Pousou uma fotografia na mesa. Afonso olhou, um arrepio percorreu-lhe a espinha. Era perturbadoramente parecido.
"Excelente."
Discutiram os pormenores financeiros, uma quantia avultada trocou de mãos.
"O pagamento final será feito no dia," disse Afonso, levantando-se. "Espero um serviço impecável."
"Não se preocupe, Senhor Alencar. A sua 'morte' será uma obra-prima."
Ao sair do prédio anónimo, o seu motorista, João, esperava-o com o Bentley.
"Para casa, Senhor Afonso?"
"Sim, João."
O carro deslizou pelas ruas de Lisboa, em direção à vivenda imponente que partilhava com Beatriz Moreira. A casa era um símbolo da sua relação, fria e grandiosa.
Beatriz estava na sala de estar quando ele entrou, desenhando numa grande prancheta. Era elegante, os cabelos escuros presos num coque desalinhado, a expressão concentrada. Levantou os olhos, e a frieza neles era habitual.
Ela aproximou-se, o cheiro subtil do seu perfume a envolvê-lo. Os seus dedos tocaram-lhe o braço, um gesto que costumava ser um prelúdio.
"Chegaste tarde," disse ela, a voz neutra. Tentou beijá-lo.
Afonso recuou instintivamente. "Não hoje, Beatriz."
Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa e um leve toque de irritação.
"Algum problema? O nosso acordo ainda está de pé, ou o dinheiro para o tratamento do Tiago já não te compra a minha companhia?"
A sua pergunta era uma faca, direta e sem rodeios, lembrando-o da natureza do seu laço.
Afonso engoliu em seco. "Estou cansado. Só isso."
Beatriz deu de ombros, a indiferença dela era palpável. "Como queiras. Tenho trabalho." Voltou para os seus desenhos.
O telemóvel dela tocou. Ela atendeu, a voz a suavizar-se ligeiramente.
"Rui? Sim, claro. Encontramo-nos aí."
Desligou e agarrou na mala apressadamente.
"Vou sair," anunciou, já a caminho da porta. A urgência era incomum, e Afonso sabia que era por causa de Rui Costa.
"Beatriz, espera," Afonso começou, querendo dizer-lhe algo, qualquer coisa sobre a sua partida iminente, sobre a loucura que estava prestes a cometer.
Ela parou, impaciente. "O quê? Estou com pressa."
Ele olhou para o rosto dela, para a distância nos seus olhos. Desistiu.
"Nada. Diverte-te."
Ela saiu sem mais uma palavra.
Afonso ficou sozinho na sala imensa, o eco da sua própria resignação a preencher o silêncio.
"Vou-me embora, Beatriz," murmurou para o vazio. "Para sempre."
Cinco anos antes, Afonso era um estudante universitário rico e influente. Beatriz era uma colega de arquitetura, talentosa mas pobre, lutando para pagar o tratamento contínuo do irmão mais novo, Tiago.
Afonso viu uma oportunidade. Propôs-lhe um acordo: ele cobriria todas as despesas médicas de Tiago. Em troca, Beatriz seria sua namorada, viveria com ele, cumpriria as suas exigências. Até ele se cansar.
Beatriz, desesperada, aceitou. Ele "comprou-a", movido por um desejo de posse que confundia com afeto.
Durante cinco anos, a relação transacional persistiu. Afonso pagava, Beatriz cumpria. Ele, no entanto, alimentava a esperança secreta de que, um dia, ela o amaria de verdade.
Até que, há poucas semanas, um acidente trivial – uma queda, uma pancada na cabeça – mudou tudo.
Quando acordou, não era apenas Afonso Alencar. Era Afonso Alencar, o "personagem coadjuvante vilão" numa história. Uma história onde Beatriz era a heroína e Rui Costa, o seu amigo de infância, o herói predestinado.
A trama era clara: Beatriz, após o sucesso de um grande projeto de arquitetura, deixá-lo-ia. As suas tentativas desesperadas e possessivas de a reconquistar, de prejudicar Rui, levariam-no a uma morte trágica e solitária.
O medo gelou-o. A premonição era demasiado real, demasiado detalhada.
Lutou contra isso, tentou ignorar. Mas a narrativa parecia puxá-lo, cada interação com Beatriz, cada olhar trocado com Rui, confirmava o seu papel.
Finalmente, exausto e desesperado, tomou uma decisão drástica: simular a própria morte. Se não podia mudar a história, talvez pudesse escapar dela. E escapar de Beatriz.