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O céu parecia ter acordado mais cinza naquela manhã. Ana Clara olhava pela janela do quarto enquanto pequenas gotas escorriam pelo vidro, traçando caminhos lentos como lágrimas em câmera lenta. Era a primeira chuva do semestre - e, como tudo em Vale Serena, até o clima parecia saber o momento certo de acontecer.
Ela gostava da chuva. Gostava do som suave no telhado, do cheiro de terra molhada subindo pelas ruas, e do modo como o mundo parecia mais lento sob um guarda-chuva. Mas naquela manhã, havia algo mais. Algo que apertava no peito e ela ainda não sabia nomear.
Vestiu o uniforme, pegou o caderno de capa preta - o diário compartilhado com Miguel - e desceu as escadas sentindo o coração mais inquieto do que o normal.
Na escola, o movimento era menor. Muitos alunos faltavam em dias de chuva. Mas Miguel estava lá. Sempre estava.
Ele a esperava no corredor, encostado na parede ao lado da sala, com a jaqueta encharcada e o cabelo grudado na testa. Quando a viu, sorriu com aquele ar de quem não se importava com o frio ou com a umidade, desde que pudesse vê-la chegar.
- Trouxe o caderno? - ele perguntou, enxugando a testa com a manga da blusa.
- Sempre.
Ela abriu a mochila e entregou. Ele pegou o caderno com cuidado, como se fosse um pedaço dela que podia carregar consigo. Ana Clara queria dizer algo, qualquer coisa. Mas havia um silêncio denso entre os dois, diferente dos outros.
Eles entraram na sala juntos. Sentaram-se, como sempre, lado a lado. Mas o mundo estava mais lento. O som da chuva no telhado parecia um metrônomo emocional, marcando o ritmo dos pensamentos. A professora de biologia falava sobre células, mas a mente de Ana Clara estava em outro lugar. No toque da mão dele. No jeito que ele a olhara mais cedo - como se houvesse algo não dito.
No recreio, sentaram-se no mesmo banco de sempre, agora parcialmente coberto por um dos toldos do colégio. Miguel tirou o caderno da mochila e o colocou entre eles.
- Li seu último texto umas quatro vezes.
- Achei que você fosse achar bobo.
- Bobo? - ele sorriu. - Foi como ouvir meu próprio pensamento com sua letra.
Ana Clara olhou para as próprias mãos.
- E você? Não escreveu nada dessa vez?
Ele hesitou, então abriu o caderno na última página preenchida. Havia apenas uma frase, escrita em letra maior que o normal:
"E se um dia tudo isso acabar?"
Ela leu a frase como quem lê uma notícia que preferia não saber. O peito apertou.
- Por que escreveu isso?
Miguel olhou para ela, sério. Os olhos não tinham medo, mas tinham dúvidas.
- Porque tenho medo de te machucar. Ou de me machucar. A gente não tem controle sobre o tempo, Ana. Às vezes, ele passa. Às vezes, ele muda a gente.
Ela engoliu seco.
- Mas você não mudou. E eu também não.
- Ainda não. Mas... e se?
Ela fechou o caderno com cuidado. Não bruscamente. Apenas com firmeza.
- Eu não quero pensar no fim. Não agora. Nem amanhã.
- E se a gente prometer que, aconteça o que acontecer, tudo que vivemos vai continuar sendo bonito?
Ela olhou para ele, os olhos cheios d'água - não de tristeza, mas de intensidade.
- Eu te prometo.
Miguel assentiu. E, então, fez algo que raramente fazia em público: segurou a mão dela. Com força. Como quem ancora. Como quem jura.
O resto do dia passou com a mesma chuva cadenciada, com as mesmas vozes nos corredores, mas o mundo deles havia mudado um pouco. Pela primeira vez, tocaram no medo. Pela primeira vez, reconheceram que até as histórias mais bonitas carregam incertezas. E mesmo assim, escolheram continuar.
Naquela noite, Ana Clara não conseguiu dormir. Ficou deitada, abraçada ao travesseiro, com a luz do abajur acesa e o diário sobre o peito. Escreveu nele com a respiração contida:
"Se um dia o tempo tentar nos afastar, quero que você lembre disso: eu te vi. Te vi de verdade. Quando todo mundo só passava, eu parei. E fiquei."
No dia seguinte, Miguel chegou com uma folha dobrada no bolso. Entregou a ela no recreio. Era um desenho - algo diferente dos outros. Tinha uma rua molhada, uma garota de guarda-chuva e um garoto do outro lado da calçada, ambos olhando um para o outro. E no canto da folha, uma frase:
"Mesmo que a gente se molhe todo, quero caminhar ao seu lado."
Ana Clara guardou o desenho como quem guarda um pedaço do coração de alguém. Sabia que estavam entrando em outra fase. Que amar também era ter medo. Mas era também ter coragem. E era essa coragem que ela sentia crescendo entre eles, mesmo nos dias de chuva.