Capítulo 2 O espelho

Vancouver (Canadá) - 2013

-Tempo esgotado, turma!

O novo professor de artes disse lá da frente. Fitei o professor Ricchard, ele estava calmo usando sua bata branca cheia de respingos de tinta. Os outros alunos mostravam suas lindas obras, desenhos coloridos e alegres. Todos estavam alegres e aos poucos de um por um o professor achegou-se elogiando suas pinturas enormes na tela. Logo saiam esnobando uns aos outros pela porta da sala que aos poucos ficou vazia.

Suspirei fitando o professor, somente nós dois havíamos ficado na sala, que agora se tornara silenciosa, a ponto de conseguirmos escutar o som dos carros lá fora. O professor achegou-se por detrás de mim, estava sorridente como sempre, até virei o rosto, sorrir me assustava. Ele observou a minha pintura por alguns segundos, talvez a minha forma de ver o mundo fosse estranho para ele, pois colocou o dedo no queixo como se estivesse pensando.

-O que significa?

Ele perguntou agora com um sorriso. Olhei para minha obra, aquela pintura não era coincidência, era com fundo todo branco, havia um caminho vermelho quase apagado e três silhuetas indo em direção à uma porção muito grande de nuvens do fim da tarde. Tinha uma família, uma silhueta masculina com a cabeça para o lado, como se olhasse o relógio do pulso soltando a mão de uma silhueta pequena ao lado. Em outro lado uma silhueta feminina com passos um pouco mais devagar, mais baixa que as outras, uma criança. Ela estava com uma das mãos levantadas querendo segurar a mão da silhueta masculina, e a outra mão estava distorcida querendo tocar a mão de uma silhueta feminina que caminhava em direção contrária.

O professor Ricchard me observou por alguns segundos com uma sobrancelha levemente arqueada e logo após isso, suspirou.

-Harisha, você é uma boa aluna. Consegue desenhar algo feliz?

Ele perguntou em tom de sussurro. Eu não queria debater com ele sobre a minha vida, não tinha nada de bom nela. Me pegava inúmeras vezes refletindo sobre eu mesma, sobre o que havia restado das minhas emoções. Me perguntava se outras pessoas eram fortes, elas choravam? O que fariam na minha situação?

-Quando a felicidade existir, eu desenho ela.

Só consegui dizer aquilo. Em seguida ele me liberou da sala. Já era 21:00 pm, guardei os meus pertences nos armários da escola, haviam muitos alunos ali ainda, ainda caçoavam de mim. As outras garotas passavam agarradas com muitos garotos, esbanjando decotes nos seios e aquilo chamava bastante atenção, eu as achava corajosas e confiantes, apesar de ver tudo aquilo como marketing. Eu sempre preferi meu casaco preto que escondia meu baixo peso e minhas botas com correntes, meu visual era desleixado e simples. O casaco preto de minha mãe ainda servia, por isso eu ainda o usava.

Caminhei pelo corredor enquanto escutava os murmúrios de todos. Toda a escola já sabia da minha vida, todos me viam como a garota que sempre usava preto e que tinha sido a culpada pela separação dos pais. Chorei por anos e depois que as lágrimas secaram, tudo havia esfriado. Eu não sabia se havia amadurecido ou amargurado. Atravessei a primeira avenida passando a língua nos lábios e molhando um pouco o piercing labial que eu tinha colocado há alguns meses.

Cheguei em meu apartamento no centro da cidade e mesmo que morasse sozinha e tivesse bastante tempo, tudo estava muito bagunçado. Chutei as botas para o canto da parede e sentei sobre um dos sofás da sala depois de ligar a lâmpada. Em minhas mãos estavam os muitos desenhos da aula de artes, suspirei tirando a franja que caia com outras mechas sobre meu rosto. Eu não era boa em nada, não cozinhava, odiava ler e escrever, mas, quando colocava os fones e pegava um pincel, eu viajava em meu próprio mundo que mesmo sendo solitário eu gostava.

Ainda sonhava em como seria a minha vida com meus pais. Eu me perguntava como eles estariam. Minha mãe havia encontrado a felicidade? E meu pai? O que havia acontecido com ele? Ele havia se casado e tido filhos? Suspirei, meu celular tocou e atendi.

-Harisha, como está?

Era Bella Ross, não éramos amigas, mas, de vez enquanto ela falava comigo, até entendia o lado dela. Era uma jovem muito bonita e popular, mas não era maldosa. Conversávamos escondidas para ''não sujar'' a imagem dela. E apesar de ser algo oculto, o nosso segredo, eu me sentia bem, em poder conversar com alguém. Era bom as vezes poder ouvir as bobagens que ela me contava sobre ela, como suas relações sexuais e os caras com quem ela saia ao mesmo tempo e nenhum sabia do outro.

-Soube que vai ter uma feira de artes aqui no centro daqui algumas semanas. Desenhe algo feliz, eu inscrevo você. Você sempre desenhou bem, quer tentar?

Ela perguntou, apesar de ser uma ligação percebi um tom de preocupação vindo da parte dela. Ela suspirou, revirei os olhos.

-Eu sei que você é sozinha e não confia nas pessoas, até eu não confio. Mas, tente dar uma chance novamente e viva, sei que não tenho direito algum de opinar sobre a sua vida, mas eu me preocupo, sabia? Eu vou sair com você para a feira, quero te apoiar lá.

Ela disse decidida, deixei os desenhos ao meu lado no sofá.

-Quer dizer que você vai deixar o glamour e sair com a estranha?

Ouvi o tom de decepção do outro lado.

-Você acha realmente que sou esse tipo de pessoa? Valeu.

Ela disse decepcionada e logo após isso não ouvi mais a sua voz do outro lado do celular. Eu realmente a achava aquele tipo de pessoa. Fitei a televisão à frente que ficava em cima de um rack e suspirei mais uma vez. Fui até a cozinha e abri a geladeira, aquilo era de espantar. Tinha mais bebida destilada que água.

Peguei uma garrafa de bebida e retornei para a sala e me sentei no sofá e dei um gole. Estava passando notícias da noite, o mundo da fama. Por fim acabei desligando a televisão e saindo. Atravessei as avenidas andando como de costume, tudo estava movimentado.

Passei pelo primeiro parque, havia um grupo de jovens na baderna conversando entre si enquanto tocavam instrumentos ali mesmo. Ainda caminhei em passos lentos tentando aproveitar cada milésimo de segundo da música que eles tocavam. Atravessei o segundo parque, estava vazio e silencioso, os bancos de madeira e pintados apenas de verniz estavam sem ninguém, as poucas árvores ao redor davam certo ar especial àquele lugar.

Caminhei em seguida na direção da pequena barraca no fim daquela rua, ali vendia macarrão em caixinha, comida chinesa. Desde sempre eu havia me adaptado a comida pronta, cozinhar? Eu com certeza não sabia o que era aquilo. Poderia comer tranquilamente no meu apartamento, mas aquela solidão lá dentro me sufocava aos poucos e eu sentia que estava me rachando, como um espelho de vidro que reflete o nosso reflexo, a nossa alma.

Retornei para a praça vazia, dos três bancos dali, agora um estava ocupado, havia um casal de namorados. Eles comiam e riam conversando sobre coisas banais, seria bom ter companhia. Bella não falava comigo na escola, embora quase todas as noites ela me ligasse e me contasse fofocas de sua vida. Comi em silêncio, o frio estava suportável.

Eu costumava ter uma pessoa para conversar quando era criança, porém, quando crescemos e o sentimento de amizade mudou, o custo que paguei pelo amor foi caro. Brian Smith era meu ''amigo'' de infância. Eu, minha mãe Elizabeth Johnson e meu pai Thomas Johnson, morávamos numa casa simples em Edmundston, num lugar simples e humilde. Meu pai trabalhava como motorista de caminhão. Brian Smith era três anos mais velho, e nos doze anos que morei naquela casa, ele costumava conversar comigo trepado na baixa cerca de madeira.

Brincávamos de vôlei, cada um do lado de sua cerca. Brian se tornou popular aos dez anos de idade, era branco, tinha grandes olhos pretos e cabelos cacheados escuros. Eu estava no auge dos meu doze anos quando minha mãe chegou comigo num fim de tarde.

Ela sentou-se no chão ao meu lado, estávamos na varanda de casa, estava um pouco quente e decidir ir para lá. Ela suspirou por muitos minutos antes de falar algo, e quando falou, disse que nos mudaríamos, pois a vida financeira não estava muito boa e ela e papai queriam tentar uma nova vida em Vancouver. Eu era boba demais, mas entendi que iríamos embora e eu daria adeus ao meu amor.

As caixas com nossos objetos e roupas foram enviados de caminhão três dias antes de pegarmos o avião. Um dia antes de viajarmos, encostei-me numa das colunas da escola, eu havia mandado uma cartinha para Brian e queria me despedir dele antes de ir embora. Olhei para as janelas de vidro do corredor, o céu começava a escurecer, iria chover. Quando Brian surgiu no corredor e sozinho, meu coração quase saíra pelos lábios. Ele estava sério daquela vez, diferente de como ficava quando estava rodeado por seus amigos.

Brian parou na minha frente, estava impaciante e levantou a mão, entre seus dedos estava a carta que eu escrevi para ele. Ele levantou uma das sobrancelhas e depois sorriu.

-O que você quer comigo, Harisha?

Ele perguntou, seu tom era irônico, eu quis desistir. Outros alunos começavam a aparecer no fim do corredor e logo passariam por nós dois. Eu conhecia Brian desde a infância, eu achava que o conhecia. Tiffany vinha com muitas garotas do grupo de líderes de torcida, ela era bonita, cheia de curvas e loira, ela já tinha 15 anos.

Eu sempre a via com Brian, sabia que ele sentia algo por ela, mas nunca senti raiva ou remorso. A única coisa que me importava naquele momento, era conversar com ele. Quando eu disse à ele meus sentimentos, ele ficou em silêncio, depois suspirou e desviou o olhar de mim. Como se não aceitasse o que eu tinha falado para ele, depois olhou para o meu rosto novamente.

-Ei, Brian! O que você está fazendo?

Era um de seus amigos, agora todos estavam ali próximos a nós. Tiffany segurou a mão de Brian, de frente para ela, eu me senti pequena. Ela era tudo o que eu não era: confiante.

-Essa garota está dizendo que gosta de mim.

ESSA GAROTA... Aquilo foi uma tapa em minha orelha. E por milésimos de segundos eu fiquei em silêncio, os momentos que eu estava sorrindo com ele e me divertindo com ele haviam sido uma mentira. Naquele momento, eu era apenas a garota desconhecida e estranha.

-Sinto muito, garota. Você não faz o meu tipo.

Foram as palavras de Brian, ele saiu da minha frente caminhando de mãos dadas com Tiffany. Os cabelos dela passaram pelo meu rosto e machucaram meus olhos.

-Você é ridícula.

E assim, os dois foram embora, eu queria ficar sozinha, mas os amigos de Brian continuaram ali, e começaram a zombar de mim. Eles riam, apontavam dedos para mim, abraçavam uns aos outros fingindo serem casais e depois olhavam para mim e riam. As trovoadas foram rápidas lá fora da escola, eu ouvi o barulho da chuva. Os trovões eram menos barulhentos que os pedaços que eu havia acabado de me tornar.

Corri, os amigos de Brian correram atrás de mim, eu queria que me deixassem em paz. Embora eu fosse muito nova para amor, eu queria ter escutado apenas um ''tudo bem''. Cheguei ao pátio da escola com o rosto banhado em lágrimas, o caminho até minha casa era de seis quadras. Atravessei a rua sem olhar o semáforo, um carro em alta velocidade quase me atropelou, mas freou em cima. Eu desmaiei com o susto.

Cheguei em casa depois de o motorista ter me acordado. Agradeci aos céus por minha mãe estar ocupada na cozinha, não queria que ela visse o rosto fracassado da filha. Ela com certeza nunca soube dos meus sentimentos.

Suspirei comendo a última porção de macarrão e olhei para o casal pela última vez, eles estavam de mãos dadas e se beijando no parque. Aquela era uma sensação que eu nunca havia sentido, a única coisa que eu havia feito era pegar na mão, e o homem era o meu pai. Joguei a caixa na lixeira pública e caminhei com as mãos dentro do bolso rumo ao apartamento.

Quando entrei em meu apartamento, ainda estava uma bagunça, eu parecia um rapaz no início da puberdade. Meus dezenove anos se aproximavam e eu tinha a certeza que aquele apartamento ficaria vazio como todos os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, eu precisava de um amigo. Afastei alguns panos de cima da cama, tinha que dormir bem, acabei por esquecendo que havia deixado meu espelho oval ali, ele caiu no chão e espatifou-se em muitos pedaços. Bufei. Agachei-me no chão para pegá-lo e tive uma visão ruim. Meu reflexo naquele espelho quebrado, refletia como eu me sentia.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022