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Paris, 1824
O
vento frio serpenteava pelas frestas das janelas, fazendo as velas trêmulas dançarem na penumbra do quarto. A madeira rangia sob a força da brisa cortante, como se murmurava os segredos do tempo.
Meu destino estava selado. Meu pai tomou sua decisão sem sequer me consultar, e agora restava-me apenas aguardar o dia em que seria entregue como um bem de família.
O nó na garganta apertava mais a cada minuto.
Sentada diante do espelho dourado, passei os dedos trêmulos pela moldura ornamentada. O ouro desbotado testemunhava os anos, mas eu sabia que aquele objeto guardava mais do que a passagem do tempo.
Minha tia desaparecera há quase uma década, misteriosamente, sem deixar rastros. Ela tinha apenas quatorze anos quando sumiu. E este espelho... foi a única coisa dela que consegui manter comigo.
O que se esconde atrás desse vidro? Sempre tive essa sensação inquietante de que este espelho guardava segredos. Poderia ele ser... mágico?
Balancei a cabeça, espantando os pensamentos absurdos.
- Ah, não seja tola, Fanny - murmurei para mim mesma. - Não há magia no mundo que possa mudar o que está por vir.
Edith se mexeu na cama ao lado, e prendi a respiração, controlando as lágrimas. Eu não podia chorar. Se ela acordasse, faria perguntas.
Mas então...
O espelho brilhou.
Meus olhos se arregalaram.
A superfície do vidro tremeu, como água perturbada pelo toque invisível de uma pedra. Meu coração disparou, e recuei, levando a mão ao peito.
- O que está acontecendo? - sussurrei, incapaz de desviar o olhar.
E foi então que o vi.
Um homem.
Alto, de cabelos escuros e olhos de um azul hipnotizante. Vestia-se de forma estranha, sem colete, sem cartola... Seu traje era ajustado ao corpo de um jeito indecoroso para os padrões do meu tempo. E atrás dele...
O ambiente era diferente de tudo o que eu conhecia. Não havia velas ou lampiões. A luz... era pura, brilhante... artificial?
Ele me via também?
A surpresa em seus olhos me deu a resposta.
Ele deu um passo à frente, tocando o vidro. Meu corpo travou.
O espelho não deveria fazer isso!
E, ainda assim, ali estávamos.
Duas pessoas separadas por algo que não fazia sentido.
Deveria gritar. Deveria correr.
Mas, em vez disso...
Apenas sussurrei:
- Vous... êtes un sorcier? (Você... é um bruxo?)
O homem me encarou por um longo instante. E então...
Ele riu.
Meus olhos se estreitaram.
- Pourquoi riez-vous? (Por que ri?)
Ele sorriu mais, como se estivesse se divertindo às minhas custas.
- Parce que vous me parlez à travers un miroir et vous pensez que je suis un sorcier? (Porque você está falando comigo através de um espelho e acha que eu sou um bruxo?)
A audácia!
Minhas bochechas queimaram de indignação.
- O que mais você poderia ser? Este espelho jamais fez isso antes!
O sorriso dele diminuiu um pouco.
- Nem comigo.
Ficamos em silêncio.
Eu não sabia quem ele era.
Ele não sabia quem eu era.
Mas uma coisa era certa...
Esse encontro mudaria tudo.
Paris, XXI
Nunca acreditei no destino.
Até que ele me traiu da pior forma possível.
Dez anos de casamento jogados no lixo.
Voltei para casa mais cedo, esperando surpreender minha esposa. E a surpresa foi toda minha.
Ela e meu melhor amigo de infância, juntos. Na nossa cama.
O choque me atingiu como um soco no estômago, mas minha voz saiu fria, cortante:
- Há quanto tempo isso acontece?
Élodie puxou o lençol para cobrir o corpo, a expressão pálida.
- François... Não é o que você está pensando.
Soltei uma risada seca.
- Ah, não? Então me explique, Élodie. Porque, pelo que vejo, meu melhor amigo está nu na minha cama com a minha esposa.
Laurent ficou de pé, apressando-se em vestir a calça.
- Mon ami...
Levantei a mão, cortando qualquer tentativa de explicação.
- Não ouse me chamar assim.
Élodie agarrou o lençol com força, os olhos úmidos como se tivesse o direito de chorar.
- Foi um erro, François! Apenas um momento de fraqueza! Não significa nada!
Eu ri, um som baixo e sem humor.
- Não significa nada? Então você jogou dez anos de casamento fora por algo que não significa nada?
Ela avançou alguns passos, o olhar suplicante.
- Podemos conversar! Você não pode jogar tudo fora por um deslize!
Meus dentes rangeram, e dei um passo para trás, como se não quisesse que sequer sua sombra me tocasse.
- Ouça bem, Élodie. Eu não estou jogando nada fora. Você jogou. No momento em que abriu as pernas para ele.
Ela arfou, como se minhas palavras fossem cruéis demais.
Ótimo. Porque eu não sentia absolutamente nada além de desprezo.
- Quero o divórcio.
Ela arregalou os olhos.
- Não! François, não diga isso...
- Já disse. - Minha voz era um gelo cortante. - E não volto atrás.
Laurent tentou intervir:
- François, você está no calor do momento. Não faça nada precipitado...
Lancei um olhar letal para ele.
- Você traiu a única amizade que valia algo na sua vida. E agora quer me dar conselhos?
Apertei os punhos, sentindo meu sangue ferver.
- Você está demitido. A partir de agora, nunca mais quero ouvir seu nome, ver seu rosto ou sequer lembrar que um dia confiava em você.
Ele empalideceu.
- O quê?!
- Não está ouvindo bem? Está fora da minha empresa. Vou garantir que ninguém mais o contrate no setor.
A expressão dele passou de surpresa para puro pânico.
- François, não faça isso!
- Você fez isso. - Cruzei os braços, frio. - Agora aguente as consequências.
Laurent olhou para Élodie, como se esperasse alguma salvação dela. Mas ela mesma estava ocupada demais tentando me convencer.
- François, não podemos acabar assim! Você me ama, eu sei que ama!
Inclinei a cabeça, analisando-a como se estivesse vendo um completo estranho.
- Não. Eu amava a mulher que pensei que você fosse. Mas essa mulher... nunca existiu.
Ela balançou a cabeça, em negação.
- Você está agindo por impulso.
- Impulso? - Soltei uma risada vazia. - Não. Eu estou tendo a clareza que me faltou por dez anos.
Respirei fundo, sem desviar o olhar.
- Quando eu voltar, quero você fora deste apartamento.
Ela cruzou os braços, desafiadora.
- Você não pode me expulsar!
Sorri de lado, mas não havia humor em meu rosto.
- Você vai descobrir o que eu posso fazer.
Me virei, dando um último olhar para os dois.
- Aproveitem um ao outro. Afinal, agora só têm um ao outro.
E saí.
Caminhei sem rumo por horas, tentando processar a traição. O peso era sufocante, mas eu me recusava a me deixar afundar.
Meus pés me levaram ao Louvre.
O Louvre estava quase vazio àquela hora. Caminhei sem rumo pelos corredores silenciosos, ignorando as obras que normalmente prendiam minha atenção. Meu peito ainda estava pesado com o gosto amargo da traição, mas eu me recusava a permitir que aquilo me consumisse.
Eu estava destruído. Mas não derrotado.
Passei por esculturas, pinturas e tapeçarias até que meus olhos foram atraídos por algo... diferente.
Um espelho.
Grande, dourado, imponente.
Meu olhar se prendeu à moldura ornamentada, e um arrepio subiu por minha espinha. Havia algo errado ali.
Dei um passo à frente.
A superfície do vidro... tremulou.
Franzi o cenho.
Isso... isso não era normal.
Então eu vi.
Uma mulher.
Seu reflexo não era o meu.
Seus olhos arregalados, cheios de surpresa e desespero, me encaravam do outro lado do espelho.
Ela era linda. Vestia-se de maneira antiquada, como se tivesse saído de um romance de época. O tecido do vestido escuro contrastava com sua pele clara, e seus cabelos estavam presos em um coque impecável, mas alguns fios escapavam, dando a impressão de que ela havia corrido.
Mas o que mais me chamou atenção... foram seus olhos.
Havia medo neles.
E algo mais.
Algo que eu não conseguia decifrar.
Ela piscou, parecendo tão atordoada quanto eu.
E então, sua boca se abriu, e sua voz chegou até mim, através do impossível.
- Vous... êtes un sorcier? (Você... é um bruxo?)
Eu pisquei, confuso.
Um bruxo?
Foi isso que ela perguntou?
Foi isso que ela pensou ao me ver?
E, contra qualquer lógica, contra toda a seriedade da situação, uma risada escapou dos meus lábios.
Ela franziu o cenho, claramente ofendida.
- Pourquoi riez-vous? (Por que ri?)
Esfreguei o rosto, tentando conter o sorriso, mas falhando miseravelmente.
- Parce que vous me parlez à travers un miroir et vous pensez que je suis un sorcier? (Porque você está falando comigo através de um espelho e acha que eu sou um bruxo?)
A fúria em seu olhar foi quase adorável.
Ela ergueu o queixo, a postura rígida e nobre, como se minha resposta fosse a coisa mais absurda que já ouvira.
- O que mais poderia ser? Este espelho nunca fez isso antes!
Meu sorriso diminuiu.
- Nem comigo.
Silêncio.
Ela me olhava com desconfiança, como se tentasse decifrar se eu era real ou apenas fruto de sua imaginação.
E eu fazia o mesmo.
Como aquilo era possível?
Dei um passo mais perto, analisando-a.
Ela não parecia um holograma, uma ilusão...
Ela parecia real.
- Qual é o seu nome? - perguntei, a voz mais baixa, cautelosa.
Ela hesitou.
- Fanny
O nome dançou na minha mente, e, por algum motivo inexplicável, encaixou-se perfeitamente nela.
- E você? - ela perguntou.
- François.
Ela franziu a testa.
- François?
Assenti.
- Sim.
Seus olhos deslizaram pelo meu rosto, como se buscassem algo.
- Você é francês. Mas sua roupa... - Ela corou levemente, desviando o olhar. - Não é nada apropriada.
Demorei um segundo para entender.
Olhei para baixo.
Terno sem gravata. Camisa social levemente aberta no colarinho.
Ah.
- Você esperava uma cartola e um colete?
Ela ainda não me encarava.
- Homens decentes não andam assim, tão... - Ela pigarreou. - Expostos.
Ri.
- Bem, mademoiselle, no meu tempo, isso é completamente aceitável.
Ela finalmente ergueu o olhar, e sua confusão só aumentou.
- Votre temps? (Seu tempo?)
Minha boca abriu, mas nenhuma resposta saiu.
Porque, de repente, tudo fez sentido.
Suas roupas. Sua linguagem formal. A forma como falava do espelho como se aquilo nunca tivesse acontecido antes.
Ela não estava apenas do outro lado do espelho.
Ela estava em outro tempo.
Engoli em seco, sentindo um frio subir pela espinha.
- Fanny... en quelle année sommes-nous? (Fanny... em que ano estamos?)
Ela piscou, como se fosse óbvio.
- 1824.
Um silêncio ensurdecedor caiu entre nós.
Minha mente trabalhou rápido.
Não.
Não podia ser.
- Et vous? (E você?) - ela perguntou, hesitante.
Passei a língua pelos lábios secos antes de responder:
- 2024.
Seus olhos se arregalaram, e ela tropeçou um passo para trás, segurando a borda da penteadeira como se sua vida dependesse disso.
- Impossible... (Impossível...)
Balancei a cabeça, sentindo um arrepio percorrer meu corpo.
- É o que eu deveria estar dizendo.
Fanny respirou fundo, parecendo tentar controlar o turbilhão dentro dela.
E eu?
Eu estava no meio de um divórcio.
Minha esposa me traiu com meu melhor amigo.
Minha vida estava de cabeça para baixo.
E, ainda assim...
A única coisa que importava agora era essa mulher do outro lado do espelho.
E descobrir como, diabos, aquilo era possível.