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PROPOSTA
Paris, 1824
Eu não deveria estar conversando com um homem dentro de um espelho.
Damas não conversam com homens sem a devida companhia, sem a permissão de um tutor, sem um propósito claro. Mas, naquele momento, todas essas regras pareciam insignificantes.
Porque a única coisa que fazia sentido era ele.
O misterioso Lord do outro tempo.
E que homem!
Alto, forte, com olhos tão azuis que pareciam capazes de enxergar minha alma. Seus cabelos escuros estavam um pouco desalinhados, e o leve tom de cansaço em sua expressão sugeria que ele carregava um peso invisível.
Nunca vi um homem tão belo em toda a minha vida.
Meu rosto pegou fogo com o pensamento, e apertei as mãos contra as saias para tentar dissipar o embaraço.
Mas ele parecia tão real quanto qualquer coisa ao meu redor. Ainda assim, havia algo de muito errado. Suas roupas, seu corte de cabelo, a forma como falava... Ele não era deste tempo.
E se...?
Meu sangue gelou.
E se ele fosse um espírito?
Dei um passo hesitante para trás.
- Como está falando comigo? Quem é você?
Ele arqueou uma sobrancelha, parecendo tão intrigado quanto eu.
- Eu é que deveria perguntar isso - respondeu, cruzando os braços. - Você apareceu no espelho do Museu do Louvre, chorando como se sua vida estivesse acabando.
Travei.
Ele me viu... chorando?
A humilhação me atingiu em cheio, e desviei o olhar, envergonhada.
- Musée du Louvre? - repeti, confusa.
- Sim. Como já descobrimos, estou no século XXI.
Minha cabeça girou.
Século XXI?
Ele só podia estar brincando.
Ou... aquilo era algum tipo de feitiçaria?
Minha respiração acelerou, e levei a mão ao peito, tentando acalmar a tempestade dentro de mim.
Se ele estivesse dizendo a verdade...
Duzentos anos nos separavam.
Meus olhos voltaram ao espelho, e, pela primeira vez, percebi os detalhes ao redor dele. As luzes brilhantes que pareciam pedaços do sol, os objetos estranhos ao fundo, o brilho reluzente de um mundo que não era o meu.
Não era meu quarto.
E, naquele instante, percebi a verdade aterradora.
Eu realmente estava olhando para outro século.
Minha garganta secou.
- Você... você está falando a verdade... - minha voz saiu trêmula. - Mas... como isso é possível?
Ele passou a mão pelos cabelos escuros, pensativo.
- Não sei. Mas, se há uma resposta, o espelho parece ser a chave.
Eu tremia dos pés à cabeça.
- Isso... isso é loucura.
Ele soltou um meio sorriso.
- Et pourtant, nous sommes ici. (E, ainda assim, estamos aqui.)
Um silêncio pesado caiu entre nós.
Ele me estudava, atento, como se tentasse me decifrar. E então, sua voz soou mais baixa, mais suave... mas carregada de algo intenso.
- O que estava chorando antes de me ver?
Minha garganta apertou.
Meu peito doía.
E, sem saber por que, eu respondi.
- Meu pai vai me casar com um duque... - minha voz falhou, mas continuei. - Um homem velho, cruel. Viúvo três vezes. Dizem que ele maltratava as esposas que não lhe deram herdeiros.
Minhas lágrimas voltaram com força.
- Eu serei a próxima.
Os olhos de François escureceram.
Eu vi a transformação nele.
Seus músculos enrijeceram. Sua mandíbula travou. Seus punhos cerraram levemente, mas ele manteve a compostura.
Continuei, minha voz tremendo de desgosto:
- Ele é repulsivo... velho, baixo, a barriga flácida, os poucos dentes amarelados... fede a suor e perfume barato. Ele tem idade para ser meu avô!
A repulsa transbordou de mim.
- Ele vai me tocar! - Minha voz falhou de nojo, e minhas mãos tremiam. - Meu pai disse que é minha obrigação! Que é para o bem da família!
Não percebi quando comecei a soluçar.
Mas percebi o momento exato em que o rosto de François mudou.
Era fúria.
Uma raiva crua, intensa, devastadora.
Ele respirou fundo antes de dizer, cada palavra carregada de um peso que me atingiu no peito.
- Et si je pouvais vous sortir de là? (E se eu pudesse tirá-la daí?)
Minha respiração parou.
Ele inclinou-se levemente para a frente, aproximando-se do espelho, e suas próximas palavras saíram baixas, porém afiadas como uma lâmina.
- Auriez-vous le courage de venir à mon siècle? (Você teria coragem de vir ao meu século?)
Um soluço escapou dos meus lábios.
A incredulidade me tomou.
Ele era um estranho.
Um homem de outro século.
Mas...
Ele me enxergava.
Como ser humano.
Como mulher.
E, pela primeira vez na minha vida...
Alguém queria me salvar.
Paris, XXI
Eu não sabia o que esperar.
Aquela era a coisa mais absurda, irracional e impossível que já havia acontecido comigo.
Mas, ao mesmo tempo, era a coisa mais real que já vivi.
Fanny Marchand, uma mulher do século XIX, estava prestes a atravessar um espelho para chegar ao meu mundo.
E eu a ajudaria.
Seja lá o que fosse esse espelho, seja lá como aquela conexão tinha sido criada... eu não ia deixá-la para trás.
Ela hesitou, os olhos cheios de algo que eu não soube decifrar.
- Attendez-moi. (Espere por mim.) - ela murmurou.
Assenti, observando enquanto ela pegava papel e tinta, escrevendo algo com pressa.
- O que está fazendo?
Ela não desviou o olhar do papel.
- Deixando uma carta para Edith. Ela precisa saber que voltarei.
Houve algo em sua voz...
Algo que apertou meu peito.
Ela não queria deixar a irmã para trás.
E aquilo me fez admirá-la ainda mais.
Fanny terminou de escrever, dobrou o papel e o deixou sobre a mesa de cabeceira.
Respirou fundo.
Voltou-se para mim.
E, naquele instante, vi sua decisão tomar forma.
Ela não estava mais hesitante.
Ela ia fazer isso.
Minha garganta secou.
- Vous êtes prête? (Está pronta?)
Ela engoliu em seco, mas seus olhos brilhavam com uma coragem que me surpreendeu.
- Oui. (Sim.)
Eu segurei o fôlego quando ela ergueu a mão.
Seus dedos tocaram a superfície do espelho.
E o impossível aconteceu.
O vidro cedeu como água.
Uma leve ondulação se espalhou pela moldura dourada, e Fanny deu um passo hesitante.
Seu corpo começou a atravessar...
E então, num último instante de incerteza, ela olhou para mim.
Seu olhar parecia pedir garantia.
Eu não hesitei.
- Je suis là. (Estou aqui.)
Fanny fechou os olhos.
E então...
Atravessou.
O ar ao meu redor pareceu vibrar.
O brilho ao redor do espelho piscou, como se lutasse contra o impossível.
E então...
Ela estava aqui.
No século XXI.
Na minha frente.
Na minha vida.
E eu sabia, naquele momento, que nunca mais seria o mesmo.