Quando o Amor Vira Pesadelo: A Ascensão de Sofia
img img Quando o Amor Vira Pesadelo: A Ascensão de Sofia img Capítulo 1
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Capítulo 1

Sofia Almeida preparou a mesa com esmero.

Velas acesas, pétalas de rosa espalhadas, o aroma do seu assado favorito a pairar no ar.

Cinco anos de casada com Miguel Valente.

Cinco anos que, até há pouco tempo, ela considerava os mais felizes da sua vida.

Miguel, o arquiteto de sucesso, o romântico incurável.

O homem que lhe escrevera noventa e nove cartas de amor.

Cartas que ela guardava como um tesouro, num cofre de sândalo.

Sofia sorriu, ajeitando o vestido elegante.

Miguel devia estar a chegar.

Ele prometera uma noite especial.

As horas passaram.

O assado esfriou.

As velas diminuíram.

Sofia ligou para Miguel.

Caixa de correio.

Ligou outra vez.

E outra.

A preocupação transformou-se em ansiedade, depois numa pontada fria de mau pressentimento.

Finalmente, perto da meia-noite, a chave rodou na fechadura.

Miguel entrou, o cabelo desalinhado, os olhos brilhantes de uma forma estranha.

Não trazia flores, nem o sorriso culpado por se atrasar.

"Miguel? O que aconteceu? Fiquei tão preocupada."

Ele olhou para a mesa de jantar, para Sofia, como se fossem peças de uma mobília desconhecida.

"Ah, Sofia. Desculpa. Perdi a noção do tempo."

"Perdeste a noção do tempo? No nosso aniversário?"

A voz dela tremeu.

Miguel passou por ela, indiferente.

"Estava com a Beatriz. A nova estagiária. Tivemos um contratempo no projeto."

Beatriz.

Um nome novo, dito com uma familiaridade que gelou Sofia.

"Um contratempo que durou a noite toda?"

"Ela é fascinante, Sofia. Tão... pura. Recusou um presente caro que lhe ofereci hoje. Disse que 'não se vende'. Imaginas?"

A voz dele era sonhadora.

Sofia sentiu o chão a fugir-lhe dos pés.

Ele não falava dela, da esposa. Falava de outra mulher.

No seu aniversário de casamento.

Nos dias que se seguiram, Beatriz tornou-se uma presença constante nas palavras de Miguel.

E a ausência dele, uma constante na vida de Sofia.

Uma noite, remexendo em memórias antigas em busca de consolo, Sofia encontrou o cofre de sândalo.

Abriu-o.

As noventa e nove cartas de amor.

A caligrafia apaixonada de Miguel, as promessas de uma vida inteira.

Uma dor lancinante atravessou-a.

E com a dor, uma decisão fria.

Pegou numa das cartas, a primeira que ele lhe escrevera.

"Se o meu amor fosse um oceano," lia-se, "tu serias a única ilha onde eu naufragaria feliz."

As lágrimas de Sofia caíram sobre o papel amarelado.

Ela acendeu um fósforo.

A chama consumiu a promessa.

"Uma carta por cada vez que me magoares profundamente por causa dela," sussurrou para as cinzas.

"Quando a última carta queimar, será o fim."

A primeira carta não demorou a ser acompanhada.

Miguel tinha um jantar importante com os sócios, um evento que Sofia organizara na galeria dela.

Ele confirmara presença.

Sofia esperou. Os convidados chegaram. Miguel não.

Mais tarde, uma amiga enviou-lhe uma foto.

Miguel, sorridente, numa esplanada no Chiado.

Ao lado dele, Beatriz Costa, a estudante de arquitetura, a estagiária.

Ele esperava-a à saída do part-time dela.

Sofia foi para casa, abriu o cofre.

Outra carta, palavras de devoção transformadas em fumo e dor.

Era a primeira das noventa e nove a ser queimada pela sua ausência num evento crucial, mas representava a primeira grande humilhação pública, a primeira vez que ele a trocava abertamente.

Os meses seguintes foram um borrão de pequenas e grandes traições.

Sofia sentia-se a definhar, a sua galeria, o seu refúgio, parecia agora um mausoléu da sua felicidade perdida.

Chegou o convite para o leilão de beneficência anual no Casino Estoril.

Sofia tinha um motivo especial para ir.

O colar de filigrana da sua mãe.

Uma herança de família, vendido em tempos difíceis.

Ela finalmente o localizara. Estava naquele leilão.

Juntara todas as suas economias. Ia recuperá-lo.

Na noite do leilão, Sofia sentia um misto de nervosismo e esperança.

Miguel acompanhou-a, surpreendentemente.

Mas a sua atenção estava noutro lado.

Beatriz Costa estava lá, a trabalhar como rececionista, linda na sua simplicidade estudada.

Quando o colar foi anunciado, Sofia levantou a mão.

Outra pessoa licitou.

A disputa começou. Sofia estava determinada.

De repente, a voz de Miguel soou, alta e clara, superando a oferta dela.

Sofia olhou para ele, confusa.

Ele continuou a licitar, o preço a subir exorbitantemente.

Até que o martelo bateu.

"Vendido ao senhor Miguel Valente!"

Miguel sorriu, vitorioso, e caminhou até à frente.

Pegou no colar, a delicada filigrana a brilhar sob as luzes.

Sofia pensou, por um momento fugaz, que ele o comprara para ela.

Um gesto de redenção.

Mas Miguel virou-se para Beatriz, que observava tudo com uns grandes olhos inocentes.

"Beatriz," disse ele, a voz a transbordar de emoção. "Isto é para si. Admiro a sua integridade. Sei que não aceita presentes caros, mas isto é do coração."

O salão ficou em silêncio.

Todos os olhares em Beatriz, depois em Sofia, humilhada, petrificada.

Beatriz corou, mas a sua voz foi firme.

"Senhor Valente, agradeço o gesto, mas não posso aceitar. É demasiado."

Ela recusou com uma altivez que parecia ensaiada.

O rosto de Miguel crispou-se de frustração.

Ele queria impressioná-la, possuí-la através daquele gesto.

A recusa dela, em público, feriu o seu orgulho.

Num impulso de raiva e despeito, Miguel virou-se, caminhou até à varanda do casino que dava para o mar.

E, perante o olhar chocado de todos, atirou o colar de filigrana às águas escuras da baía de Cascais.

"Se não é para ti, não é para ninguém!" gritou ele.

Sofia soltou um gemido.

O colar da sua mãe.

A sua última ligação física a ela.

Sem pensar, correu para a varanda.

Ignorou os gritos, o frio da noite.

Atirou-se à água gelada.

O choque tirou-lhe o fôlego, mas a imagem do colar a afundar-se impulsionou-a.

Mergulhou, desesperada, as mãos a tactear na escuridão lamacenta.

Alguém a puxou para fora.

Tremia incontrolavelmente, não de frio, mas de dor e raiva.

O colar tinha-se perdido.

Miguel não a ajudou. Estava a consolar Beatriz, que parecia "abalada" com o drama.

Noventa e cinco.

Esse era o número da carta que arderia essa noite.

Noventa e cinco punhaladas no seu coração.

Enrolada numa manta que alguém lhe arranjou, Sofia tremia.

As palavras de Miguel, ditas anos antes, ecoavam na sua mente.

"Prometo amar-te e proteger-te, em todas as tempestades da vida."

Uma tempestade. Era isso que a sua vida se tornara.

E ele era o olho do furacão, a destruir tudo à sua volta.

No dia seguinte, as redes sociais fervilhavam.

Fotos dela, encharcada e desesperada.

Comentários cruéis, alguns de pena, outros a ridicularizá-la.

"A curadora desesperada."

"O que uma mulher não faz por uma joia... ou por um homem?"

Miguel não a defendeu.

Ele estava demasiado ocupado a cultivar a imagem de Beatriz como a jovem íntegra e desinteressada, vítima da sua paixão avassaladora.

Sofia lembrava-se de como Miguel a cortejara.

Com a mesma intensidade, a mesma obsessão que agora dedicava a Beatriz.

Ele cercara-a de atenções, de presentes, de promessas.

Na altura, parecera-lhe romântico.

Agora, via o padrão.

A diferença? Sofia cedera ao amor dele.

Beatriz, com a sua "resistência", a sua "pureza", alimentava o ego de caçador de Miguel.

Ela era o troféu mais difícil.

E Sofia, a esposa, tornara-se um obstáculo, um fardo.

Uma noite, ele chegou a casa tarde, cheirando ao perfume barato de Beatriz.

Sofia confrontou-o, a voz embargada.

"Miguel, o que se passa connosco? O que te fiz?"

Ele suspirou, impaciente.

"Sofia, não compliques as coisas. Eu preciso de espaço. Preciso de... liberdade."

"Liberdade? Liberdade para quê? Para me destruíres?"

"Não sejas dramática. Eu ainda gosto de ti. Mas a Beatriz... ela é diferente."

Gostar.

Ele costumava amá-la.

As cartas eram a prova.

Ou talvez fossem apenas palavras vazias, como as que ele dizia agora.

Sofia olhou para o cofre de sândalo.

Restavam poucas cartas.

Cada uma representava uma lasca da sua alma.

A contagem decrescente para o fim.

Ou para a sua libertação.

Ela já não sabia qual dos dois desejava mais.

Mas sabia que não podia continuar assim.

O limite estava próximo.

Algumas semanas depois, Sofia descia as escadas da sua moradia no Restelo.

Sentia-se fraca, febril. Uma gripe apanhara-a.

Miguel apareceu de repente no topo da escada.

O olhar dele era frio, calculista.

"Precisamos de conversar," disse ele.

Mas não houve conversa.

Ele deu um passo, um empurrão subtil, quase impercetível.

Sofia perdeu o equilíbrio.

Caiu pelas escadas, um grito de dor a escapar-lhe.

O tornozelo. Sentiu uma dor excruciante.

Miguel desceu as escadas a correr, não para a ajudar, mas com um brilho estranho nos olhos.

"Oh, meu Deus, Sofia! Estás bem?"

A preocupação dele soava falsa, ensaiada.

Enquanto ela gemia de dor no chão, ele pegou no telemóvel.

"Vou ligar à Beatriz. Ela está a estudar enfermagem, pode ajudar. E assim pode mudar-se para cá para cuidar de ti. Eu não consigo dar conta de tudo sozinho."

A armadilha estava montada.

A dor no tornozelo de Sofia era real.

Mas a dor da traição de Miguel era infinitamente maior.

Ele empurrara-a.

Para trazer a amante para dentro da sua casa.

Para dentro da sua vida.

Como sua "cuidadora".

O horror da situação paralisou Sofia.

Mais uma carta.

Ou talvez todas as que restavam.

Porque aquilo não era apenas uma mágoa.

Era o inferno.

            
            

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