/0/15276/coverbig.jpg?v=20250626093552)
O pau de arara avançava devagar, sacudindo corpos cansados, costurando estradas de barro entre serras e plantações. Clara se deixou vencer pelo cansaço, encostando a cabeça na lateral da carroceria, o sol filtrado pela lona desbotada.
Ela adormeceu.
No sonho, o passado voltava com nitidez cruel:
- Ela ainda é uma menina, Augusto! - sussurrava sua mãe, tossindo ao canto.
- Vai se casar, sim. Já tem homem que garante nosso nome nessa cidade.
- Mas ele tem idade pra ser pai dela... e fama ruim!
- E daí? Homem faz o que tem que fazer. Ela vai obedecer.
A mãe encolhida, com os olhos baixos, sem forças. O padrasto, de voz dura, ditava o destino alheio como quem acende um cigarro. E Clara, no sonho, não conseguia gritar.
Acordou com um solavanco, o pau de arara parou numa cidadezinha cercada por morros, poeira vermelha e um céu que parecia mais baixo do que nos mapas. Clara desceu carregando sua sacola . A praça era simples, mas viva: uma igreja branca de torre baixa, um armazém com fachada descascada, uma loja de roupas com manequins parados na vitrine, e uma modista - Zilá, segundo a placa de madeira pintada - costurava perto da janela.
Clara respirou fundo e foi até o armazém. Lá dentro, uma mulher forte, de lenço florido, empilhava pacotes. Ela se virou quando ouviu passos
- Boa tarde... desculpe incomodar. Vim saber como chego à Fazenda Boa Esperança.
A mulher a mediu de cima a baixo, como quem avalia mais do que a aparência. Seu olhar ficou por um instante... parado. Clara não entendeu, mas sentiu.
- Do Garcia?
- Sim, senhora.
- Mandou buscar você?
- Espero que sim.
A mulher não respondeu logo. Apenas continuou seu trabalho, e ao final disse, seca :
- Estrada é longa. Se mandou carroça, espere. Se não mandou... azar o seu.
Clara agradeceu, desconcertada, e saiu. Atrás dela, vozes baixas dos moradores comentavam qualquer coisa, mas ela não prestou atenção - ou não quis prestar.
Ao se sentar num banco de madeira sob a sombra torta de uma árvore, uma carroça surgiu levantando poeira. Parou diante dela. O condutor, um homem magro de chapéu de aba torta, não desceu.
- Clara Vasconcelos?
- Sou eu.
- Alceu. Trabalho pro senhor Garcia. Suba
Sem trocar mais palavras, ele virou a carroça. Clara subiu com dificuldade e, enquanto se afastavam da pequena cidade, não notou os olhos da mulher do armazém ainda fixos nela, como quem vê alguém indo embora... para um lugar do qual talvez não volte igual.