Anos mais tarde, foi a vez dela. Um acidente de carro numa estrada sinuosa perto de Sintra. Cheguei ao hospital e ela já estava a ir-se. Os seus olhos, que eu amava desde que éramos crianças a correr pelas vinhas, estavam turvos de dor.
Ela agarrou a minha mão, uma força surpreendente no seu corpo frágil.
"Diogo," a sua voz era um sussurro. "Se eu tivesse um último desejo... seria nunca me ter casado contigo. Assim... eu e o Lucas poderíamos ter sido felizes."
Essas foram as suas últimas palavras.
O meu mundo acabou ali. Vivi o resto dos meus dias como um fantasma, assombrado pela sua memória e pelo seu ódio.
Agora, velho e doente, estou no Cabo da Roca. O ponto mais ocidental da Europa, onde a terra acaba e o mar começa. O vento chicoteia o meu rosto, frio como o túmulo que me espera.
Fecho os olhos e faço um desejo desesperado, um grito silencioso para qualquer deus que possa ouvir.
"Dêem-me uma segunda oportunidade. Não para mim. Para ela. Deixem-me fazê-la feliz."
Uma escuridão engole-me.
Depois, luz.
Abro os olhos. Não estou no penhasco ventoso, mas num quarto luxuoso. O cheiro a lírios e a champanhe barato enche o ar. Reconheço o quarto. É a suíte nupcial do hotel Ritz, em Lisboa.
A noite do meu casamento com a Sofia.
Olho para as minhas mãos. São jovens. Fortes. O meu corpo não dói.
Olho para a cama. Sofia está lá, deitada de costas, o seu vestido de noiva amarrotado debaixo dela. Está bêbada, a murmurar no seu sono.
"Lucas... Lucas, não me deixes..."
A dor é tão aguda e familiar que quase me sufoca. É real. Estou de volta.
Uma missão clara forma-se na minha mente, uma condição para esta segunda vida. Tenho de cumprir os três desejos não ditos dela, os três maiores arrependimentos que a atormentaram na nossa primeira vida.
Primeiro: anular este casamento.
Segundo: desafiar a vontade do pai dela, que a forçou a casar comigo.
Terceiro: garantir a felicidade de Lucas.
O amor dela por ele era uma ilusão, uma confusão de proteção e dever que ele manipulou. Eu via isso. Mas ela não. Naquela vida, a sua cegueira levou-os a todos à ruína.
Nesta vida, vou dar-lhe o que ela pensa que quer. Vou libertá-la. Mesmo que isso signifique a minha própria solidão eterna.
Ela agita-se, ainda a chamar por ele.
"Lucas, por favor... diz que me amas."
Uma ideia fria e terrível toma forma. Puxo de uma caneta e dos papéis do divórcio que o meu advogado preparou como uma contingência desesperada na altura. Ajoelho-me ao lado da cama.
Aproximo a minha boca do seu ouvido e, com a voz mais suave e manipuladora que consigo, imito a voz de Lucas.
"Sofia, meu amor. Claro que te amo. Mas ele está no nosso caminho. Assina isto. Prova que és só minha. Mostra que este casamento não significa nada."
Os olhos dela abrem-se ligeiramente, sem me verem de verdade. Ela sorri, um sorriso bêbado e feliz.
"Qualquer coisa por ti, Lucas."
Ela pega na caneta e rabisca a sua assinatura no papel. Depois, adormece novamente, com um sorriso nos lábios.
Guardo os papéis. O meu coração está a ser esmagado. Mas a minha decisão está tomada.
Nesta vida, Sofia Carvalho, tu serás feliz.