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Paris, 1824
Eu estava prestes a fazer algo impensável.
Meu coração batia forte contra o peito, pulsando como um tambor de guerra. Meus olhos estavam fixos no espelho dourado, que agora eu sabia ser mais do que um simples objeto.
Era um portal.
Um portal para outro século.
Do outro lado, François me observava.
Seus olhos azuis eram firmes, mas sua expressão era paciente. Como se esperasse que, a qualquer momento, eu desistisse.
Mas eu não podia.
Não podia voltar para a vida que meu pai havia escolhido para mim.
Respirei fundo, sentindo o peso daquela decisão.
- O que eu preciso fazer? - minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
François franziu a testa.
- Apenas toque no espelho.
Minha mão tremia quando estendi os dedos para a superfície brilhante.
O vidro deveria ser frio. Sólido.
Mas antes que eu o tocasse, um pensamento me atingiu como um raio.
Edith.
Minha irmã não podia ficar para trás.
Se eu tinha uma chance de escapar... então ela também teria.
Minha respiração ficou irregular.
Eu não podia simplesmente desaparecer.
Ela precisava saber que eu voltaria.
Virei-me rapidamente e corri até minha penteadeira, pegando um pedaço de papel e minha pena.
Meus dedos tremiam, mas, mesmo assim, escrevi:
Edith,
Sei que isso parece loucura, mas preciso que confie em mim.
O espelho do nosso quarto não é comum. Ele é a chave para a nossa liberdade.
Todas as noites, ao anoitecer, fique diante dele.
Em breve, virei te buscar.
Com amor,
Fanny
Dobrei rapidamente o bilhete e corri até a escrivaninha de Edith.
O escondi dentro de um de seus livros favoritos.
Ela iria encontrar.
Ela iria me esperar.
Engoli em seco e fechei os olhos por um segundo, como se estivesse me despedindo.
Quando me virei, François ainda me observava.
Ele não disse nada, apenas esperou.
Voltei para o espelho.
Toquei a superfície brilhante.
E, num instante...
Fui engolida pelo tempo.
Paris, XXI
Ela caiu nos meus braços.
Literalmente.
Uma mulher vestida como se tivesse saído de um quadro do Louvre, os olhos arregalados, a respiração acelerada, o peito subindo e descendo num ritmo frenético.
Minha mente gritava que nada daquilo era real.
Mas ali estava ela.
Fanny Marchand, uma mulher do século XIX, caída no meu tempo.
Linda e delicada, cheirava a lavanda, e seus olhos verdes estavam cheios de medo e admiração.
Ela tremia, os dedos agarrados no tecido do meu casaco como se eu fosse sua única âncora.
Seu olhar percorria o ambiente ao redor, absorvendo os detalhes com um fascínio incrédulo.
Bom... ela estava literalmente vendo o futuro.
- Mon Dieu... - sussurrou, apertando o casaco em seus punhos. - Ce n'est pas possible... c'est vraiment vrai, monsieur? (Isso não pode ser verdade... é mesmo real, senhor?)
- Mas é - respondi simplesmente.
Ela me olhou, e vi o puro pânico em seus olhos.
- Qu'est-ce que j'ai fait? (O que eu fiz?)
Minha resposta veio sem hesitação:
- Você se salvou de uma vida curta e cruel.
Ela piscou, como se estivesse processando minhas palavras. Depois, respirou fundo e assentiu lentamente.
Mas então...
Merde.
Um vigia do museu se aproximava.
Fanny não podia ser vista assim.
Ela estava vestida como uma personagem saída de um teatro vitoriano!
O segurança franziu o cenho ao nos ver.
- Senhor, tudo bem por aqui?
Antes que Fanny dissesse algo muito errado, puxei-a para mais perto e sorri.
- Sim, tudo certo. Minha esposa está ensaiando para um filme de época.
O vigia olhou de Fanny para mim, depois de volta para ela.
- Ah... entendi. Bom, sucesso no filme, madame.
Ele seguiu seu caminho, e eu soltei um suspiro de alívio.
Mas então, senti um par de olhos furiosos me perfurando.
Virei a cabeça e encontrei Fanny me encarando.
- Votre épouse? (Sua esposa?)
Engoli em seco.
- Eu precisava de uma desculpa rápida.
Ela cruzou os braços, visivelmente indignada.
- Você sabia que isso pode me comprometer?! Eu sou uma donzela! Nunca fui abraçada por um homem desse jeito!
Ah.
Merde.
Eu esqueci que, no século dela, um simples toque poderia arruinar a reputação de uma mulher.
- Écoutez, Fanny... (Escute, Fanny...) - comecei, tentando acalmá-la.
Ela ergueu uma sobrancelha.
- Poderia ter escolhido outra desculpa?
Suspirei.
- Você preferia que eu dissesse que você veio do século XIX através de um espelho?
Ela abriu a boca para retrucar... mas parou.
Depois, bufou.
- Bon... vous avez raison. Mais ne me touchez plus, s'il vous plaît. (Bom... você está certo. Mas não me abrace mais, por favor.)
Não aguentei e ri.
Essa mulher ia revolucionar minha vida.
Primeiro contato com o século XXI
Minutos depois, saímos do museu. Pedi que Fanny ficasse calada, pois veria pessoas vestidas de forma... diferente.
Mas quando paramos no estacionamento, foi minha vez de rir.
A expressão dela foi impagável.
- Qu'est-ce que...? (O que...?) - sua voz falhou ao olhar para os carros ao redor. - Où est votre calèche? (Onde está sua carruagem?)
Tentei manter a seriedade.
- Isso é minha carruagem.
A boca dela se abriu e fechou algumas vezes.
- Mas... isso...? Isso não tem cavalos!
Abri a porta.
- Entre e descubra.
Fanny hesitou, olhando para dentro do carro como se fosse uma armadilha do diabo.
- Je préfère un cheval... (Prefiro um cavalo...)
Revirei os olhos.
- Montez, Fanny. (Suba, Fanny.)
Ela suspirou e se sentou, ajeitando as saias de um jeito desajeitado.
Mas quando liguei o motor...
Ela gritou e agarrou meu braço como se estivéssemos prestes a morrer.
- MON DIEU! CE CHOSE BOUGE SEUL! (MEU DEUS! ESSA COISA ESTÁ SE MEXENDO SOZINHA!)
Eu tentava, juro que tentava não rir.
- Isso se chama carro.
Ela me lançou um olhar de puro horror.
- O século XXI é aterrorizante.
Meu sorriso aumentou.
- E você só viu o começo.
Fanny
Estávamos parados no sinal quando um grupo de jovens atravessou a rua.
Fanny ficou pálida.
- François... o que são essas caixas pretas no ouvido das pessoas?
Olhei para onde ela apontava.
Fones de ouvido.
- Ah, isso? São fones. Eles escutam música.
- Mas... où est l'orchestre? (Onde está a orquestra?!) - Ela arregalou os olhos. - Eles são bruxos?!
Precisei encostar o carro.
Comecei a rir tanto que meu estômago doía.
- Fanny, isso não é bruxaria! É tecnologia!
Ela me olhou, ainda desconfiada.
- Você pode provar?
Peguei meu celular e coloquei uma música clássica.
- Tente isso.
Ela pegou o fone com hesitação, colocou no ouvido e...
Gritou e jogou longe.
- MON DIEU! IL Y A DES VOIX DANS MA TÊTE! (MEU DEUS! TEM VOZES NA MINHA CABEÇA!)
Eu me dobrava de tanto rir.
- Fanny... é só música.
- Isso é um artefacto do diabo! - Ela cruzou os braços, ofendida.
- Ou um celular, que você ainda vai aprender a usar.
Ela bufou.
- Prefiro um piano.