Naquela festa, ao ouvir as palavras de Ricardo, Sofia sentiu o mundo a girar.
A duplicidade dele era tão descarada, tão cruel.
Ela desmaiou ali mesmo, no corredor do hotel.
Acordou num quarto desconhecido, a cabeça a latejar.
Tiago Oliveira estava sentado numa poltrona, a observá-la.
O tio de Ricardo. Um homem mais velho, discreto, com uma aura de poder e respeito que intimidava. Tinha negócios internacionais, uma reputação impecável. Sofia mal o conhecia. Vira-o poucas vezes, em eventos de família, sempre distante.
"Acordou, finalmente," disse ele, a voz calma, mas firme.
Sofia tentou levantar-se, assustada.
"Onde estou? O que aconteceu?"
"Está no meu hotel. Desmaiou na festa do seu... sobrinho. Aparentemente, o stress foi demasiado."
Ele olhou para ela com uma intensidade que a fez estremecer.
"O médico esteve aqui. Disse que sofreu um... aborto espontâneo. Provavelmente devido ao choque emocional."
Sofia arregalou os olhos. Ele sabia. Como?
"Não se preocupe," continuou Tiago, como se lesse os seus pensamentos. "Ricardo não sabe. Pelo menos, não de mim. Pedi discrição ao médico."
Lágrimas vieram aos olhos de Sofia.
"Por favor... por favor, não lhe conte. Ele não pode saber."
Tiago observou-a por um longo momento.
"Não vou contar," disse ele, surpreendentemente. "Não me parece que ele mereça saber de mais este seu sofrimento."
Sofia não entendeu a compaixão vinda daquele homem, mas agarrou-se a ela.
Quando voltou para casa, Ricardo estava preocupado com o seu "mal-estar" .
Continuou a mimá-la, a cobri-la de presentes.
"Comprei um colar novo para ti, meu amor. Igual àquele que a Beatriz usou na festa dos gémeos. Achei que ias gostar."
Sofia olhou para o colar. Uma réplica exata. A falta de originalidade, a duplicação constante, era um insulto.
Ela sorriu debilmente. "É lindo, Ricardo."
No dia da suposta viagem de iate, Sofia fez um último pedido.
"Podemos visitar a 'Cabana do Amor' antes de eu ir?"
A casa de praia isolada onde tinham passado momentos especiais no início do namoro. Onde ele a pedira em casamento.
Ricardo ficou visivelmente nervoso.
"A cabana? Agora? Mas... está um pouco desarrumada. Não temos ido lá há tempos."
Sofia insistiu. "Por favor. Só uma última vez."
Ele anuiu, contrariado. Ligou para alguém apressadamente. "Limpa tudo. Rápido."
Sofia sabia para quem ele estava a ligar. Beatriz e os filhos deviam estar lá.
Quando chegaram, a casa estava impecável. Demasiado impecável.
E a decoração... não era a que Sofia se lembrava.
Havia um toque feminino diferente. Cores mais vibrantes, objetos que não reconhecia. O gosto de Beatriz.
No quarto principal, sobre a mesa de cabeceira, um porta-retrato. Ricardo, Beatriz e os gémeos, sorridentes, na varanda daquela mesma casa.
Sofia sentiu o coração a afundar.
Abriu uma gaveta. Álbuns de fotografias.
Ricardo e Beatriz nos mesmos locais especiais que ele levara Sofia. Paris, Veneza, as praias exóticas. As mesmas poses, os mesmos sorrisos.
Ele não só duplicava presentes. Duplicava memórias. Profanava cada momento que ela julgava ser só deles.
A ilusão de exclusividade estilhaçou-se em mil pedaços.
Ricardo recebeu uma mensagem no telemóvel.
"Preciso de ir à casa de banho, meu amor. Já volto."
Ele subiu as escadas.
Sofia ficou na sala, paralisada pela dor.
Então, ouviu.
Sons vindos do quarto de cima. Gemidos. Risos abafados.
A voz de Beatriz, provocadora. "Ela está lá em baixo, Ricardinho. Será que nos ouve?"
A voz de Ricardo, ofegante. "Deixa-a esperar."
Sofia sentiu um entorpecimento gelado. A raiva, a dor, tudo se transformou numa frieza calculista.
Ela não queria apenas escapar. Queria vingança. Queria que ele sentisse uma fração do que ela estava a sentir.
Lembrou-se da sua infância. O pai alcoólico, violento. A mãe, uma vítima silenciosa, incapaz de a proteger.
Ricardo fora o seu salvador. Tirara-a daquele inferno, dera-lhe uma vida de princesa.
Ou assim ela pensara.
Agora, ele era apenas mais um abusador, de uma forma diferente, mais sofisticada.
A cicatriz no seu tornozelo, da queda na infância, latejou. Uma lembrança constante da sua vulnerabilidade.
A traição de Ricardo deixaria uma cicatriz muito mais profunda, uma que talvez nunca sarasse.
Mas ela não seria mais uma vítima.