Capítulo 3 Conhecendo O Herdeiro

Dias depois...

Siliana

O dinheiro acabou rápido.

Não porque eu gastei à toa, mas porque sobreviver custa caro. Um quarto pequeno, comida que não parecia feita de lixo e roupas que não tinham o cheiro da noite passada. Coisas básicas.

E então, antes que eu pudesse me acostumar à ideia de conforto, lá estava eu, voltando para ele.

Não perguntei o nome. Nunca pergunto. Para mim, era só um rosto, um bolso cheio e um objetivo claro. Mas dessa vez, algo estava diferente.

- Você fez um bom trabalho - ele disse, sentado na poltrona do hotel caro que eu jamais teria entrado por conta própria. - Mas quero saber se está disposta a ir além. Você sabe como funciona essas coisas. Você se saiu muito bem, confesso que surpreendeu até a mim mesmo. Mas, agora vamos conversar sobre negócios.

Ele jogou uma foto na mesa de vidro. Um homem, de uns cinquenta anos, terno impecável, aquele olhar arrogante de quem acha que é dono do mundo, mas o mundo não tem dono, ou tem e são os espertos.

- E como seria esse nosso "negócio"? Quanto eu vou ganhar por cabeça? E você sabe que os valores mudam de acordo com a raça.

- E se eu disser que posso pagar cinco vezes mais do que da última vez? E será tudo sob contrato.

- cinco vezes? No mínimo sete vezes a mais e sem contratos. Não gosto de me prender a coisas, eu te dou a minha palavra e você me dá a sua. Lembre-se: os valores alteram de acordo com a raça.

- Eu gostei de fazer negócio com você. Mas como você sabe mais que eu, você distinguir a raça e me fala o valor, eu adicionarei a sua conta.

Peguei a foto. O nome não importava. O motivo, menos ainda.

- Você quer ele morto.

Não era uma pergunta e ele sorriu.

- Você disse que gosta de dinheiro. Aqui está a sua chance de nunca mais precisar se preocupar com isso.

Minha mente girou. Já fizera isso antes, claro. Quatorze vezes. Mas todas as outras foram por sobrevivência, não por contrato. Não por dinheiro.

- E então? - ele perguntou, tomando um gole do uísque caro. - É pegar ou largar.

Eu deveria ter largado.

Mas a miséria tem um jeito cruel de grudar na gente. Mesmo quando a gente acha que conseguiu escapar, ela nos puxa de volta, sussurrando que nunca seremos nada além do que sempre fomos. E eu estou cansada de ser nada.

- Quando e onde? - perguntei, deixando a foto de lado.

Ele sorriu, satisfeito.

- Amanhã à noite. Vou te mandar os detalhes.

Peguei o envelope de dinheiro e saí. Sem olhar para trás.

Mas, enquanto caminhava pela rua, sentindo o peso da escolha em meus ombros, um pensamento estranho cruzou minha mente.

E se eu fosse feita apenas disso?

E se tudo que eu sou... for um buraco que nunca se preenche?

A noite estava fria. Mas eu já não sentia mais nada.

O endereço era um prédio luxuoso no centro da cidade. O tipo de lugar onde as pessoas se acham intocáveis.

Passei pela recepção sem ser notada. Nada de uniforme ou disfarce. Apenas confiança. Porque, na maioria das vezes, as pessoas não questionam alguém que age como se pertencesse ao lugar.

O alvo estava no oitavo andar. Um advogado rico, sujo e podre como todos os outros. Talvez já soubesse que alguém viria, talvez não.

Não importava.

Meu coração não acelerou quando peguei a chave mestra que consegui por meios... convenientes. Não hesitei ao destravar a porta e deslizar para dentro, como um fantasma.

O apartamento era moderno, bem decorado. Mas tudo o que vi foi o homem de costas para mim, lendo alguma coisa na tela do celular.

Cheguei perto o suficiente para sentir seu perfume caro antes que ele notasse minha presença.

Ele se virou, e foi aí que eu soube.

A armadilha já estava armada.

- Achei que demoraria mais - ele disse, sem surpresa na voz. - Até pensei que estaria mais apresentável, mas assim está ótimo.

Franzi a testa.

- O que quer dizer com isso? Não estou formal o suficiente?

Ele sorriu, tranquilo demais para alguém prestes a morrer. Ou tudo não passava da minha última noite viva.

- Quer mesmo acreditar que foi por acaso que te ofereceram esse trabalho? Que ninguém sabe quem você é? Acredita mesmo que as pessoas começam em quem mata por nada? Você é doente e fácil de manipular.

Meus dedos apertaram o cabo da faca.

- Se quer falar, fale logo. Eu não tenho tempo pra conversas idiotas.

Ele cruzou os braços, como se aquilo fosse uma conversa qualquer.

- Tem gente grande de olho em você, Siliana. Gente que gosta do que você faz... e gente que não gosta.

Meus músculos enrijeceram.

- Como sabe meu nome?

Ele riu baixo.

- Você acha que pode matar quatorze pessoas sem chamar atenção? Acha que ninguém notaria?

Fiz menção de avançar, mas ele ergueu a mão.

- Me mate e nunca saberá quem está te caçando.

As palavras congelaram minha ação.

Não porque eu tinha medo.

Mas porque, pela primeira vez, alguém me fez perceber que talvez eu não fosse a predadora dessa história.

Talvez, dessa vez, eu fosse a caça.

Ele achava que me assustaria.

Que aquelas palavras fariam com que eu abaixasse a faca e recuasse.

Ele não sabia nada sobre mim.

Antes que pudesse abrir a boca para soltar mais alguma frase calculada, enfiei a lâmina direto na lateral de seu pescoço.

O choque passou por seus olhos como uma faísca. Ele tentou segurar o corte, tentou falar, mas só saiu um gorgolejo sufocado.

- Você fala demais - murmurei, observando enquanto ele caía de joelhos. - E não deveria confiar tanto assim nas pessoas.

O sangue respingou no chão de mármore, manchando o brilho luxuoso do apartamento. Suas mãos tremiam, buscando algo que não existia. Vida. Chance. Perdão.

Nada disso eu poderia dar.

Eu me afastei quando ele caiu para frente, os olhos vidrados no vazio.

Nada de hesitação. Nada de culpa. Apenas mais um trabalho concluído.

Peguei o celular dele, tirei o cartão de memória e o queimei ali mesmo, antes de sair pela mesma porta por onde entrei.

A cidade lá fora seguia viva, indiferente ao que havia acabado de acontecer. E eu?

Eu só queria meu dinheiro.

Assim que deixei o local, enviei uma mensagem ao número me dado, com o valor da cabeça e as fotos dele morto. Agora só me restava esperar.

Nikolai

A porta do bar se abriu e ela entrou.

Pequena. Magra. Olhar afiado como navalha.

Se eu não soubesse quem era, teria ignorado. Mas eu sabia.

Siliana.

A mulher que meu pai queria testar. A que havia matado quatorze antes de sequer chegar até ele. Agora, quinze.

Ela parou diante de mim sem dizer nada. O olhar era vazio, mas o corpo inteiro falava.

- Você é o Nikolai? - a voz dela era áspera, impaciente.

- Você esperava quem? - Me apoiei no balcão e mantive a paz.

Ela arqueou uma sobrancelha, mas não disse nada.

Puxei um envelope do bolso e joguei sobre o balcão.

- O que foi combinado, com o seu valor final.

Ela pegou sem cerimônia, sem contar, sem perguntar. Apenas virou de costas para sair.

Mas eu não queria que ela fosse.

Talvez fosse o modo como ela andava, como se o mundo não importasse. Talvez fosse porque, pela primeira vez, vi alguém tão morto por dentro quanto eu. Ou talvez fosse só o fato de que, ao vê-la, pela primeira vez em muito tempo, senti alguma coisa.

- Tem outro trabalho - soltei antes que saísse.

Ela parou, mas não olhou para trás.

- E daí?

Meu maxilar se contraiu.

- E daí que só estou oferecendo porque quero ver se você aguenta. - Ela riu. Baixo. Um som que não combinava com ela.

- É mesmo? - Então virou para mim.

- Ou será que só quer uma desculpa para me ver de novo?

Fiquei em silêncio.

Porque ela não estava errada.

            
            

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