"Sofia, sentimos muito pelo discurso," começou Tiago, o tom sério. "Não sabíamos de nada."
Miguel acrescentou: "A Beatriz ficou tão surpreendida quanto nós. Ela até queria recusar."
Mentira. Recordava-me de conversas ouvidas ao acaso na vida anterior, de como Beatriz se gabava de conseguir tudo o que queria deles.
"Não tem importância," respondi, a voz monocórdica. "A Beatriz vai fazer um ótimo trabalho."
Eles pareceram aliviados. Idiotas.
A noite da declaração chegou. Exatamente como da última vez.
O miradouro com vista para o Tejo. Flores. Velas. Um cenário pateticamente romântico.
Tiago e Miguel, nervosos, preparavam-se para o discurso ensaiado.
"Sofia," começou Tiago, "nós..."
O telemóvel de Miguel apitou. Uma mensagem no grupo de WhatsApp dos quatro.
Uma foto. Um cano rebentado. A casa de Beatriz inundada.
"Oh, meu Deus! A Bia precisa de nós!" exclamou Miguel, já a levantar-se.
Tiago nem hesitou. "Temos de ir!"
Abandonaram-me ali, no meio das flores e das velas, sem um olhar para trás.
Exatamente como da última vez.
Na vida passada, esperei. Chorei. Senti-me humilhada.
Desta vez, levantei-me com calma.
Peguei nos ramos de flores que tinham deixado para trás. Eram bonitos, mas falsos, como os sentimentos deles.
Caminhei até ao contentor de lixo mais próximo e atirei-os lá para dentro.
Os presentes, pequenas caixas de joalharia, tiveram o mesmo destino.
Voltei para casa.
Bloqueei os números de Tiago, Miguel e Beatriz.
Fiz uma pequena mala.
No dia seguinte, parti. Costa Alentejana e Vicentina. Um mês.
Precisava de tempo para solidificar os meus planos, para me afastar do fedor da traição deles.
O mar, o sol, a solidão. Eram os meus únicos companheiros.
Refleti sobre cada detalhe da minha vida passada, cada armadilha, cada mentira.
A ingenuidade morrera. A nova Sofia era astuta, fria, implacável.
Quando regressei, um mês depois, bronzeada e com uma nova resolução nos olhos, encontrei Tiago e Miguel à porta de casa.
A preocupação nos rostos deles parecia genuína.
"Sofia! Onde te meteste?" Tiago agarrou-me os braços. "Ficámos tão preocupados!"
Miguel ecoou: "Ligámos tantas vezes! Pensámos que te tinha acontecido alguma coisa!"
Na vida anterior, esta demonstração de preocupação ter-me-ia derretido. Teria acreditado.
Desta vez, senti apenas repulsa.
Afastei-me do toque de Tiago.
"Estive a viajar. Precisava de espaço."
A festa de finalistas foi na praia da Caparica. Outra recordação dolorosa.
Beatriz, como sempre, não perdeu a oportunidade de me provocar.
Estávamos perto da água, a conversar trivialidades.
"Sabes, Sofia," disse ela, a voz melosa, "o Tiago e o Miguel estavam tão preocupados contigo. És mesmo importante para eles."
Um sorriso frio brincou nos meus lábios. "A sério?"
De repente, Beatriz tropeçou, ou fingiu tropeçar, e caiu na água, gritando.
"Socorro! A corrente está a levar-me!"
No mesmo instante, uma onda mais forte atingiu-me, desequilibrando-me. Caí também.
Tiago e Miguel, que estavam perto, não hesitaram.
Correram para Beatriz.
Ignoraram-me completamente.
A água fria envolveu-me. Por um momento, o pânico da vida passada ameaçou regressar.
Mas um surfista local, que observava a cena, nadou rapidamente na minha direção e ajudou-me a sair.
Tiago e Miguel só se aperceberam da minha situação quando já estava em terra firme, a tossir água, amparada pelo surfista.
A preocupação nos rostos deles era, mais uma vez, direcionada a Beatriz, que se agarrava a eles, a tremer dramaticamente.
Lembrei-me de uma conversa que tive com eles na minha vida anterior, depois de um episódio semelhante.
"Sofia, desculpa," dissera Tiago, "mas a Bia parecia estar em maior perigo."
"Sim," concordara Miguel, "ela é mais frágil."
Frágil? Beatriz era uma predadora disfarçada de ovelha.
Desta vez, não disse nada. Apenas os observei com um olhar gelado que pareceu desconcertá-los.
O surfista perguntou se eu estava bem. Agradeci-lhe.
A máscara de "melhores amigos preocupados" de Tiago e Miguel estava a rachar, revelando a verdade feia por baixo.