Capítulo 2 A fulga

O portão da pensão rangeu quando Clara o empurrou devagar, com o sol já baixo, tingindo o céu com tons alaranjados e sombras longas. A rua parecia calma demais para o quanto ela estava agitada por dentro. Segurava a sacola com firmeza, o tecido áspero quase colando na palma suada da mão.

Não podia ser vista. Não podia ser reconhecida.

Sabia que a cidade da tia Lurdes era próxima demais de onde crescera - próxima demais dele. O risco de cruzar com alguém conhecido ainda a deixava em alerta. Por isso, o chapéu escondia parte do rosto, e o olhar evitava encarar.

Caminhou sem parar até uma pequena loja escondida entre uma barbearia e um velho boticário. Um letreiro quase apagado dizia: "Casa de Penhor Central – Compra e venda". As letras estavam descascadas, como a porta de madeira que ela empurrou com cautela.

Lá dentro, o cheiro de metal envelhecido e madeira encerada preenchia o ar.

O homem atrás do balcão era magro, de olhos pequenos e apagados, com uma expressão que não se alterava, nem mesmo ao ver a jovem entrar. Ele não parecia disposto a conversa. Nem curioso.

Clara tirou o pingente de ouro com pedra azul de dentro da sacola, enrolado num lenço. Estendeu-o sobre o balcão com as mãos firmes, mas por dentro tremia.

Sobre o olhar do homen disse:

- Era da minha mãe. Meu pai deu pra ela antes de morrer.

Como quem se justificasse

O homem pegou a joia sem dizer uma palavra. Pousou uma lupa sobre o olho e examinou o pingente sob a luz amarelada que pendia do teto. Demorou alguns segundos, então deu o veredito seco, com voz áspera:

- Cento e vinte.

Era menos do que valia. Muito menos.

Clara assentiu.

Precisava do dinheiro, não de justiça.

Pegou o maço de notas e guardou sem contar. Não era momento de hesitar.

De volta à calçada, o vento da noite começava a soprar pelos becos, espalhando o cheiro de terra e fumaça de lenha. Clara desceu a rua em direção à praça dos coqueiros, onde um pau de arara sairia logo após o pôr do sol. Um caminhão de carga adaptado com bancos de madeira e uma lona suja pendurada dos lados. Iam lavradores, retirantes, gente como ela: invisível.

Subiu. Sentou-se no canto mais distante, segurando firme a sacola no colo.

O motor roncou, e o caminhão se moveu com um solavanco seco.

Clara não olhou para trás.

Sabia que, se o fizesse, poderia fraquejar. E não podia mais voltar.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022