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Os dedos trêmulos de Clara Vasconcelos lutavam com os botões puídos do vestido marrom que tirara de uma velha mala esquecida - deixada para trás por algum inquilino apressado que passara uma noite e nunca mais voltou. A pensão da tia Lurdes estava cheia de rastros assim: sapatos desparelhados, livros sem dono, e roupas abandonadas que agora serviam de disfarce.
O tecido era grosso, encardido nas costuras e vários números maior, mas servia. E naquele momento, isso era mais que suficiente. Clara precisava parecer outra. Esconder a mulher ferida, a fugitiva, a irmã mais velha tentando proteger o que restava da própria família.
A dor na costela voltou quando abaixou-se para calçar as sandálias - também resgatadas do fundo do armário comunitário. Mordeu o lábio até o gosto metálico se misturar à lembrança da noite anterior, e então respirou fundo. Nada podia atrasá-la.
No bolso, o anúncio do jornal:
"Homem do interior procura mulher. Precisa de ajuda com criança pequena. Oferece teto, comida, e estabilidade."
Era tudo que ela precisava: um novo nome, um novo endereço, e algum tempo sem ser reconhecida.
Na cama, com as pernas finas encolhidas sob o lençol desbotado, Lia, sua irmã de nove anos, observava em silêncio. Os olhos grandes pareciam conter mais maturidade do que qualquer criança deveria carregar. Abraçada a boneca costurada com pano de prato como quem abraça um porto seguro.
- já vai partir? - Lia sussurrou, quase sem mexer os lábios.
Clara hesitou. Não querendo dizer que sim. Mas o mundo já havia quebrado promessas demais para elas duas.
- Eu volto. Assim que puder.
Ajeitou o cabelo com as mãos, colocou a mala de lado, se abaixou ao lado da cama da irmã. Beijou sua testa com força contida.
- Fica com a tia Lurdes. Ajuda ela na cozinha, promete?
Lia assentiu em silêncio.
- Você vai me deixar aqui pra sempre?
A pergunta veio como um sussurro, mas pesou como um grito. Clara fechou os olhos por um instante, o rosto ainda dolorido dos soluços contidos que segurou durante a madrugada anterior.
Foi ali mesmo, na mesma cama, que conversaram horas antes, sob a luz fraca da lamparina, quando tia Lurdes - de olhos cansados e voz rouca como chão de madeira - finalmente cedeu:
- Posso ficar com ela... Por um tempo. Talvez um ano ou dois. Mas você tem que dar um jeito logo, menina. Eu não dou conta de cuidar de mais ninguém. Já tenho dificuldade com minhas próprias pernas.
Clara segurava as mãos da tia com força, como se segurasse um galho de salvação. Queria chorar. Queria implorar. Mas sabia que, naquela casa, os favores eram raros e as promessas, frágeis.
- Eu volto, tia. Juro que volto. Só preciso sair da cidade. Me esconder. Achar um lugar.
Lia estava acordada naquela hora também, escondida no escuro. Quando Clara voltou ao quarto, a menina apenas perguntou:
- Pra onde você vai?
Clara não respondeu. Só deitou ao lado dela e ficou ali, sentindo o coração da irmã bater mais rápido que o dela.
Agora, ajoelhada outra vez ao lado da cama, Clara puxou o lençol até o queixo de Lia e tentou sorrir.
- Você vai cuidar da tia, tá bem? Me espera. Quando der, eu venho te buscar.
Lia assentiu com os olhos úmidos. Depois, sussurrou:
- Não demora.
Clara apertou os lábios para não tremer.
- Não vou demorar.
Mentira ou verdade, era tudo o que podia prometer.
Levantou-se, ajeitou o vestido pela última vez e seguiu para a porta.
Sabia que, se olhasse para trás, não teria coragem de sair.
E agora, coragem era tudo o que lhe restava.
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