuísse. Não sei explicar. Mas tem um silêncio que acontece entre a gente, mesmo no meio do barulho."
Ela escrevera isso na segunda-feira, no meio da aula de Física. E naquela mesma aula, Miguel havia deixado cair discretamente um papel dobrado no estojo dela.
"Tem um silêncio bom quando estou com você. Tipo paz com música de fundo."
Ela sorriu sozinha, mordeu a tampa da caneta, e sentiu o rosto corar. Olhou discretamente para ele, que estava três carteiras à frente, de perfil. O braço encostado na mesa, a cabeça levemente inclinada enquanto desenhava no caderno. Ele fazia isso sempre - rabiscava formas, rostos, pensamentos. Era como se a mente dele transbordasse e só o grafite fosse capaz de acompanhar.
No intervalo, foram juntos até a cantina. Não havia toque, nem beijo escondido, nem declarações abertas. Só uma cumplicidade que deixava tudo evidente. Sentaram sob a mesma árvore onde tinham feito o trabalho de artes, agora sem livros, sem obrigações, só eles.
- Tá tudo bem? - ele perguntou, pegando uma embalagem de suco com uma das mãos e mexendo no cabelo com a outra.
- Tá. Só... estranhando sentir tudo isso tão rápido.
- Eu entendo. Mas não precisa ter medo.
Ela olhou para ele com um meio sorriso.
- E se você mudar de ideia?
- Sobre você?
Ela assentiu, discreta.
Miguel fez uma pausa, o olhar fixo nos olhos dela.
- Ana, quando a gente gosta de verdade, a ideia só muda pra ficar mais forte. Eu não tô aqui por acaso. E nem quero que isso seja só uma fase da escola.
Ela suspirou. Era tudo o que ela queria ouvir, mas ao mesmo tempo era o que mais a assustava. Sentir algo assim era bonito, mas também frágil. Como cristal recém-lapidado. Um movimento em falso e tudo poderia se quebrar.
Mais tarde naquele dia, enquanto arrumava seus materiais, um bilhete caiu do caderno dela. Mas não era dela. A letra era diferente. Era dele.
"Você já se apaixonou pela forma como alguém anda? Tipo quando os passos dizem mais que as palavras? Acho que me apaixonei por isso em você. Pelo jeito que você anda devagar, como se o mundo tivesse que acompanhar o seu tempo."
Ela leu aquilo pelo menos três vezes. E pela primeira vez, sentiu vontade de responder com mais do que um bilhete. Queria falar. Em voz alta. Olhar nos olhos. Dizer que também se apaixonara. Que os passos dele também tinham ritmo. Que até o jeito que ele dobrava as mangas do uniforme era bonito. Mas travou. Ainda não conseguia.
Naquela semana, começou a desenhar. Nada complexo. Só rabiscos. Começou com folhas, depois olhos, depois mãos. E um dia, sem perceber, desenhou o sorriso dele. Pegou uma folha nova e tentou novamente. E de novo. E de novo. Até que conseguiu chegar perto do que sentia. Era como se estivesse aprendendo a enxergá-lo pelos traços.
No sábado, Miguel a chamou para ir até a pracinha no centro da cidade. Não era um encontro declarado, mas os dois sabiam o que era. Sentaram no banco perto do laguinho artificial. Os pés dela balançavam levemente, e o vento bagunçava os fios soltos do cabelo. Ele usava um moletom cinza, e ela uma blusa de lã vinho. Os dois em silêncio por um tempo.
- Queria poder entender o que tá acontecendo - ela disse, quase num sussurro.
- É amor.
- É cedo pra chamar assim, não é?
- Talvez. Mas às vezes a gente sabe mesmo antes de acontecer.
Ela olhou para ele, séria. E ele sustentou o olhar, firme.
- E você sabe?
- Eu tô sentindo. E quando a gente sente, é porque já começou.
Ela encostou a cabeça no ombro dele, e os dois ficaram assim por longos minutos. O tempo corria, mas eles pareciam fora do relógio. Havia crianças correndo pelo parquinho, pais conversando ao redor, o som de uma bicicleta ao longe. Mas nada interferia naquele momento.
No fim da tarde, ele a acompanhou até o portão de casa. Ela estava com frio nas mãos, e ele pegou ambas entre as dele, esfregando devagar.
- Amanhã... posso te ver?
- Pode - ela respondeu, num sorriso tímido.
- Posso te escrever?
- Sempre.
E ele escreveu. E ela respondeu. Trocaram bilhetes por semanas, escondidos nos estojos, dentro dos livros, sob o tampo das carteiras. Palavras doces, simples, sinceras.
"Você é meu pensamento bom antes de dormir."
"Quando eu penso em futuro, já te vejo lá."
"Seus olhos têm um tipo de silêncio que grita dentro de mim."
Ana Clara começou a deixar os bilhetes em uma caixinha dentro do armário, como se guardasse pedaços de um amor que estava se costurando com cuidado. Ela não queria perder nada daquilo. Não queria esquecer nenhuma palavra.
O romance deles não era feito de gestos grandiosos, nem de promessas alardeadas. Era feito de pausas. De olhares. De frases baixas no meio do recreio. De mãos que se encostavam só por um instante. Era tudo muito clichê - e por isso mesmo, era tão bonito.
No fim do mês, Ana Clara entregou a Miguel um envelope. Dentro, havia um desenho dela e dele, sentados sob a árvore da escola. Ela havia desenhado os dois, lado a lado, sorrindo. Ele segurando um bilhete. Ela com o cabelo solto ao vento. E atrás do papel, uma frase escrita com sua caligrafia leve:
"Mesmo que isso tudo dure pouco, obrigada por me ensinar que o amor pode ser simples e ainda assim enorme."
Miguel não disse nada de imediato. Apenas a puxou para um abraço, e naquele abraço, havia tudo o que ainda não tinham dito.