Capítulo 5 IV

Aquele final de janeiro terminava como começou: gelado. O ar frio parecia um guerreiro, portando uma arma de lâmina mortal, pronto para cortar e matar. De fato, histórias de pessoas sendo massacradas não só pelas tropas em guerra, mas também pelo poder terrível e cruel da natureza circulavam sem parar, parecendo a morte e sua foice, incomodando e sussurrando o medo em cada vivente.

Apesar disso, o ambiente estava calmo. Era como se a guerra não incomodasse, de fato, a todos que ali estavam. Ora, sabiam que era uma guerra ganha, o Japão e seu invencível exército havia se unido ao sagaz Hitler e ao dinâmico Mussolini. Tanto o fascismo quanto o nazismo pareciam apenas lados de uma mesma moeda que se adequava, com louvor, à mentalidade nipônica de superioridade.

Não que Shiromiya pensasse dessa forma. Ele apenas não estava preocupado. A dor e a violência que havia vivido durante anos, anestesiaram-no. Assim, sua maior preocupação, naquele momento, era ouvir o final da história que Nana contava, enrolado em um cobertor e sentado aos pés da senhora.

- E então, Nana? O que ele fez?

A história era sobre dois jovens amantes. Ele, muito rico e poderoso; e ela, uma empregada órfã. Ambos se apaixonam, mas como em todo bom drama, foram separados por armadilhas impostas pela mãe do mocinho. Anos depois, se casaram e outro vilão apareceu, querendo destruí-la. Mais uma vez, o amor dos dois foi posto à prova .

A velha limpou a garganta e finalizou:

- Ele a salvou do vilão, é claro. Matou-o e ambos viveram felizes para sempre.

Kazue limpou os olhos lacrimejantes. Nana sempre o recompensava com boas histórias, quando ele acertava todos os passos da dança. Num outro dia, ela havia contado para ele sobre o amor de um elfo e um homem que se apaixonavam e tiveram que viver nas trevas por conta daquele amor .

- Esse tipo de amor existe mesmo, Nana-baba ?

A mulher deu os ombros.

- O amor é mais destrutivo que o ódio, Shiro - foi sincera. - A única forma de evitar a dor, é não se apaixonar.

Shiro negou com a face.

- Mas eu amo Aiko-san - afirmou. - E esse sentimento só me faz feliz!

A velha gargalhou.

- Era só o que me faltava, mais um idiota apaixonado por aquele lá - ralhou, apesar do sorriso animado nos lábios.

A réplica de Shiromiya foi interrompida pela entrada de Mamoru.

- Shiro, precisamos conversar.

Kazue se ergueu. Os olhos brilhantes focaram-se no seu anjo protetor, e ele aproximou-se, ansioso.

- Você quer dançar essa noite?

Era a noite do aniversário de Shin Sakamoto. Já fazia uma semana que os preparativos estavam sendo organizados, e aquela manhã de sábado havia começado com alguns empregados contratados encerrando o trabalho de ornamentação.

Shiro sabia de antemão o quanto aquele evento era importante para Aiko. O jovem cortesão estava ansioso e nervoso, constantemente levando as unhas aos lábios para roê-las. Havia se passado meses, desde a última vez que ele vira o amigo. Parecia doente de saudades e eufórico pelo encontro.

- Não sei se estou preparado - disse, franco. - Mas se Mamoru-san quiser que eu dance, eu dançarei com todo o meu coração.

Aiko sorriu diante da resposta. Shin gostava de novidades, gostava da arte. Sabia que o amigo viajava léguas apenas para visitar museus ou assistir uma boa peça de teatro. Quando Shiro entrasse no palco, surpreenderia a todos.

Aquela noite seria restrita a clientes convidados especialmente para a ocasião. "Conhecidos de Shin", como Mamoru costumava chamar, já que os únicos amigos de Sakamoto eram Aiko e Ryo.

À tarde, Keiko foi até Aiko informar que seria sua última noite na casa Ai. Combinaram então que ela tocaria para Shiro, junto com Nana. Tudo estava se encaixando perfeitamente, os planos impecavelmente alinhados.

Quando a noite começou a dar sinais de chegada, Aiko já se encontrava em pé, à entrada da casa Ai, vestido com seu melhor quimono, segurando um ramalhete de flores que havia escolhido para Shin. No fundo, estar pronto para recepcionar os convidados tão cedo acabou sendo de valia, pois Sakamoto apareceu antes do sol sumir.

Aiko se surpreendeu quando o portão abriu. Notou que Shin estava um pouco mais magro, com olheiras profundas e parecia cambaleante. Ele havia bebido? Preocupado, correu até o amigo, trazendo-o para os seus braços, num carinho confortador e intenso.

- Shin-chan... - murmurou nos seus ouvidos. Queria dizer muito mais coisas, mas a boca respeitou as ordens do cérebro e ele ficou em silêncio.

Sentiu as mãos fortes de Shin apertando-o, os corpos tão grudados que pareciam um só. Porém, em seguida, Shin afastou-o com força. O odor de saquê irritou seu nariz.

- Você bebeu? - perguntou o óbvio.

Shin apenas o encarou, raivoso.

- E desde quando eu lhe dou a liberdade pra questionar o que faço?

Aiko ficou espantado com as palavras, pois mesmo quando bebia, Shin não costumava se mostrar agressivo com ele.

- O que aconteceu, Shin-chan?

Shin pareceu querer dar dois passos para frente, mas perdeu o equilíbrio. Aiko o amparou.

- Você precisa de um banho... - disse, firme. - Vamos até meu quarto.

Ao longe, Nana os observava. Mamoru viu em seus olhos o rancor e o ódio que ela nutria pelo membro da família imperial, mas a ignorou. Levou Shin até seu aposento, gritando para que as mulheres trouxessem água quente para pôr numa enorme tina de madeira que tinha no local. Raramente a usava, preferindo o ofurô, que ficava em um banheiro de madeira do lado direito da residência, mas não lhe pareceu boa ideia deixar Shin naquele estado a lidar com suas mulheres.

Midori e Rika trouxeram a água quente em poucos minutos. De cabeça baixa, elas encheram a tina e saíram correndo, antes que Sakamoto pudesse usar sua felina língua contra uma delas.

Aiko o encarou, assim que ficaram sozinhos. Shin estava sentado em uma cadeira, a cabeça baixa, quase dormindo. Então o puxou e começou a desabotoar seu casaco oficial. Quando suas mãos abriram a calça, estremeceu. Observou se Shin havia percebido sua reação, mas o olhar apagado do outro deixava claro que não estava prestando a mínima atenção em suas ações.

Guiou-o até a água quente e o fez sentar na tina. Pegou uma esponja e deslizou nas costas de Shin, ensaboando-o com vigor.

- Nada como um banho quente, não é Shin-chan? - puxou assunto, ansioso por fazê-lo sorrir. - Como foi sua viagem pelo interior do Japão?

Sakamoto demorou cerca de dez segundos para respondê-lo.

- Estive na Coreia.

O exército imperial havia ocupado a Coreia em 1910. Mamoru imaginava que as coisas estivessem calmas por lá, já que já fazia cerca de 30 anos que tudo - inclusive as pessoas - pertenciam ao Japão.

- Não me avisou que iria até a Coreia - observou. - Por favor, quando viajar para fora do país, mande uma missiva. Sempre estou preocupado com você.

Shin atirou a cabeça para trás. Sua nuca encostou levemente na fronte de Aiko.

- O Imperador precisa de minério e outras coisas que não temos no nosso país - contou, sério. Pareceu a Mamoru que o efeito da bebida estava passando. - Não tive escolha a não ser visitar algumas fábricas por lá...

O outro assentiu.

- E como estão as coisas por lá?

Dessa vez não recebeu nenhuma resposta. Shin se ergueu. Aiko entendeu e logo buscou uma toalha, ajudando-o.

- Você quer descansar um pouco antes da festa? - indagou. - Vários conhecidos seus confirmaram presença, e Ryo-san mandou um lindo quimono escuro de presente.

Shin não parecia ouvi-lo.

- Fiz os pratos que você mais gosta e comprei saquê e vinho importado.

Mais uma vez, o silêncio reinou. Respeitoso, Mamoru ajudou-o a ir até o futon, e quando Shin se deitou, ele deixou o quarto, apreensivo.

***

O salão de festas estava repleto de pessoas. Mamoru sorriu para todos, na sua eterna postura doce e acolhedora. Acostumado a receber os clientes, ele deu a cada um a devida atenção, perguntando sobre suas famílias, saúde, e seus negócios. Demonstrou interesse, quando na verdade não o sentia. As indagações eram, sempre, apenas uma cortesia a mais, que o tornava querido por cada um dos frequentadores, o anfitrião mais respeitado de Tóquio.

Após circular pelo salão, ele caminhou até a porta. Os olhos foram em direção a uma das casas do terreno, seu quarto. Shin ainda não havia aparecido, sequer o agradecera pela festa, e não demonstrou vontade de participar do evento. Estava decepcionado e magoado, mas engoliu o choro que despontava na garganta.

- Mande-o embora daqui, Mamoru - ouviu o tom feminino de Nana às suas costas.

Voltou-se para a mulher.

- Já falamos sobre isso, Nana!

A mulher o puxou pelo braço, tirando-o do salão. Quando ambos já estavam sozinhos no pátio, ela voltou a falar, baixo, mas exigente:

- Apenas quero pôr um pouco de juízo nessa cabeça oca! - reclamou. - Shin Sakamoto está no seu quarto, sozinho! E se ele vir o que não deve? O que fará, moleque?

Aiko desviou dela, mas foi seguro com força, soube então que não escaparia.

- Eu sei dos riscos, Nana! - defendeu-se. - Mas, eu não vou me afastar de Shin! - perseverou. - Seria ainda mais estranho se eu pedisse que ele não mais me procurasse, não? O que acha que ele pensaria? No mínimo, iria querer saber os motivos pelos quais o melhor amigo o abandonou.

Nana negou.

- Ele nem se importaria. Aiko, ele não o ama, ele não ama ninguém. Shin só vê a si mesmo. Poderia ficar confuso, mas logo acharia outro para chamar de amigo. Ele só o procura porque você o trata como um deus, único motivo. Acorde, meu querido...

De alguma forma, Aiko entendia aquelas palavras como verdadeiras. Contudo, não as aceitava. Desviando-se dos dedos que insistiam em segurá-lo, ele voltou ao salão. Ainda em conflito, ele passeou os olhos pelo ambiente, quando percebeu Shin sentado à mesa de costume, com Midori no colo.

A visão o incomodou, mas ele manteve a aparente calma. Caminhou até Shin e sorriu para o amigo. O sorriso, porém, sumiu ao perceber que Shin estava bebendo novamente, como um louco.

- Quer comer algo? - questionou, sentando-se ao seu lado. Em seguida, encarou Midori. - Traga o sashimi para Shin experimentar. Preparei mochi também, sei que gosta.

Shin sequer levantou os olhos, completamente focado na bebida. Midori saiu de seu colo e foi em direção à cozinha. Shin não tentou impedi-la, parecia alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Porém, quando ele foi servir-se novamente de saquê, Mamoru segurou suas mãos.

- Fale, Shin - disse, baixo.

- Não há nada para falar.

- Nós dois sabemos que sim. O que você fez para que não possa se perdoar?

Só então Sakamoto o encarou. Não ficou surpreso por Aiko o decifrar com tanta facilidade e apenas sorriu, triste, diante da verdade.

- Nada que qualquer outro homem em tempo de guerra não faça- sussurrou.

Mamoru entendeu instantaneamente.

- Onde foi? Na Coreia?

- Estávamos visitando uma fábrica. Havia uma mulher lá, uns vinte anos, talvez. Ela estava acabada, magra, fraca, esfomeada. Mas, mesmo assim, tirou forças sabe-se lá de onde para virar na direção da minha comitiva e nos xingar.

Aiko permaneceu em silêncio, esperando-o prosseguir.

- Os homens então a pegaram e a levaram para a sala do diretor da fábrica. Amarram suas pernas e braços na parede e fizeram uma fila. Eu fiquei olhando aquilo pelo tempo que durou, até que chegou a minha vez.

Aiko soltou suas mãos. Sentiu aversão e não quis ouvir mais, mas Shin o encarou com seriedade e percebeu que não podia fugir.

- Só segui o fluxo. Era o que se esperava de mim, não? Além disso, era só uma coreana... Quem se importa com os coreanos?

Bebeu novamente. Subitamente, tremeu.

- No dia seguinte, eu voltei à fábrica e o corpo dela estava lá, ainda amarrado. Haviam-na matado durante a noite.

- Shin...

- Desde então, eu só consigo alguma paz quando estou bebendo. Até nos meus sonhos a cadela aparece para me assombrar - riu. - Nunca pensei que fosse tão fraco assim.

Ele nunca admitiria a culpa, mas Mamoru a percebia estampada nos olhos escuros. Quis dizer alguma coisa, mas Midori voltou e ele recusou-se a falar sobre aquele horror diante dela. Encarou a japonesa, e se afastou.

Desde que assumiu a casa Ai, tentava cuidar das prostitutas da única forma que podia. Mantinha sob elas um regime rígido de normas imutáveis. Os clientes eram selecionados e, caso algum agisse em desacordo com as regras, era riscado sumariamente da lista, sem nenhuma chance de retorno.

A Casa Ai era conhecida pela região como o ambiente mais limpo e acolhedor possível. Os homens se sentiam amados pelas mulheres que lá estavam, coisa rara naquela época. Na Casa do Amor havia tempo para que seus problemas fossem ouvidos, e o sexo costumava ser uma arte de conquista e paixão.

Eram tão iludidos com o aspecto afável do ambiente que mal percebiam os dois seguranças no portão, que trabalhavam lá toda noite, a encará-los com severidade. Sempre havia música, boa comida e companhia. Era um paraíso masculino, do qual nenhum deles se incomodava em pagar caro para usufruir.

A maioria das mulheres que passavam pela Casa Ai vinha da rua, onde as regras eram terríveis. Muitas chegavam machucadas e feridas mortalmente na alma. A maior parte nunca se recuperava, vivendo num eterno inferno interior, até que sua vida exterior, enfim, desse seu suspiro final.

Muito cedo, Aiko aprendeu que não podia salvar a todos. Saber dar as costas e fingir que não via, era o mínimo que uma pessoa podia fazer para tentar manter a própria sanidade.

Achegou-se à saída do salão e observou o movimento lá dentro. Viu Midori acariciando os cabelos de Shin, silenciosa e compreensiva, obediente ao que aprendeu. Fechou os olhos, recusando-se a olhar para aquela ação que parecia cortar seu coração.

- Vou para o palco - Nana disse às suas costas. - Shiro está pronto para entrar.

Ele voltou-se para a velha.

- Como ele está?

- Colocamos o quimono mais bonito que tínhamos e a peruca negra que sua mãe usava. A maquiagem o deixou ainda mais feminino. Ninguém aqui dentro acreditará se dissermos que é um homem.

- Deixe a caixa preparada, porque tenho certeza que ele receberá muitos presentes dos seus novos fãs. Duvido muito que alguém não se encante - sorriu.

***

Nana sentou-se no chão do palco de madeira. Suas costas doeram, mas houve uma vibração juvenil nela quando segurou o Shamisen . Ao seu lado, Keiko sorriu. Com o Koto nas mãos, ela aguardou as mãos enrugadas de Nana iniciarem a bela melodia. Havia um silêncio respeitoso no ar, quebrado apenas pelas respirações pesadas dos homens que observavam, com atenção, o início da composição. Tudo estava escuro, no breu. Apenas uma ou outra vela iluminavam os rostos. Mamoru sorriu perante o cenário idílico que criara.

Porém assim que os primeiros acordes ficaram audíveis, o palco se iluminou exatamente no ponto onde uma pequena gueixa surgiu. Ela estava de joelhos, um pano branco diante de si, seu rosto baixo, as mãos delicadas escoradas nas pernas, o olhar calmo e gentil.

Houve algumas exclamações abafadas diante de tanta beleza. Havia algo que beirava ao êxtase nos homens, uma admiração instantânea. Mamoru desviou os olhos do palco e encarou a plateia. Desde que a mãe morrera, ele não via algo semelhante na Casa Ai.

Voltou novamente os olhos para o palco. Sorriu para Shiro quando percebeu que o menor o encarava. Estava assustado, intuiu nos olhos amendoados. Mas, mesmo assim, havia nele uma beleza que nada poderia igualar.

A música soou com mais força e, então, viu-o se erguer. Uma das mãos bailando como uma cobra no éden e a outra segurando um leque floral. Os passos leves foram primeiro à direita, um giro e, então, ele foi à esquerda, o leque balançando no ar; ora com força, ora com delicadeza.

A canção se tornou mais intensa, e então Shiro pareceu fazer amor com a melodia. Houve um clímax súbito, onde seus passos adquiriram velocidade. E então, tão surpreendente quanto começou, tudo acabou. O som do Koto e do Shamisen finalizaram no mesmo instante que Shiro caía no chão, como se estivesse sendo esmagado por todas as guerras, todas as amarguras, todas as dores do mundo.

Os olhos de Aiko encheram-se de lágrimas, mas ele não foi o primeiro a se erguer. Palmas não eram comuns em casas como a Ai - e, bem da verdade, em nenhum lugar do Japão -, mas não houve um único homem que não tivesse se colocado de pé. Pareciam todos espantados e encantados, na mesma proporção.

Contudo, a musa de todos os sonhos que se formaram naquela noite não permaneceu no ambiente para receber os cumprimentos. A luz novamente se apagou e, conforme combinado, Shiromiya saiu pela porta lateral.

Em segundos, estava no corredor. Correu até o quarto de Mamoru, pois sabia que o chefe iria até ele para avaliar sua performance. Arrancou a peruca, já que os grampos doíam, e sentou-se na cadeira. Porém, não precisou aguardar muito. Cerca de cinco minutos depois, a porta do quarto de Aiko se abriu.

- Nunca vi nada igual... Nada - Mamoru disse, puxando-o para seus braços. - Você é perfeito, meu amor.

Shiro abraçou-o, feliz. Encostou o rosto no peito firme de seu ídolo, e aspirou seu perfume.

Subitamente, porém, palmas irônicas surgiram. Ergueu os olhos e encarou um homem de aparência assustadora, olhar frio e imponente presença.

***

O som às suas costas, fez Mamoru saltar. Olhou para Shin e viu seus olhos possessos, como se estivesse cometendo o pior dos crimes em abraçar o pequeno. Estremeceu perante o ódio, e afastou delicadamente Kazue para trás.

Shiro desviou-se, constrangido. Pareceu triste pelo distanciamento, mas logo o olhar voltou a se dirigir à porta e ele encarou Shin, que mantinha o ar de extrema arrogância, mesmo claramente alcoolizado.

- Então, a linda e encantadora gueixa é um garoto?

Shin deu dois passos para frente, aproximando-se perigosamente. O olhar cruel o mediu, sem piedade. Era como se buscasse defeitos no corpo frágil e, não achando nenhum, irritou-se ainda mais.

- Shiro é o nome dele - Aiko contou. - Eu o achei há algum tempo e Nana ensinou-o a dançar. Hoje foi sua primeira apresentação, e ele a fez especialmente para o seu aniversário.

A frase macia de Mamoru tinha a intenção de apaziguar os ânimos de Sakamoto. Compreendendo imediatamente o intento, o efeito em Shin foi o inverso.

- A única coisa que me interessa num garoto como esse não é a dança, Mamoru - disse, puxando Shiro pelo braço. - Saia - ordenou.

Aiko nunca recusou a nada a Shin. O imponente herdeiro da família Sakamoto sempre havia sido franco no que queria, e Mamoru esforçava-se para cumprir o que ele desejava, sem sequer pensar a respeito. Era como se tivessem um acordo mudo, algo entre eles que nunca havia sido contestado ou questionado. Todavia, ao ver o semblante de horror que Shiro adquiriu, ele o segurou no outro braço.

- Solte-o - pediu.

Contudo, a voz era fraca. Era a primeira vez naqueles muitos anos que se conheciam que Mamoru se objetava ao homem, e havia nele um medo irracional no ato. O que faria caso Shin o odiasse por isso? Não poderia vê-lo partir... Não aguentaria. A vida já era terrível demais para que nunca mais visse o rosto que tanto amava.

Foi então que ele percebeu Shiromiya o encarando. E, acima disso, notou que o rapaz podia ler sua alma e compreender seus sentimentos. O pobre Shiro colocava-se disponível para o sacrifício, para qualquer coisa que aliviasse a culpa e o medo de Aiko.

- Não se preocupe, Aiko-san - Shiro murmurou. - Eu não ficarei aqui.

A risada de Shin foi diabólica. Ele estava, claramente, ridicularizando o rapaz.

- Farei com que esteja, docinho - apertou ainda mais forte o braço de Shiro.

Mas Aiko entendia o que Shiromiya declarava. Kazue poderia estar sendo abusado mais uma vez, porém, sua mente e sua alma estariam na infância perdida, nas brincadeiras com a espiga de milho que considerava seu amigo, e no colo da mãe.

Sentindo o ar faltando em seus pulmões, Mamoru deu as costas e saiu do quarto.

***

Mamoru sentou-se no chão de madeira. Estava em frente à porta do próprio quarto, ouvindo o som contínuo de Sakamoto. Escondeu o rosto com as mãos, chocado, angustiado, derrotado. Mas não era apenas a própria consciência que o esmagava, Nana havia ouvido toda a conversa do quarto e surgiu diante de si, revoltada.

- Passei muitas noites pensando nos motivos que você tolera isso, Mamoru. - A voz dela era firme. - Pensei que você amasse Sakamoto, mas não acredito muito nisso, já que o que vi não é amor, e sim doença.

As lágrimas de Aiko começaram a escorrer pela pele pálida. Ele encarou a velha.

- Depois, pensei que era apenas instinto de sobrevivência. Ora, caso tivesse uma relação muito próxima com o querido protegido do Imperador, estaria automaticamente excluído de qualquer desconfiança. Mais tarde, imaginei que era medo. Se fosse investigado, Shin Sakamoto imediatamente seria avisado pela família, e ele viria até você e o preveniria antes que fosse tarde demais. Pensei ser essa a resposta: você tinha medo e queria ter a chance de fugir. Mas depois acordei para a vida. Você, na verdade, é apenas um covarde cego de paixão. Um amor não correspondido que o faz ser manipulado como um boneco por Sakamoto. Você, Aiko Mamoru, mancha a memória da sua mãe, mancha a mulher que ela foi, e eu tenho vergonha de um dia ter trocado as suas fraldas.

A crítica dura e fria foi o estopim para que Aiko, enfim, explodisse. Ergueu-se e marchou em direção à porta.

***

Quando Aiko saiu do quarto, Shiro foi solto por Shin. Então, caminhou até o futon e retirou o quimono. Toda a ação foi realizada com a face baixa, envergonhada. Nunca olhava para seus algozes, porque acreditava que depois jamais poderia esquecer seus rostos. Aliás, tinha em si essa certeza, pois ainda se lembrava de cada detalhe da face do primeiro homem que o submetera. Ainda sentia com exatidão seu cheiro asqueroso e sua boca molhada. Nos seus pesadelos, encontrava-o nos corredores, e ele sempre o estuprava novamente.

- Muito bonito - Shin admirou suas formas. - Deite-se.

Shiro não pestanejou. Deitou-se no futon e virou-se de costas. Segurou com força a colcha e fechou os olhos. Sabia de antemão que a dor era extremamente forte e, de fato, ela veio com insuportável rapidez. Ele sentiu que Sakamoto se ajoelhava atrás dele e erguia seu quadril. Cerrou os dentes para não gritar e ouviu os gemidos do homem, que parecia estar gostando muito da experiência.

Já havia sentido muita dor em todas as outras vezes. Lembrou-se de quando o irmão lhe vendera para três irmãos que o mantiveram numa cama preso durante uma noite toda. Lembrou-se de um velho que lhe enfiou um pedaço de galho de madeira fino, porque não conseguia ficar duro... lembrou-se das muitas vezes que era machucado até quase desmaiar de dor. Contudo, dessa vez, a dor era diferente. Era um misto de repugnância e piedade... Mesmo ali, naquele momento, ele ainda pensava no desespero estampado nos olhos do seu anjo Mamoru.

A velocidade de Sakamoto aumentou, e sentiu as mãos grandes do homem apertando sua cabeça contra o futon. Não gritou, nem mesmo quando o ar começou a faltar. Podia morrer ali, naquele instante, não se importava.

Então ouviu as batidas na porta. A voz de Aiko chegou até ele, mas não tinha forças para se erguer. Sentiu Shin saindo de dentro de si, sem ainda ter terminado. O homem foi até a porta e a abriu. Aiko entrou, empurrando-o e correu até a cama. Então os dedos de Mamoru acariciaram sua pele, e ele o cobriu. A voz chorosa chegou até ele, e o pedido de perdão que ouvia de Aiko quase o fez rir.

Por que se desculpar? Ele faria aquilo um milhão de vezes, se preciso fosse, para que Mamoru não se sentisse triste.

- Foi a pior foda da minha vida - ouviu a voz de Shin. Só então o olhou e percebeu o ódio estampado no olhar. O que havia feito para atrair tanta raiva? - Parece que fiz sexo com uma boneca sem vida.

Aiko se ergueu. O rosto dele estava rubro, nunca o havia visto assim.

- Vá embora - mandou.

- Eu? Mande esse moleque embora! - Shin gritou, apontando Shiro. - Eu durmo aqui, e você sabe disso!

- Vá embora da minha casa! - gritou. - Desapareça daqui, e nunca mais volte!

Tanto Shiro quanto Shin ficaram pasmos com a ordem. Todos que conheciam Aiko sabiam da devoção dele para Sakamoto. Ele vivia cada dia em prol da felicidade do melhor amigo. Nada havia preparado Shin para aquilo.

- Peça desculpas, Mamoru, e eu o perdoarei - Shin disse, a voz estrangulada.

- Saia ou mandarei os seguranças o tirarem à força.

- Sabe que se atrever-se, eu mando a Kempeitai invadir a Casa Ai e destruir tudo... Eu mando prendê-lo, matá-lo! - ameaçou, aos berros.

Mamoru se aproximou. Os rostos quase grudados, a raiva pungente escapando de si.

- Mande! Eu não tenho medo de você! Vá agora atrás dos seus mercenários e mande-os para cá. Eu ficarei esperando, morrerei se preciso for, mas eu juro por Kami-sama e pela memória de minha mãe que você nunca mais tocará um dedo em ninguém da Casa Ai!

Shin ergueu a mão para esbofetear Aiko, porém, algo o travou e ela parou antes de alcançar o objetivo. Mordendo os lábios de raiva, ele saiu do quarto e da propriedade como um louco.

Assim que sumiu no horizonte, Nana surgiu à porta. Ela encarou Aiko com seriedade, e ambos pareceram conversar com o olhar.

- Não, ele não chamará a Kempeitai - Mamoru disse, não tão certo. - Ele jamais faria isso.

- E se o fizer?

- Verei tudo pelo lado bom, Nana - sorriu. - Talvez a morte seja melhor do que essa angústia sem fim.

A mulher aquiesceu e ambos se mantiveram em silêncio. Voltando ao futon, eles passaram o resto da noite cuidando de Shiro.

                         

COPYRIGHT(©) 2022