Afonso passou a noite em claro. O quarto estava escuro, silencioso. Beatriz não tinha voltado, o que não era surpreendente. Provavelmente estava com Rui, seguindo o guião que ele agora conhecia tão bem.
Levantou-se ao amanhecer, a decisão firme.
Reuniu os empregados da casa na sala de estar. Eram poucos, discretos, eficientes.
"Estão todos dispensados," anunciou, a voz sem emoção. "Receberão uma generosa indemnização."
Houve um murmúrio de surpresa, mas ninguém questionou. Estavam habituados às suas excentricidades.
Depois, chamou João, o seu motorista e homem de confiança. Entregou-lhe uma carta selada.
"Entrega isto aos meus pais," disse. "Apenas a eles, em mãos. E só depois de... depois de ouvires as notícias."
João olhou para ele, preocupado. "Senhor Afonso, está tudo bem?"
Afonso forçou um sorriso. "Tudo ficará bem, João. A carta explica tudo."
A carta detalhava o seu plano de simular a morte, a sua intenção de recomeçar noutro país, sob uma nova identidade. Pedia-lhes que não o procurassem, que compreendessem.
Não podia levá-los consigo. Eram demasiado idosos para uma mudança tão drástica, para uma vida de subterfúgios. E a sua revelação sobre ser uma personagem numa história soaria a loucura. Se Beatriz suspeitasse que os seus pais sabiam de algo, poderia investigar, e o seu plano ruiria. Era um sacrifício necessário.
Mais tarde, nesse dia, Afonso foi ao hospital. Não para ver Tiago, embora o fizesse regularmente. Desta vez, ia visitar a avó de Beatriz. Mas a avó, uma senhora idosa e frágil, existia, e Afonso tinha desenvolvido um afeto genuíno por ela ao longo dos anos. Beatriz raramente a visitava, a relação tensa e os estudos consumiam-na.
Encontrou-a no pequeno quarto, a olhar pela janela.
"Afonso, meu querido!" disse ela, os olhos a brilharem. "Que surpresa boa."
Ele sentou-se ao lado dela, segurando-lhe a mão enrugada.
"Então, quando é que tu e a Beatriz me dão a notícia do casamento?" perguntou ela, com um piscar de olho.
Afonso sentiu uma pontada de amargura. Casamento. Impossível.
"Ainda é cedo, Avó Matilde," respondeu, tentando manter a voz leve.
Matilde suspirou. "Ela é uma boa rapariga, Afonso. Só é um bocado cabeça dura. Aquela história de vocês terem começado por causa do dinheiro para o Tiago... isso magoa uma mulher. Mas ela gosta de ti, tenho a certeza."
Afonso sorriu tristemente. Se ao menos fosse verdade.
Antes de sair, entregou um pequeno envelope à enfermeira-chefe, uma conhecida da família de Beatriz. Dentro, um cartão bancário com uma quantia significativa.
"Para a Dona Matilde, para as suas despesas," disse ele. "E isto," acrescentou, entregando outro envelope, mais grosso, "é para a Beatriz. Entregue-lhe no momento certo. Quando... quando eu já não estiver por cá."
A enfermeira olhou-o, confusa, mas acenou. O envelope para Beatriz continha dinheiro, suficiente para o futuro de Tiago e para o seu projeto de arquitetura. Uma última tentativa de compensação, talvez de gerar alguma boa vontade.
A avó Matilde percebeu a sua melancolia. "Estás zangado com a Beatriz, Afonso?"
Ele abanou a cabeça. "Não, Avó. Vou fazer uma viagem longa. Para um sítio distante."
Estava prestes a tentar explicar mais, a despedir-se adequadamente, quando a porta do quarto se abriu.
Beatriz entrou. E não vinha sozinha.