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O fim de tarde tingia o céu de laranja e púrpura quando Clara se encontrava ainda no quarto de Maria Cecília. A menina dormia tranquila, o corpo leve repousando entre os lençóis brancos com detalhes de renda.
Batidas leves soaram na porta.
- Dona Clara? - era Lucimar, com a voz baixa. - O senhor Garcia chegou. Foi se lavar. Minha mãe pediu pra avisar que a janta será servida em breve. Posso ficar com a pequena - sorriu gentilmente.
Clara assentiu com um aceno, ajeitou a manta da menina e agradeceu. O coração acelerava com a ideia do primeiro encontro direto com o patrão.
Desceu as escadas tentando conter a inquietação. Ao adentrar a sala de jantar, seus olhos se arregalaram com leve surpresa: a mesa estava posta para apenas duas pessoas. Cândida arrumava as travessas com esmero, enquanto a luz amarelada das lamparinas dava ao ambiente um ar quase doméstico, acolhedor demais para o que imaginava de uma fazenda daquele porte.
- Boa noite, dona Clara - cumprimentou Cândida com gentileza.
Clara respondeu, um pouco desconcertada, mas antes que pudesse dizer algo mais, ouviu passos no corredor. Voltou-se instintivamente.
Fernando Garcia surgiu na soleira da porta, com a barba recém-aparada, os cabelos ainda úmidos e uma camisa de linho dobrada até os cotovelos, colada ao corpo largo e rústico. Tinha algo de bruto nos ombros largos e nas mãos calejadas, mas havia ali também um tipo de beleza silenciosa e firme, uma masculinidade sóbria, quase selvagem. Clara não esperava por aquilo - nem pela juventude estampada no rosto sério. Ele não poderia ter mais que trinta anos.
Trazia consigo uma travessa fumegante, que colocou à mesa com naturalidade.
- Sente-se, por favor - disse, com voz baixa e firme. - Espero que goste de carne de panela.
Clara assentiu, sentando-se com um leve aceno de cabeça.
- Está tudo muito bonito... senhor.
Ele serviu o próprio prato e depois estendeu a colher para ela.
- Me chame de Garcia. Só Garcia.
Ela agradeceu e, enquanto se servia, sentia o olhar dele sobre si. Não exatamente duro - mas atento, como se estivesse lendo mais do que vendo.
- Maria Cecília está bem? - perguntou ele, rompendo o silêncio.
- Está. Muito calma. Dormindo quando saí do quarto. É uma menina adorável.
Ele assentiu, focado em cortar a carne com precisão.
- É uma criança delicada... exige mais do que só cuidados. Exige presença.
Clara ergueu os olhos para ele, tentando entender o tom escondido por trás da frase. Mas ele não deu continuidade. Bebeu um gole de suco e apenas completou:
- Obrigado por ter vindo.
- Só espero poder ajudar - disse ela, sincera.
Garcia olhou para ela de novo, dessa vez com mais vagar. Havia algo naquela moça franzina e decidida que o intrigou
- Quantos anos tem? - perguntou, sem rodeios.
- Vinte e quatro - respondeu ela, endireitando os ombros.
Ele franziu levemente o cenho, como se não esperasse aquela resposta.
- Nova demais... - comentou, recostando-se na cadeira. - Quando coloquei aquele anúncio, imaginei que me responderia uma mulher mais velha. Talvez uma daquelas já resignadas com o destino, que não tiveram sorte em amores... uma solteirona no fim da esperança. Daquelas que a língua do povo já atacava
Clara não pôde conter um leve riso, mais por ironia do que por graça.
- Senhor Garcia, na cidade onde nasci, uma mulher com vinte e três anos e sem marido já ouve esse tipo de comentário. Muitas amigas da minha idade já têm filhos na escola. disse com um toque amargo.
Ele assentiu, pensativo, apoiando os antebraços na mesa.
- Ainda assim, sua idade acaba sendo até melhor... vai tornar o acordo mais natural aos olhos dos outros. Gente fala demais quando vê algo fora do comum. Uma mulher mais velha... Podia não ser aceitável
Clara ergueu os olhos devagar em lugar como esse, opinião alheia pesa mais do que verdade.
Ela respirou fundo, como se engolisse um pequeno incômodo.
- Eu só quero cumprir meu papel. Cuidar da menina. Ajudar. Sei que não é fácil encontrar uma posição como essa, e agradeço pela oportunidade. Mas não entendo por que parece tão espantoso assim.
Antes que ele respondesse, um trovão repentino sacudiu a estrutura da casa, fazendo Clara sobressaltar-se levemente. Em seguida, a chuva desabou com força, tamborilando o telhado e soprando pelas frestas das janelas.
Ambos olharam instintivamente para fora.
- Essa ninguém previu - comentou Clara.
Garcia levantou-se de imediato.
- Deixei uns bezerros no pasto baixo. Se a água subir, pode ser ruim. - Pegou o chapéu na parede e virou-se para ela antes de sair. - Com licença.
- boa sorte com os bezerros.