O cheiro a queimado acordou-me.
Abri os olhos e vi fumo a entrar por baixo da porta do quarto. O alarme de incêndio soava estridente, um barulho agudo que parecia perfurar o cérebro.
A minha mãe, que tinha vindo passar a semana comigo por causa da minha gravidez avançada, entrou a correr no quarto, a tossir.
"Eva, fogo! O prédio está a arder!"
O pânico gelou-me. A minha barriga de nove meses pesava uma tonelada, dificultando cada movimento.
"Mãe, a porta principal está bloqueada pelo fumo. Temos de ir para a varanda."
Arrastámo-nos para a varanda, fechando a porta de vidro atrás de nós. O ar lá fora era mais respirável, mas o caos na rua era assustador. Viam-se chamas a sair das janelas do andar de baixo.
Peguei no telemóvel com as mãos a tremer e liguei ao meu marido, Leo. Ele era bombeiro. Ele saberia o que fazer. Ele salvar-nos-ia.
A chamada foi atendida ao segundo toque.
"Leo!", gritei, a minha voz embargada pelo fumo e pelo medo. "O nosso prédio está a arder! Estamos presas na varanda do nosso apartamento, no quinto andar!"
Ouvi sirenes do outro lado da linha. Ele já estava aqui. Um alívio momentâneo percorreu-me.
"Eva, mantém a calma," disse ele, a sua voz estranhamente distante. "Já sei. Estou no local."
"Vem depressa, por favor! O fumo está a ficar mais denso!"
Houve uma pausa. Depois, ouvi outra voz ao fundo, uma voz feminina, a chorar histericamente. Era a Sofia, a minha meia-irmã.
"Leo, o meu gatinho! O Mimo ainda está lá dentro! Não o posso deixar!"
A voz do Leo suavizou-se instantaneamente.
"Não te preocupes, Sofia. Eu vou buscá-lo. Fica aqui com o meu colega."
O meu coração parou.
"Leo?", chamei, a incredulidade a tomar conta de mim. "O que é que estás a dizer? A tua mulher grávida e a minha mãe estão presas no quinto andar!"
"Eu sei, Eva, mas a Sofia está aqui em baixo, em pânico. O apartamento dela é no segundo andar, o fogo ainda não chegou lá com força. É mais rápido. Vou lá num instante e depois subo."
"Mais rápido? Leo, nós estamos em perigo real! O fumo..."
"Para de ser dramática, Eva! Tu estás no quinto andar, o fogo sobe devagar. Tens tempo. A Sofia está sozinha e assustada. Tenho de a ajudar primeiro."
Ele desligou.
Olhei para o telemóvel, incrédula. Ele tinha desligado. Ele escolheu salvar o gato da sua meia-irmã em vez da sua mulher grávida de nove meses.
A minha mãe agarrou-me no braço, o seu rosto pálido de terror.
"O que é que ele disse, filha?"
As lágrimas que eu não sabia que estava a segurar começaram a rolar pelo meu rosto.
"Ele foi salvar a Sofia. E o gato dela."
O mundo pareceu desabar. O fumo já não era a coisa mais sufocante. Era a traição.