Proteger Beatriz, mesmo que isso significasse pôr a vida de Sofia em risco.
A raiva subiu-lhe pela garganta, amarga como o veneno que quase a matara.
Miguel entrou no quarto, o rosto uma máscara de preocupação forçada.
"Sofia! Graças a Deus, acordaste! Que susto nos pregaste!"
"Susto?" A voz dela era rouca. "Tu deixaste-me ali, Miguel. Quase morri."
"Não exageres, Sofia. Foi só uma reação alérgica forte. A Beatriz trocou os comprimidos, coitada. Está arrasada."
Minimizando. Como sempre.
A culpa nunca era dele, nem da sua protegida.
"Ela deu-me algo que me fez mal de propósito, Miguel."
"Não digas isso. A Beatriz nunca faria tal coisa. Ela adora-te."
Adora-a?
Sofia quis rir, mas a dor no peito era demasiado forte.
Lembrou-se de uma vez, anos antes, quando tivera uma intoxicação alimentar.
Miguel não saíra do seu lado.
Segurara-lhe a mão, trouxera-lhe canjas, lera para ela.
Aquele Miguel desaparecera.
Em seu lugar, estava um estranho, um homem cruel e indiferente.
Um homem que escolhera outra.
Ele não ficou muito tempo.
"Tenho de ir ver a Beatriz. Ela está muito nervosa."
Abandonou-a. De novo.
No hospital, sozinha, enquanto ia consolar a mulher que a envenenara.
Nos dias seguintes, viu fotos nas redes sociais.
Miguel e Beatriz em jantares românticos.
Miguel e Beatriz a passear de mão dada no parque onde ele a pedira em casamento.
Cada imagem, uma nova facada.
Ele nem sequer tentava disfarçar.
Estava a exibir o seu novo amor, a esfregar a traição na cara de Sofia e do mundo.
Chegou o dia da missa de aniversário da morte da mãe de Sofia.
Uma data sagrada para ela.
Miguel apareceu no hospital de manhã.
"Vou levar-te ao cemitério," disse ele.
Um pingo de esperança acendeu-se em Sofia.
Talvez ele se lembrasse. Talvez ainda houvesse um resquício de decência nele.
A esperança morreu quando viu Beatriz à espera no carro.
"A Beatriz quis vir dar apoio," disse Miguel, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Apoio? A presença dela era uma profanação.
No Cemitério dos Prazeres, o ar era pesado, solene.
Sofia caminhava devagar, apoiada na muleta, o coração apertado.
Levava um ramo de lírios brancos, as flores favoritas da sua mãe.
Beatriz seguia-os, de cabeça baixa, a fingir respeito.
Ao chegarem à campa da mãe de Sofia, Beatriz "tropeçou".
Desequilibrou-se, esbarrou em Sofia.
Os lírios caíram da mão de Sofia, espalhando-se pela lama da chuva da noite anterior.
"Oh, meu Deus! Desculpe, Sofia! Que desastrada!"
Beatriz parecia genuinamente aflita.
Mas Sofia viu o brilho fugaz de satisfação nos seus olhos antes que ela baixasse a cabeça novamente.
Miguel reagiu imediatamente.
"Sofia! Tem mais atenção por onde andas! Quase fazias a Beatriz cair! Pede desculpa!"
Pedir desculpa?
Por ter as suas flores profanadas?
Por ter a memória da sua mãe insultada?
"Miguel, ela derrubou as flores de propósito!"
"Não sejas paranoica! Foi um acidente! Pede desculpa à Beatriz, agora!"
A voz dele era dura, ameaçadora.
Ali, em frente ao túmulo da sua mãe.
A humilhação final.
Sofia olhou para a lama, para as pétalas brancas manchadas.
Sentiu algo a quebrar dentro dela.
Não, ela não ia pedir desculpa.
Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Beatriz ajoelhou-se, a começar a apanhar as flores sujas.
"Não faz mal, Sofia. Eu limpo."
Miguel puxou-a para cima.
"Deixa estar, Bea. Ela não merece a tua bondade."
Virou-se para Sofia, os olhos a faiscar.
"Tu és inacreditável."
Agarrou no braço de Beatriz e afastou-se, deixando Sofia sozinha com as flores na lama e o coração em pedaços.
Ele não olhou para trás.
Sofia ficou ali, a tremer.
Ajoelhou-se, as lágrimas a misturarem-se com a chuva fina que começara a cair.
Tentou limpar as flores, mas estavam arruinadas.
Como a sua vida.
Como o seu casamento.
Pegou numa das pétalas sujas.
Mais uma carta para queimar.
Mas quantas mais seriam precisas até que não restasse nada dela?
Enquanto estava ali, de rastos, o seu telemóvel tocou.
Um número desconhecido.
Atendeu, a voz embargada.
"Sofia Almeida?"
"Sim."
"Tenho más notícias sobre a campa da sua mãe. Devido aos recentes deslizamentos de terra na encosta do cemitério, várias sepulturas, incluindo a dela, terão de ser realojadas urgentemente. Precisamos que venha tratar da exumação e da transladação dos restos mortais."
O mundo de Sofia girou.
Até em morte, a sua mãe não tinha paz.
E ela, que mal se aguentava em pé, teria de tratar de tudo.
Sozinha.