"O tornozelo está melhor. E a Beatriz precisa de se distrair um pouco. Tem estado tão stressada a cuidar de ti."
A desculpa era sempre Beatriz.
Sofia era um fardo. Beatriz, a vítima que precisava de cuidados e distrações.
"Eu não me sinto bem para ir a uma festa."
"Não te estou a pedir, Sofia. Estou a dizer-te. Temos de manter as aparências. E a Beatriz vai connosco."
Manter as aparências.
A fachada de um casamento feliz.
Que piada cruel.
Sofia sentou-se em frente ao espelho, a maquilhagem a tentar esconder as olheiras e a tristeza.
"Porque é que ainda me queres por perto nestes eventos, Miguel? Para me humilhares publicamente?"
Ele estava a dar um nó na gravata, o olhar fixo no espelho, mas não nela.
"Tu és minha esposa, Sofia. É o teu papel. E quanto à Beatriz... bem, as pessoas precisam de ver que eu não a estou a esconder. Que não há nada de errado."
Nada de errado.
Apenas um marido a destruir a esposa por causa de uma amante que ele instalara em casa.
Sofia sentiu um vazio gelado no peito.
Ele não via, ou não queria ver, o mal que lhe estava a fazer.
Na festa, a atmosfera era tensa.
Os olhares curiosos, os sussurros disfarçados.
Sofia sentou-se num canto, tentando ser invisível.
Miguel exibia Beatriz, apresentando-a a todos com um orgulho paternal, ou talvez algo mais.
Beatriz aproximou-se de Sofia com um copo na mão.
"Sofia, parece pálida. Beba isto. São uns comprimidos para a alergia. Talvez o pó da casa do Ricardo a esteja a afetar."
Sofia olhou para o copo, para o líquido efervescente.
"Não me lembro de ter alergias."
"Oh, é só uma precaução. Para se sentir melhor."
Beatriz sorria, mas os seus olhos eram frios.
Miguel aproximou-se.
"Bebe, Sofia. A Beatriz só quer ajudar."
Coagida, Sofia bebeu.
O líquido tinha um sabor estranho, amargo.
Pouco tempo depois, a cabeça de Sofia começou a andar à roda.
Uma sonolência avassaladora tomou conta dela.
As luzes da festa pareciam distantes, as vozes abafadas.
Procurou Miguel com o olhar.
Ele estava na pista de dança.
A dançar com Beatriz.
Riam, os corpos próximos, alheios a tudo.
Sofia tentou levantar-se, mas as pernas fraquejaram.
"Miguel..." chamou, a voz fraca.
Ele não ouviu.
Ou não quis ouvir.
As amigas de Beatriz, outras estagiárias e jovens arquitetas, rodeavam Miguel e Beatriz.
Incentivavam Beatriz a "testar" a devoção de Miguel.
"Beatriz, pede-lhe aquele relógio caro que viste na montra!"
Miguel ria, encantado.
"O que a minha Bea quiser!"
Ele prometia mundos e fundos, jóias, viagens.
Tudo o que Sofia um dia sonhara, e que ele agora oferecia a outra, publicamente.
Alguém sugeriu um jogo.
"Verdade ou consequência!"
As perguntas eram dirigidas a Miguel e Beatriz, sempre com um toque malicioso, forçando uma intimidade que feria Sofia profundamente.
"Miguel, é verdade que achas a Beatriz a mulher mais bonita da sala?"
Ele olhava para Beatriz com adoração. "A mais bonita do mundo."
Beatriz corava, encantada com a atenção.
Sofia sentia o corpo a arder.
A pele picava, a garganta fechava-se.
Não era sono. Era algo pior.
Uma reação alérgica?
Ou...
Lembrou-se do copo que Beatriz lhe dera.
Os "comprimidos para a alergia".
Tinha sido envenenada?
A ideia era monstruosa, mas...
Olhou para Beatriz, que agora sussurrava algo ao ouvido de Miguel.
Ele ria, abraçando-a pela cintura.
"Miguel! Ajuda-me!" gritou Sofia, o pânico a tomar conta dela.
Ele olhou na direção dela, irritado pela interrupção.
Viu-a pálida, a suar frio.
Mas Beatriz puxou-o de volta.
"Ela só quer estragar a nossa noite, Miguel. Não ligues."
Ele hesitou por um momento.
Depois, deu de ombros e voltou a dar atenção a Beatriz.
Deixou Sofia sozinha, a lutar por ar.
O mundo de Sofia escureceu.
As pernas cederam.
Caiu no chão, o som do seu corpo a embater no mármore a ecoar pela sala.
Um grito coletivo.
Finalmente, a música parou.
Finalmente, todos olharam para ela.
A última coisa que viu, antes de perder a consciência, foi o rosto de Miguel, pálido de choque.
Ou seria culpa?