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Siliana
Eu não voltei àquela cafeteria pelos cafés.
Voltei porque odeio quando alguém me olha como se enxergasse além da casca. Como se pudesse alcançar aquilo que eu enterrei junto com cada uma das quatorze vidas que arranquei.
O guardanapo ainda estava dobrado no bolso do meu casaco, amassado, quase rasgado pelas vezes em que meus dedos passaram por ele sem querer. "Você não precisa continuar vazia." Frase idiota.
Mas ali estava eu, dois dias depois, sentada na mesma cadeira, com o mesmo copo barato entre as mãos, encarando a porta como quem espera o pior.
E ele entrou.
Como se soubesse que eu estaria ali. Ou talvez soubesse que eu não sabia fazer outra coisa além de retornar aos lugares que me incomodavam.
Ian.
Dessa vez, ele não sorriu quando me viu. Só caminhou até o balcão, pediu um café e sentou ao meu lado como se aquilo fosse hábito. Como se fôssemos velhos conhecidos.
O silêncio entre nós era mais barulhento do que qualquer conversa.
- Achei que você não gostasse de gente - ele disse, finalmente, sem me olhar.
- Não gosto - respondi. - Mas, que escolha tenho a não ser suportá-la?
Ele soltou um riso leve.
- Então por que voltou?
Eu não sabia.
Ou talvez soubesse, mas não queria admitir.
- Gosto de lugares silenciosos - menti. - Mas não de gente. Inclusive, você está me incomodando.
Ele me olhou de lado, aquele olhar que não carregava medo, só curiosidade.
- Você tem um jeito de olhar o mundo como se estivesse pronta pra destruí-lo - comentou, tomando um gole do café. - Mas ainda assim, tá aqui, no lugar mais banal que existe.
Virei para ele, sustentando seu olhar.
- Você fala demais.
- Alguém precisa.
Por algum motivo estúpido, aquilo me fez querer rir. Ou gritar. Não sabia. Só sentia.
Ele não perguntou de onde eu vinha, não quis saber onde eu morava, não tentou adivinhar meu passado - e talvez por isso eu tenha permitido que ele permanecesse ali, respirando ao meu lado.
Quando ele terminou o café, deixou algumas moedas no balcão e ficou de pé.
- Tem algo em você que não combina com essa cidade - disse antes de sair. - Ou talvez seja ela que não combine com você.
Ele foi embora sem olhar para trás.
E pela primeira vez em muito tempo, fiquei encarando a porta vazia, sentindo que algo dentro de mim estava começando a rachar.
Naquela noite, não consegui dormir.
Os rostos das pessoas que matei sempre me visitavam quando as luzes se apagavam. Gritavam, choravam, imploravam. Mas, naquela noite, eles estavam calados.
No lugar deles, o que ecoava na minha mente era a voz calma de Ian, dizendo que eu não precisava continuar vazia.
O problema era que ele não entendia.
Eu não era um copo esperando ser preenchido.
Eu era a porra do veneno, pronto para matar quando a ameaça vem à tona.
Eu não sou uma pessoa de "por favor" ou "obrigada". Nunca aprendi a ser.
O mundo nunca foi gentil o suficiente para ensinar isso a ninguém.
Então, quando a proposta apareceu, eu não hesitei. Não senti a necessidade de pensar no que estava me oferecendo. Não importava o preço, desde que fosse o suficiente para me tirar daquele bar imundo e da vida imunda que eu levava.
Eu estava trabalhando num bar daquelas esquinas sujas da cidade, onde a única coisa que brilhava era a luz fraca da lâmpada quebrada no teto. Aquele lugar me fazia sentir que eu já tinha tocado o fundo do abismo, mas continuava cavando, em busca de algo que me afastasse das paredes mofadas e do cheiro de vomito que se acumulava no ar.
E aí apareceu ele. O tipo de homem que você olha uma vez e já sabe que não vai fazer perguntas. O tipo que olha para você como se já soubesse que você não é de confiar, mas que, mesmo assim, vai apostar no que tem a oferecer. Dinheiro.
Ele me observava sempre que eu passava, como um predador testando a caça. De início, eu o ignorei, como sempre fiz com os clientes que se achavam entediantes. Mas ele não se cansava.
Até que, uma noite, ele se aproximou. O bar estava vazio, só alguns bêbados espalhados pelas mesas, e o som da música desafinada do jukebox era a única companhia.
- Você tem um jeito interessante de olhar o mundo - ele disse, tomando um gole de uísque. - Como se estivesse sempre à espera de algo grandioso.
Parei de limpar o copo e o encarei. A mesma curiosidade de sempre, mas sem o charme que Ian tinha. Esse homem estava ali por um motivo claro: ele não me via como uma mulher, mas como uma mercadoria.
- O que você quer? - perguntei, sem perder a calma. - Odeio ter que conversar antes para saber o motivo depois.
Ele deu um sorriso que não chegou a iluminar os olhos.
- Eu posso te tirar desse lugar. Dou o que você quiser. Dinheiro, carro, casa. O que você precisar. Só preciso de um trabalho... mais pessoal. Nada pessoal demais, digamos que somente entre você e a vítima.
Fechei o olho por um segundo, assimilando a proposta. Não era a primeira vez que me ofereciam isso, mas dessa vez era diferente. Ele não estava tentando me seduzir ou me manipular com palavras doces. Ele estava me oferecendo um preço. E eu sempre soube que, quando se trata de dinheiro, todo mundo tem um preço e eu não sou diferente.
O silêncio entre nós se estendeu, e eu vi as opções dançando diante de mim. Eu poderia recusar, continuar naquele maldito bar sujo, fazendo o que eu fazia para sobreviver, ou poderia aceitar. Entrar em uma nova fase. Uma onde a vida suja que eu levava seria trocada por um glamour falso, onde eu seria mais uma marionete com o bolso cheio.
- O que você quer de mim? - perguntei, mais por curiosidade do que por desejo de saber. - E como veio até mim?
Ele olhou nos meus olhos, como se estivesse me avaliando, e então disse:
- Quero que você faça o que faz de melhor. E que me entregue, no fim da noite, o que eu pago por. E... sempre sabemos onde encontrar raras peças mortais.
Eu sabia o que ele queria. Não precisava de mais explicações. Não tinha vergonha. Nenhuma hesitação. Não quando a miséria me consumia e a ideia de escapar dessa prisão me parecia mais doce do que qualquer princípio que eu tivesse deixado pra trás.
Fiquei em silêncio, encarando o copo de uísque na minha mão. A escolha era simples, eu já sabia disso.
Aceitei.
Aquela noite, enquanto eu me preparava para agir, minha mente estava vazia de qualquer noção de moral. Não havia um peso de culpa, não havia arrependimentos. Nada que me fizesse hesitar. Eu já havia cruzado tantos limites em minha vida que, em comparação, aquilo parecia trivial.
Ele me pagaria muito. E o que eu faria com o dinheiro não importava. Talvez comprasse um lugar para viver. Um lugar onde eu não fosse tratada como uma sombra. Ou talvez eu gastasse tudo e voltasse para o mesmo poço de onde saíra.
A única coisa que importava era que eu não estava mais no bar, aquela prisão que me humilhava todos os dias. Eu não estava mais amarrada àquela miséria. E finalmente eu poderei dormir em uma cama decente e desfrutar das refeições diárias.
Ao final da noite, enquanto eu saía do quarto e ele se levantava da cama, o dinheiro estava sobre a mesa, esperando por mim. Não me importava com o que ele pensava. O que ele me ofereceu não foi mais do que a única moeda que vale na cidade: a sobrevivência. Afinal, ele teve que dormir no meu apartamento pra ter certeza que eu não iria matá-lo.
Eu não sou uma pessoa boa. E naquele momento, eu não sabia o que significava ser alguém além de um monstro feito de necessidade e sangue. Era tudo pelo dinheiro, eu não queria que fosse assim, mas eu não tive outras escolhas e muito menos opções, então contente-se.