Aquele cheiro.
Era um eco doloroso do passado.
Clara encolheu-se no canto do armazém.
Lágrimas silenciosas escorriam pelo rosto sujo.
Lembrou-se da escola, dos olhares de desprezo, das risadas cruéis.
"Olha a mudinha fedorenta!"
"Filha de camponês pobre!"
As palavras, mesmo antigas, ainda doíam.
Ela era apenas uma criança, tentando entender por que sua origem simples era motivo de tanta zombaria.
Seu pai, um homem bom e trabalhador, ensinara-lhe o valor da terra, o respeito pela natureza.
Mas o mundo fora da sua pequena casa era cruel.
E agora, Ricardo, o homem que jurou amá-la, usava suas feridas mais profundas para torturá-la.
Um flashback invadiu sua mente.
O início do casamento.
Ricardo parecia diferente.
Ele a cobria de presentes caros, levava-a para jantares em restaurantes luxuosos.
Dizia que a beleza dela era "pura", "intocada".
Ele parecia fascinado por sua mudez, como se fosse um mistério exótico.
"Você não precisa de palavras, Clara," ele sussurrava, acariciando seu cabelo. "Seus olhos dizem tudo."
Ele a levou para conhecer o mar, algo que ela só via em fotografias.
Correram pela areia, Ricardo a segurando pela mão, rindo.
Naquela época, ela acreditou.
Acreditou que ele a amava de verdade.
Acreditou que tinha encontrado um porto seguro.
Que ironia.
O homem que prometera protegê-la era agora seu carcereiro, seu torturador.
As promessas doces transformaram-se em ordens ásperas.
Os carinhos, em agressões veladas.
Clara limpou as lágrimas com as costas da mão.
Um brilho de desafio surgiu em seus olhos.
Ela não era mais a menina assustada do passado.
A dor a fortalecera.
Usando a linguagem de sinais, ela "falou" para as paredes do armazém.
"Você não vai me quebrar, Ricardo."
Sua postura, antes curvada pela tristeza, endireitou-se.
Enquanto isso, Verônica continuava seu jogo.
Apareceu na fazenda, fingindo fragilidade.
"Ricardo, querido, foi horrível," ela choramingou, agarrando-se ao braço dele. "Aquele lugar... o cheiro... acho que foi Clara quem armou tudo isso para mim."
Ricardo, sempre pronto a acreditar na amante, olhou para o armazém com fúria.
"Aquela desgraçada vai me pagar," ele rosnou.
Ele não se importou em verificar a história de Verônica.
A palavra dela bastava.
Clara ouviu os passos pesados de Ricardo se aproximando.
A porta do armazém se abriu com um rangido.
A luz do sol a cegou por um instante.
Ricardo a arrastou para fora, sem gentileza.
O cheiro de fertilizante ainda impregnava suas roupas, sua pele.
Ela sentiu o estômago revirar novamente.
Tremores percorreram seu corpo, mas ela manteve o olhar firme.