Capítulo 2 I

Tóquio, Japão, 28 de setembro de 1940.

- O embaixador Saburu Kurusu assinou o pacto entre a Alemanha, Itália e Japão - a informação fez Mamoru Aiko voltar-se em direção à voz feminina.

- Quem disse isso? - indagou, subitamente apreensivo.

- Se ouvisse rádio com mais interesse, saberia - a velha Nana irritou–se, balançando os braços gordos para o ar em uma postura cômica. - Não se fala em outra coisa. Sabe o que isso significa?

- Que agora existe uma aliança de cooperação militar, política e econômica? - o rapaz murmurou, os passos lentos, a fim de que a velha pudesse acompanhá-lo.

- Diz mais do que isso, Mamoru! - ela ralhou, o tom baixo, escapando de um lado da boca. - É questão de tempo para as coisas piorarem...

Caminhavam lado a lado pelas ruas de chão batido do subúrbio de Tóquio. O rapaz de cabelos negros, compridos e lisos, magro e de beleza impressionante, resolveu que ali não era o melhor lugar para uma discussão política e apenas deu de ombros. A velha percebeu imediatamente sua decisão e balançou a face, concordando.

- O Japão já está em guerra com a China desde 37. As coisas não vão mudar - disse ele, encerrando definitivamente o assunto.

O suspiro feminino fê-lo voltar-se novamente para ela. Sorriu e apertou–lhe os ombros, carinhosamente, depositando-lhe um casto beijo em sua bochecha enrugada.

- Maldito! - Nana o xingou. - Não me beije no meio da rua! - ordenou.

Mamoru achou graça. Pareciam avó e neto, caminhando como iguais. Mas, a verdade era que Nana não passava de uma velha prostituta que o havia criado antes e depois de a mãe morrer.

Masami Aiko havia sido a terceira gueixa de uma geração de mulheres Aiko. Dona de uma casa num bairro yūkaku , ela era uma das mais populares e belas mulheres de sua época. Porém, Masami decidiu encerrar suas "atividades" pouco tempo antes de morrer de tristeza. Mamoru assumiu seu posto em seguida, vendo, em sua bela propriedade, a chance de conseguir viver confortavelmente e ainda ter acesso a todo tipo de informação sem ser notado. Assim, a casa de gueixas transformou-se em prostíbulo, que na sua estrutura tinha como diferencial apenas o ambiente mais requintado do bairro.

Em pouco tempo, a casa Ai, ou simplesmente "Casa do amor" já abrigava meia dúzia de belas mulheres que sabiam dançar, cantar e entreter os homens, o suficiente, para que se tornasse um dos lugares mais disputados da região. Havia uma lista de clientes fixos, e alguns à espera. Diziam, em cochichos entre cavalheiros, que a bebida e a música já valeriam o ingresso. As mulheres eram apenas a pérola dentro da ostra.

Claramente, Mamoru sentia falta dos belos tempos em que seu lar oferecia a pureza das mulheres ao invés da malícia de seus sorrisos, mas o jovem admitia que sua época era cruel, especialmente para homens como ele.

- O que faremos para o jantar? - Nana indagou, tirando-o do devaneio.

O sorriso masculino veio acompanhado com um olhar de relance para a banca que vendia verduras.

- Oh, eu quero sua sopa de couve, Nana - respondeu, feliz. - Algo bem quente porque já tem alguns anos que o outono não é tão frio assim.

A mulher aquiesceu.

- Vou comprar a couve. Vá atrás dos peixes.

O jovem balançou a cabeça, concordando. Em segundos, ele já caminhava em direção à peixaria.

As ruas pareciam calmas, apesar do clima pesado que inundava o ar. As pessoas estavam carrancudas, mas aquilo não era nenhuma novidade para o jovem. Tóquio costumava ser uma cidade fria e de pessoas introvertidas. Porém, nas suas noites, quando as mulheres de família dormiam, seus maridos perdiam a postura gélida e se atiravam nos prazeres carnais do bairro em que residia.

Ouviu alguns suspiros em sua direção, mas não fez caso. Há muito tempo sua aparência perfeita chamava a atenção, mas ele não se importava. Sabia que era desejado, tanto por homens quanto por mulheres. Já havia recebido inúmeros convites e propostas para fazer sexo, mas a todas recusou. Era celibato, não por opção. Apenas amava e não era correspondido, como muitos, aliás.

- Senhor?

Uma voz baixa e urgente chegou até ele. Voltou-se para um jovem de rosto esquelético; aparentava ter uns dezesseis anos, mas sabia que a fome costumava pregar peças na aparência das pessoas. Sua pobreza era visível, tanto pela pele suja quanto pelo cheiro que exalava. Postava-se ao lado de uma carroça velha, prestes a desabar.

- O que quer?

- Tenho algo a lhe oferecer, senhor - o rapaz o chamou para trás da carroça, com a face.

O que seria? Pervitin estava sendo vendido em alguns pontos da cidade, sob as vistas grossas da polícia. Mas, o mais certo era que lhe seria oferecido ópio. Não gostava de se estimular com drogas, então pensou em simplesmente prosseguir em sua caminhada. Contudo algo o fez seguir o jovem rapaz. Talvez o desespero em seus olhos, e o tremor de suas mãos.

- Serei generoso, senhor - ele disse, subindo a lona que cobria a carroça. - Pode usá–lo por duas horas em troca de apenas um prato de comida.

Os olhos de Mamoru estreitaram–se para dentro da carroça. Havia lá um menino, de talvez doze ou treze anos, deitado sobre cobertas imundas, e tremendo de frio. Como também suava, o jovem cortesão entendeu que ele estava febril.

- Ele está morrendo? - indagou ao outro à sua frente.

- É só fraqueza, senhor - o outro respondeu, rápido. - Faz três dias que não comemos nada. A comida está começando a se tornar algo difícil de encontrar.

Mamoru voltou os olhos novamente ao menino deitado. O rosto empoeirado e o cheiro horroroso que propagava no ar, deixou claro que a situação dentro da carroça era terrível.

- Quantos anos ele tem?

- Vai completar quinze no próximo verão, senhor.

Era uma criança, na visão de Aiko. Fechou os olhos, pensando no que fazer. Viviam um tempo cruel. Uma Grande Guerra estava às portas, e o futuro – especialmente o dele – ainda era incerto e amedrontador. Mas, como virar as costas e deixar aquele menino doente para trás?

Pôs a mão dentro da carroça e puxou a coberta, descobrindo a forma frágil. Viu o sangue seco nas pernas e as marcas de mordidas e arranhões nos braços e no peito. Sentiu náuseas.

- Onde você o achou?

- É meu irmão - o outro explicou, incomodado. - O senhor vai querer ou não?

Mamoru voltou a olhá-lo, sentindo um misto de ódio e piedade. O que a fome era capaz de fazer?

- Há quantos dias está em Tóquio?

O outro deu os ombros.

- Dois ou três. Viemos do interior.

Aiko deu um passo à frente, intimidador.

- Sabe o que é a Kempeitai?

O rapaz concordou, subitamente apavorado.

- Sabe o que a Kempeitai faz com quem pratica prostituição ilegal?

Os olhos do rapaz arregalaram-se em um dilema. Havia em si o desespero pela necessidade e a precipitação da fuga pelo medo.

- Quanto você quer pelo seu irmão? - Mamoru indagou, firme.

Os olhos pretos desanuviaram.

- Já disse, senhor... Um prato de...

- Não quero dormir com seu irmão, quero levá–lo para minha casa e ficar com ele - foi firme. - Sei que ele é o seu ganha-pão, mas não aguentará muito tempo. Está morrendo, percebeu? Dar-lhe-ei dinheiro e você irá embora. No interior, encontrará trabalho.

- Mas...

- Tem que aprender a ganhar seu sustento com o próprio suor, meu jovem - sua voz era ritmada. - Ou com sua própria bunda, se preferir.

Houve um resquício de dúvida nos olhos escuros do outro. Porém, após uma rápida olhada para a carroça e a constatação de que realmente o irmão mais novo estava perecendo, a decisão foi instantânea.

- Negócio fechado.

***

O cheiro de chá inundou a bela sala tradicional. O herdeiro da família Ryo adentrou o ambiente e encarou a amante com um sorriso bonito nos lábios. Não havia nada que o agradava naquela sala, mas gostava de olhar para a bela mulher que se sentava com candura numa poltrona.

- Comprei sua passagem para Kyoto - comunicou, gentil.

- Já? - As sobrancelhas negras elevaram–se, inquisidoras. - Achei que ficaria um mês.

- Um mês é tempo demais, querida - ele permaneceu sorrindo. - Amantes são como peixes, depois de três dias numa casa, começam a feder.

A bela mulher bufou, zangada.

- Como pode falar assim comigo? Achei que me amasse!

Ryo bebeu o chá. Era calmo por natureza, mesmo em momentos como aquele.

- Comprei para você aquela joia de que tanto gostou, Mina - ele contou. - E sua passagem de trem é de primeira classe. Além disso, seu pagamento será mais que o suficiente para mantê-la por um bom tempo.

A jovem de vinte anos calou-se. Até porque já dormia com aquele homem há três anos e ele sempre a tratava da mesma maneira. No fundo, o herdeiro da frota pesqueira mais importante do norte era até respeitoso, do seu jeito.

- Se a guerra durar muito tempo... - ela começou, mas foi interrompida.

- Eu não serei convocado, Mina. Além de ter dinheiro para me manter seguro, sou amigo íntimo de Shin Sakamoto.

Mina fechou os olhos em repulsa, lembrando–se do detestável protegido do Imperador. Havia visto o rapaz algumas vezes naqueles três anos, mas os curtos encontros foram suficientes para causar-lhe asco.

- Mas Shin Sakamoto está louco para ser chamado ao fronte...

- Shin tem ilusões românticas em relação à guerra - objetou. - Quando se deparar com a verdade sobre o que ocorre entre os tiros, atos heroicos e justiça mundana, aposto que deixará de ser um fã tão ardoroso do exército imperial.

Falar aquilo poderia levar Ryo ao fuzilamento, mas ele confiava em Mina para dizer tais palavras.

- E seu casamento?

- Que casamento?

- Completará vinte e dois anos em breve, e tenho conhecimento da tradição dos Ryo em se casar na vigésima segunda primavera de vida.

O homem riu, bebendo mais chá.

- Não vou me casar, Mina. A mulher dos meus sonhos não apareceu ainda, esqueceu-se?

Ela riu baixinho.

- A mulher dos seus sonhos não existe, querido - importunou. - Até quando insistirá em procurá-la?

Deu os ombros.

- Sonho com ela desde moleque, conheço seu rosto, sua voz e seu cheiro. Kami-sama não me daria essas visões em cima de uma ilusão. Um dia, ela aparecerá. Então me casarei com ela e me aquietarei, cuidando de minha rainha e de meu pequeno reino, com a devoção de um cão.

A japonesa abriu a boca para replicar, mas a entrada de um servo a calou.

- Ryo-san - o homem de meia idade se curvou. - Mandou me chamar?

O jovem afirmou com a fronte.

- Tadao, quero que envie uma missiva a Mamoru Aiko em Tóquio.

- Vai deixar Hokkaido ?

- Sim, pretendo ir morar em minha casa na capital. Aproveitarei o pouco tempo que terei ao lado de Shin, que provavelmente viajará com os embaixadores até a Alemanha e Itália, para acertos da aliança.

A mulher à sua frente remexeu-se na poltrona.

- Espero que ele vá para a Guerra e morra lá!

Ryo bebeu o último gole de seu chá e se ergueu. Curvou-se perante ela, inclinado a afastar-se.

- Às nove horas, Tadao a levará para a estação. Adeus.

Ela ficou rubra e ergueu-se.

- Tão frio! - reclamou. - Poderia ter mais consideração?

O homem apenas deu as costas. O assunto estava encerrado.

***

A jovem e bela japonesa Mina jamais soube, mas o principal motivo que levou o rico Ryo a riscá-la de sua lista de "servidoras sexuais" foi suas críticas não veladas a Shin Sakamoto. Obviamente, o jovem Ryo sabia que todas as palavras grosseiras tinham fundamento. Shin era, na mais barata e débil palavra, um arrogante estúpido, sem respeito ou modos. Mesmo assim, via-o como um irmão, e essa irmandade estava acima de qualquer falha.

Haviam se conhecido na infância, aos nove anos. Ambos tinham a mesma idade, mas Ryo nascera alguns meses antes do amigo. Foi numa tarde gelada de janeiro que se viram pela primeira vez. Era aniversário de Shin, e todos os filhos dos mais importantes membros da nobreza foram convidados para o aniversário do menino. Ainda ria quando se lembrava da forma como ele desqualificava todas as crianças que tentavam se aproximar.

"Bakas ", ele dizia, enquanto voltava os olhos ao Botchan . Mas, ele não teve a mesma antipatia pelo menino de rosto redondo e aparência gentil.

- Posso ser seu amigo - constatou, antes mesmo de Ryo ter aberto a boca.

E foi.

Amigos inseparáveis em todas as artes juvenis. Gostavam de fugir juntos e irem banhar-se nas águas de Arakawa. Também andavam pelo subúrbio, olhando com interesse para os pobres e admirando as formas das prostitutas.

- Eu vou me casar com uma mulher que vejo nos meus sonhos - Ryo lhe segredou certa vez, aos onze anos.

Esperou o riso debochado, mas o amigo encarou-o com interesse.

- Você tem visões?

- Todos os dias - confirmou. - Vejo uma linda jovem de cabelos negros e olhos amendoados. Ela tem a pele tão pálida quanto uma gueixa e é tão bela quanto as sakuras na primavera.

Shin pareceu surpreendido.

- Então nunca macule essa imagem - aconselhou, sério. - Nem todos ganham presentes tão preciosos assim de Kami-sama. Respeite isso.

Soube naquele momento que não importaria o homem que Shin se tornasse, sempre o amaria.

Foi mais ou menos na mesma época que Mamoru Aiko apareceu. Shin e Ryo estavam perambulando pela área dos bordéis quando viram um lindo menino de cabelos negros brincando com um carrinho de madeira. Foi instintivo, especialmente para Shin e Mamoru. Eles se viram, conversaram meia hora, e já eram os melhores amigos. Ryo não sentiu ciúmes, pois tudo pareceu natural.

Mas, visivelmente, a mãe de Shin não achou a mesma coisa. Prima distante do Imperador, a soberba mulher descobriu que o herdeiro andava com o filho de uma gueixa. Proibir Shin da companhia só a fez descobrir que a personalidade livre do garoto era ainda mais impetuosa do que imaginava. Após quebrar o quarto todo, o rapaz fugiu de casa. Foi achado um dia depois numa casa abandonada, ao lado de Mamoru. Sem saída, foi levado para uma escola interna nas montanhas e permaneceu lá por anos. Porém, assim que se viu livre, já adulto, a família teve a desagradável surpresa de descobrir que os sentimentos de Shin permaneciam os mesmos.

Apesar disso, o Imperador o amava como um filho. Era o único jovem da família com quem poderia conversar e debater todo o tipo de assunto. Os demais, estafantes, mal conseguiam manter um diálogo num nível aceitável. A recíproca, aliás, era a mesma. Shin idolatrava o Imperador, a quem chamava carinhosamente de "tio", amando-o acima de todas as coisas. E, talvez por isso, os Sakamoto deixaram o filho em paz, para viver sua amizade estranha com aquele rapaz de tão baixa estirpe.

Ryo ria ao pensar nos dois melhores amigos tão diferentes, tão opostos. Mesmo assim, muito necessitados da companhia um do outro. Separá-los era missão impossível.

De fato, ambos estavam sempre juntos. Era a casa Ai que Shin frequentava com mais interesse, e era no quarto de Mamoru que ele dormia sempre que estava em Tóquio. Isso, aliás, era algo que Ryo não concordava. Dois homens dividindo a mesma cama era a coisa mais estranha que ele tivera conhecimento, mas por sorte, sabia que os amigos não estavam envolvidos em nada imoral. Eram apenas irmãos que gostavam de conversar até que os olhos pesassem e o sono batesse à porta.

Ryo sentou-se na sua bonita cadeira, no escritório da família. Os pensamentos ainda voltados para Shin e Aiko, e no quanto desejava poder estar com ambos para uma noitada regada a saquê e sexo com as belas prostitutas que Mamoru agenciava.

A vida era realmente muito divertida. E ele não se fazia de rogado em aproveitar cada momento, pois sabia que assim que a bela de seus sonhos surgisse diante dele, não haveria mais espaço para nada e ninguém.

- Senhor Ryo - Tadao interrompeu seus pensamentos. - Trouxe a lista de entregas para essa semana - apontou um relatório.

O homem estava pálido e apesar de não ter muito interesse na vida dos servos, Ryo indagou:

- Aconteceu alguma coisa.

- Não senhor...

- Ora, me diga! - irritou–se. - Trabalhamos juntos há tantos anos, você foi o mais leal e fiel servo de meu falecido pai, quero apenas ouvi–lo.

O homem pareceu pensar, mas, por fim, murmurou.

- Ouvi alguns boatos sobre... - a voz falhou.

- Sobre o quê?

O silêncio durou alguns segundos.

- Dizem que estão acontecendo muitas coisas terríveis na China.

Ryo gargalhou.

- E você é chinês, por acaso? - rebateu. - Mantenha sua mente longe do que não está em suas mãos - aconselhou. - Sabe o que aconteceria com você, sua mulher e filhos caso alguém o ouvisse?

- Sim, senhor.

- Então saia agora e vá ocupar sua mente com trabalho. Vou viajar e quero deixar tudo arrumado. Estamos numa época turbulenta, e não preciso de um empregado sendo estraçalhado em praça pública pela Kempeitai. - ralhou.

Quando o homem afastou–se, Ryo enfim se acalmou.

- Idiota... - suspirou.

E apartando a imagem da mente, voltou ao trabalho.

            
            

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