Capítulo 3 II

- Você sai para comprar peixe e me traz um moribundo? - Nana gritou, indiferente ao corpo dormente no leito.

Mamoru encarou a velha e sorriu feliz.

- Ele não é a criatura mais linda que já viu na vida? Estou simplesmente encantado, poderia ficar olhando-o para sempre.

Estavam em um dos inúmeros quartos da casa. O garoto dormia exausto e alheio ao que acontecia. Aliás, fazia sete dias que ele já não tinha consciência de sua realidade, quando, numa oportunidade de ouro, o irmão o vendera para três rapazes ao mesmo tempo. Foi tão abusado e maltratado, que suas forças esvaíram-se antes mesmo dos três terminarem. Ao ser devolvido para Satoshi, não conseguia mais andar, e foi atirado na carroça, aguardando a morte.

- Diga-me que ele não é perfeito para ser um taikomochi e eu o mando embora agora.

A velha aproximou-se da cama. Espantou-se com a aparência bela do jovem miúdo, mas manteve a carranca.

- Estamos em guerra e você me traz mais uma boca pra comer - perseverou.

- O garoto não comerá de graça. Ele vai trabalhar!

- Pelo estado do traseiro dele, se deitar-se com mais algum homem, vai rasgar-se permanentemente.

Aiko riu, triste. Era bem verdade que durante o banho que Nana e ele haviam dado no rapaz, perceberam que ele havia sido usado com brutalidade doentia por um tempo bastante longo. Mas também sabia que um tempo de abstinência lhe devolveria a forma.

- Não vou vendê-lo - afirmou, decidido.

A velha irritou-se.

- Era só o que nos faltava! O que fará com esse pirralho? É justo ele comer sem ajudar a comprar a comida?

- Já disse que ele vai trabalhar - foi novamente firme. - Mas não com sexo. Vamos ensiná-lo a dançar.

- Dançar? Você definitivamente ficou louco.

Mamoru postou-se atrás da mulher e a abraçou, carinhoso. Depois lhe deu um beijo estalado na bochecha e continuou:

- Você foi a mais atraente e maravilhosa vadia que já dançou nesse mundo, Nana - ele amorteceu as palavras com um carinho nos cabelos grisalhos. - Se alguém pode ensinar esse garoto a dançar, é você. E pense bem nisso. Imagine-o como um taikomochi vestindo um quimono preto com flores brancas, e balançando-se ao som de pequenos tambores, selvagemente, num kabuki .

Nana pareceu interessada, mas logo negou com a face.

- É loucura.

- Loucura é, mas imagine o quanto chamará a atenção. Será nosso mistério, a mais bela joia que teremos, nosso diferencial.

A mulher fez um muxoxo baixo, e Mamoru soube que havia conseguido dobrá-la. Voltou-se novamente para o futon, e sentou-se ao lado, observando o menino. Como mesmo o irmão havia dito que era seu nome antes de ir embora sem olhar para trás?

Kazaki? Kazama?

- Kazue... - recordou-se, instantaneamente.

Como se chamado de um pesadelo, os olhos amendoados abriram-se e encararam o jovem cortesão. Houve um misto de apreensão e desespero, mas Mamoru logo o acalmou, com seu famoso sorriso angelical.

- Kazue, né? - ele indagou, amistoso.

O garoto tentou sentar, mas uma forte dor nas ancas, fê-lo voltar a deitar-se.

- Fique calmo, Kazue - pediu. - Está entre amigos. Eu sou Mamoru Aiko e essa - apontou a velha - é Nana. Sou o dono dessa casa, e você é bem vindo a ela.

O rapaz pareceu confuso, mas em seguida ele abriu a boca pela primeira vez, deixando Aiko chocado com seu tom gentil e delicado.

- Obrigado, senhor Aiko. Mas qual é o preço de sua generosidade?

Pergunta coerente, sabia. Kazue, com certeza, jamais havia recebido um lugar quente para repousar sem ter que pagar um alto preço por tal.

- Você vai comer - Aiko indicou-lhe um prato com peixe próximo do futon. - E vai dormir. Quero que descanse. Quando estiver melhor, vamos conversar.

Todavia, não conseguiu deixá-lo na ignorância. Percebeu o pânico e o medo nos lindos olhos amendoados e segurou suas mãos.

- Kazue... - chamou, gentil. - Quando ficar melhor, vamos ensiná-lo a dançar - sorriu. - Você já dançou alguma vez?

O rapaz negou.

- Pois Nana vai ensiná-lo e você ganhará seu sustento assim, está bem? Fique tranquilo. porque somos boas pessoas e não vamos machucá-lo nem abusar da sua confiança.

Então se foi.

Naquele dia, Kazue Shiromiya realmente acreditou que ele fosse um anjo. E, era uma sorte que estava sendo acolhido em suas asas.

***

O cheiro de peixe acordou-o novamente. Shiromiya ainda estava fraco e frágil, mas a fome era maior que qualquer coisa. Abriu os olhos e observou a bandeja ao lado do futon. Peixe, pão e rodelas de cebola. Nunca havia visto nada mais apetitoso em toda a vida.

Já se esgueirava em direção ao prato, quando um gato gordo surgiu diante dos seus olhos.

- Olá - brincou, encantado pelo belo animal.

Era malhado, as cores laranja, branca e preta se fundindo como se num pote de tinta fresca. Os olhos verdes enormes o encararam curiosos, até que ele voltou-se para o prato.

- Não! - o garoto gritou, mas não teve sucesso em impedir que o gato roubasse seu pedaço de peixe.

Não pensou muito quando o animal saiu em disparada com sua comida na boca. A fraqueza foi esquecida e a sua necessidade provocada pela fome lhe deu forças. Pondo-se de pé, ele correu atrás, saindo do quarto e chegando até o corredor. A visão o deixou tonto por alguns segundos.

A Casa Ai era na verdade um conjunto de pequenas casas de madeira num enorme terreno, repleta de árvores, um bonito jardim e uma fonte de água limpa. Era quase um pequeno paraíso e, para Shiromiya, acostumado à sujeira e pobreza, serviu de ânimo.

Porém, o ronco no estômago fê-lo lembrar-se de coisas mais urgentes que a admiração pelo lugar.

- Gatinho! - chamou. - Vem cá!

Estava a poucos metros do animal quando uma voz feminina o alertou.

- Não toque no gato!

Voltou-se para trás. Duas belas e jovens mulheres o encaravam com interesse. Ele baixou os olhos, assustado e nervoso.

- Como é bonito... - a mais jovem delas aproximou-se e segurou seu rosto, medindo-o. - Nunca vi nada igual.

- Nana comentou que Mamoru vai torná-lo um taikomochi - a outra anotou. - O que acha? - indagou à amiga.

- Acho que será uma difícil missão deixar os clientes longe dele.

Elas riram baixinho.

- Sou Keiko. - A maior se apresentou. - E essa é Midori - apontou a outra. - Somos parte da Casa do Amor - parecia sentir-se honrada. - E você, quem é?

- Shiromiya Kazue - disse, simples.

- Nossa, que nome grande. Não é grande, Mi-chan ? - voltou-se para a amiga.

- Sem dúvidas.

-Vamos chamá-lo de Shiro - disse. - Só Shiro.

O rapaz concordou. Que escolha tinha?

- Prazer em conhecê-las - foi sincero. - Mas, me deem licença, pois agora vou tentar recuperar meu almoço.

- Esqueça seu almoço - Keiko ordenou. - Vá à cozinha e pegue outro peixe. Deixe em paz esse gato maldito.

- Maldito?

- É o gato de Sakamoto Shin.

As duas viraram os olhos com desprezo.

- Sakamoto Shin?

- Ele é parente do Imperador e amigo de nosso chefe Mamoru. Mas, acredite, tudo de bom que existe em Aiko falta em Shin. Não entendo como ambos podem se dar tão bem.

Shiro ficou confuso, mas ambas já estavam tagarelando sem parar e ele não achava um gancho para interrompê–las.

- Evite que Shin o veja - Midori alertou. - Ele dorme com homens também e se vê-lo, vai querer levá-lo para cama. Advirto-o que será a pior experiência de sua vida.

Pior que as demais? Shiro duvidava.

- Ele é muito feio?

- Ele é um dos homens mais bonitos que já nasceram no Japão. É grande, tem a pele rígida e uma bunda capaz de enlouquecer qualquer uma. Mas trata todas as mulheres e homens com quem se deita apenas como buracos onde enfia o pau.

Shiro ficou espantado pelas palavras, mas preferiu se abster de opinar.

- E nunca toque no gato dele. - A mulher prosseguiu, apontando o felino que já se deliciava com o peixe. - O gato é provavelmente a única coisa que ele ama e respeita no mundo todo.

- O gato, o Imperador, Ryo-san e Mamoru-san - Keiko completou.

O som de passos pesados fê-las virarem para trás.

- Duas matronas enxeridas. Vão se arrumar e sumam da minha frente! - Nana berrou, fazendo com que elas saltassem e corressem em direção aos seus respectivos quartos.

A velha pareceu espantada por vê-lo em pé, mas tão logo seus olhos se pousaram no gato que comia, entendeu.

- Vamos à cozinha que lhe darei mais comida - ela disse. - Esse gato dos infernos rouba nosso alimento e anda por aqui como se fosse um rei - resmungou. - Ouvi o que elas lhe disseram, e entenda aquelas palavras como um bom conselho: Shin Sakamoto não é a pessoa que você desejaria como amigo ou amante.

Shiro não queria nem amigos nem amantes.

- E o maldito ainda virá nessa noite! - ela ralhou, como se o garoto fosse capaz de entender seu surto. - Odeio Mamoru por aceitá-lo nessa casa. Só ele não percebe que Shin Sakamoto é o próprio demônio?

O menino sentou-se à mesa. Já havia conhecido muitos demônios, homens suados e fétidos que se forçavam para dentro dele, enquanto lhe cobriam os lábios com as mãos sujas para que não gritasse.

Ela lhe deu uma tigela de sopa e um prato com peixe. Enquanto degustava o alimento, Shiromiya sorriu. Não temia nada e nem ninguém com a barriga cheia.

***

A noite estava morna, apesar do frio que andava fazendo naquela tarde. Pequenos insetos batiam contra as luzes, causando um barulho seco e momentâneo. A casa Ai abriu suas portas e Mamoru colocou-se à entrada para cumprimentar os clientes que chegavam. Ansioso para ver o rosto de Shin, ele estendeu o olhar ao longe, porém nenhum sinal. Em vez de parecer frustrado, no entanto, abriu o sorriso marcante e habitual, para cada um que cruzava por ele, completando a recepção com cumprimentos formais e breves comentários sobre o tempo. O resto da rotina, ficava a cargo dos sorrisos sedutores das mulheres, tão logo os homens adentravam o salão.

- Boa noite, senhor Aiko.

A saudação fê-lo sair do torpor. Aiko encarou o antigo cliente, Kenzo, com um sorriso mais do que amistoso.

- Há quanto tempo não o vejo? Acredito que a última vez que esteve aqui, a casa ainda era dirigida por minha mãe.

O homem, de cerca de cinquenta anos, encarou o jovem e devolveu-lhe o sorriso.

- Soube o que aconteceu à bela Masami - ele lhe deu as condolências. - Uma perda irreparável - sussurrou. - Pessoas boas não deviam morrer.

Aiko baixou a face.

- É verdade.

Mamoru ergueu os dedos, chamando uma das meninas, Keiko, para fazer companhia ao homem.

- Por onde esteve?

Houve um breve pestanejar, mas logo a resposta surgiu, acanhada.

- Na China.

Então o homem havia sido chamado para lutar na China? Mamoru resolveu não prosseguir no diálogo, pois só a menção lhe dava calafrios. Fingindo seu melhor ar despreocupado, ele voltou-se para a bonita prostituta:

- Cuide bem do senhor Kenzo, Keiko - pediu. - Ele é um herói nacional.

O homem curvou a fronte, parecendo culpado. Mas, em seguida entrou.

Aiko fechou os olhos, cansado daquilo tudo. Talvez Nana estivesse certa e ele necessitasse abandonar o ofício. Se fosse morar numa casa no interior, quem sabe seu fardo não fosse tão pesado. Quem desconfiaria de um simples camponês?

- Sempre valerá a pena regressar, se a imagem que terei em cada volta, será a sua de olhos fechados, me aguardando...

O leve sopro de Shin fez Mamoru rir.

- Quer um beijo? - Sakamoto brincou.

O outro abriu os olhos, encarando-o. Estava ainda mais bonito, mais forte e determinado. Seus olhos continuavam intensos, sua pele estava levemente bronzeada e os generosos lábios pareciam um pouco secos. Ao contrário do resto da humanidade, a guerra parecia estar fazendo muito bem a Shin, pois seu semblante brilhava em um contentamento absurdo.

- Não quero seus beijos - Aiko o importunou. - Você beija qualquer um.

- Mentira - Shin chispou os olhos. - Eu durmo com qualquer um. Eu alivio minha inquietação masculina com qualquer um. Mas beijar é só você.

Um pigarrear fê-los desviarem a atenção para o homem que acompanhava Sakamoto.

- Não se incomode com as frases de efeito de Shin, Takako-san - Mamoru disse ao outro oficial do exército. - Ele gosta de provocar, você sabe!

- Nós somos apenas amigos - Shin seguiu sua linha de raciocínio, encarando Takako.

E aquilo era real. Mamoru não podia dizer que se ressentia do fato. Shin lhe devotava a mais pura e leal amizade, sendo que o jovem cortesão era conhecido por ser o único a quem Sakamoto tratava com consideração e respeito.

Mesmo assim, vê-lo correr em direção às mulheres, cortou seu coração. Observou ao longe ele abraçar Yuki e cheirar a nuca de Rika. Elas riram baixinho, como se estivessem adorando, o que Aiko não duvidava.

Suspirou.

Amava Sakamoto desde criança. Não saberia precisar exatamente quando começou a se apaixonar, mas desde suas primeiras lembranças, sabia que Shin era seu escolhido. Porém quis o irônico destino que Shin não só não o correspondesse, como se deitasse com qualquer um que lhe despertasse interesse: homens ou mulheres.

Qualquer um... menos Mamoru.

- Quando teremos carne nova na casa Ai? - Shin surgiu novamente ao seu lado, enlaçando a sua cintura.

Quis gritar que ele era carne nova, que ele estava ali à disposição, mas tudo que fez foi dar os ombros.

- Não tenho culpa se você já dormiu com todas as prostitutas da cidade.

- Isso soa ciúmes - o moreno o importunou.

Aiko fechou os olhos, respirando fundo. Em seguida, o encarou.

- Desculpe, estou exausto.

- A guerra o incomoda mais do que devia, Aiko - Shin observou. - Não carece temer, pois eu estou ao seu lado e nada vai lhe acontecer. É nossa sina sermos vencedores.

Aiko assentiu, a cabeça baixa. Apesar da ânsia, apertou os lábios para não retrucar a última frase. Só Deus sabia o quanto orava à noite pelo fim daquela guerra e a derrota do Japão.

- Eu fiz o chá de ervas que você gosta - contou. - Preparei as folhas durante a tarde, quer que eu o sirva agora?

- Sim, mas antes quero ver Minikui–sama .

Mamoru riu baixinho, achando graça da seriedade na voz de Sakamoto ao falar do gato. O felino malhado havia sido entregue em suas mãos quando ambos eram adolescentes. Nunca esqueceria o dia que encontraram o filhote abandonado em um caixa de papelão perto do rio. Shin o pegou nos braços, os olhos brilhando de contentamento, um amor instantâneo.

"Você vai cuidar dele" - disse a Mamoru. "Ele é meu, mas será você que vai criá–lo".

Acostumado a obedecer sem questionar, o menor trouxe o gato para casa e o criou com todo o mimo que suas possibilidades permitiam. Já adultos, certa vez, ele questionou Sakamoto sobre a decisão, e a resposta fez seu coração bater apressadamente durante dias.

"Ele é nossa ligação. Assim, não importa o que aconteça em nossas vidas, você sempre terá que me aceitar por perto, porque Minikui é meu".

- Minikui estava dormindo no meu quarto até agora há pouco. Quer ir lá?

Shin negou.

- Depois irei vê-lo, agora quero beber e aproveitar sua companhia.

Mais uma vez, o coração do jovem Mamoru alegrou-se perante as palavras impensadas.

- Amanhã viajarei novamente ao interior, a fim de verificar recursos. Não posso perder nenhum segundo, não é?

***

- Já ouviu falar no Departamento de Prevenção de Epidemias e Purificação de Água?

Mamoru sorriu, enquanto servia o chá para os dois homens.

- Fica no nordeste da China, não? - Shin indagou a Takako, mas seus olhos estavam fixos em Mamoru. Sorriu quando a xícara foi totalmente preenchida, e as mãos bateram de leve no ombro do amigo, num agradecimento mudo.

- Dizem que não é bem um departamento pacífico - Takako sorriu, os dentes branquíssimos.

- O que não falta são boatos e lorotas nessa época de guerra - Shin desconversou.

O som de botas na madeira polida do chão fez com que ambos se virassem em direção ao homem que se aproximava. Kenzo estava rubro, o olhar assombrado e agoniado, a boca entreaberta, como se todas as verdades do mundo pudessem escapar-lhe, trazendo o caos.

- Acredita demais na integridade do exército, Shin Sakamoto - ele o enfrentou, com raiva.

Mamoru ergueu-se rapidamente, colocando-se entre os homens. As mãos começaram a tremer sem controle, enquanto ele empurrava levemente Kenzo para trás.

- Já bebeu demais, meu querido - suas palavras eram carregadas de implicações. - Tenho certeza que sua senhora o espera com ansiedade no lar.

Mas o homem não se deixou levar. Estava firme, rígido, estancado no lugar.

- Antes de ficar babando pelo seu covarde exército, procure se informar sobre a unidade 731.

Aiko começou a levantar as mãos, numa posição teatral.

- Por favor, não vamos falar da guerra aqui - pediu. - Estamos numa casa de amor! Nossas meninas querem ser amadas e não incomodadas com as coisas que acontecem lá fora.

Contudo, era como se sua voz fosse apenas uma brisa que soprava, sem incomodar a ninguém.

- Fiquei uma semana inteira fora - Shin comentou, indiferente. - Voltei e minha única intenção é ficar perto de meu amigo. Portanto, recolha-se a sua insignificante existência! - O tom aumentou, e logo o jovem homem colocava-se em pé. - Verme! - xingou. - Desapareça da minha frente antes que eu perca o resto da paciência que tenho! - mandou. - E caso eu saiba que anda espalhando mentiras e insinuações maldosas sobre nosso sagrado exército, eu mesmo ordenarei sua morte como exemplo!

Mamoru assustou-se perante o grito, mas tentou manter a calma. Shin era assim, impetuoso. Contudo, ele não tinha o costume de cumprir ameaças, então imaginou que na manhã seguinte tudo estaria bem para Kenzo, caso o homem permanecesse em silêncio. Voltando-se ao senhor, sorriu tranquilizador, e já estava indicando a porta de saída quando a voz do homem se ergueu, em direção a Sakamoto.

- Pirralho maldito! Estive lá desde 37, eu vi com meus próprios olhos atrocidades que você sequer sonha acontecer. Vi prisioneiros sendo sentados nus sob o gelo e deixados para morrer. Vi pequenas crianças chinesas enfiadas em buracos fundos e sendo enterradas vivas. Vi homens sendo colocados em minúsculas câmeras e sendo queimados apenas para que o exército pudesse se divertir - A voz foi baixando, assombrada. - Vi mulheres sendo estupradas por grupos enormes de homens... Estacas de madeira sendo enfiadas em suas genitálias...

Kenzo encarou Mamoru. Os olhos de Aiko estavam encharcados, mas havia em seu brilho algo maior que o assombro. Era medo.

- Não temo a Kempeitai - prosseguiu. - Nada do que me fizerem, pode ser pior do que acontece aos chineses. Eu vi o inferno, e nunca mais poderei esquecê-lo, mesmo que morra tentando.

Seu discurso foi ouvido por todos. Algumas das prostitutas ficaram comovidas, enquanto outras sorriram, desdenhosas. Os homens, ao contrário, não demonstravam em seu semblante qualquer sentimento. A seriedade de Shin amedrontou ainda mais Aiko. Antes, porém, do jovem oficial dizer qualquer coisa, Kenzo deu as costas e saiu. O alívio de Aiko foi tão grande que ele quase suspirou.

- Por favor, não faça caso - pediu ao amigo. - Kenzo-san está muito perturbado desde que regressou da China.

Mas havia uma frieza absurda em Shin que despertou o desespero no cafetão.

- Por favor, Shin-chan - implorou. - Como você mesmo disse, ficou uma semana fora e amanhã irá viajar novamente. Não desperdice nosso pouco tempo com alguém que não está com boa saúde mental.

Shin o encarou. Calmo, ele ergueu as duas mãos de Aiko e depositou um beijo devotado em cada uma delas.

E então saiu.

***

Aiko bateu com força na porta de madeira. Ouviu o som de passos, e irritou-se com a demora da pessoa que lá estava. Voltou a bater, dessa vez com mais força e chutes.

A porta abriu. Kenzo estava vestido um quimono de algodão, enquanto sua esposa se postava atrás dele, curiosa.

- Fuja! - Mamoru disse, em aflição. - Pegue suas coisas e fuja agora. A Kempeitai vai chegar a qualquer momento.

- Não os temo, jovem Aiko.

- Perceba que não verá a luz do dia, se permanecer aqui - elucidou. - Conheço uma pessoa no interior que pode abrigá-lo por um tempo. Arrume rapidamente suas coisas e vá!

O homem bateu de leve no seu ombro.

- Morrer será um alívio, garoto - foi sincero. - Não aguento mais, Aiko-san. Não durmo há anos; escuto as vozes das crianças que me pediram clemência enquanto eu largava sobre elas a terra gelada. Eu me tornei um demônio sobre as ordens do Império. Prefiro a morte a viver com essa certeza.

O som do carro da polícia surgiu. Aiko assustou-se, virando-se em direção à rua.

- Obrigado, Aiko-san - Kenzo lhe apertou os ombros. - Você é um bom homem, mas vá embora antes que Shin Sakamoto perceba que tentou me ajudar. Não ache que ele terá piedade de você, quando souber a verdade.

- Verdade?

- Nós dois sabemos a verdade, Aiko-san - Kenzo disse, misterioso. - Todavia, seu segredo morrerá comigo.

Não houve tempo para mais nada. Mamoru escondeu-se atrás de um arbusto, assim que a polícia parou em frente à pequena casa de madeira. Camuflado, ele observou os homens da Kempeitai saindo do carro, ao lado do imponente Shin. Ouviu os gritos da mulher, que se ajoelhou perante o jovem Sakamoto.

De onde estava, as acusações lidas num papel eram ditas com seriedade pelo policial, como se estivessem em um julgamento. Traição ao Império, tentativa de denegrir a imagem do exército, desordem pública, entre outras coisas, pareciam espadas cortando a carne do homem.

Kenzo ajoelhou-se no chão no momento final. Mamoru desviou os olhos e cobriu os ouvidos. Mesmo assim, o som do disparo permaneceu em sua mente, como uma doença maldita, marca infinita de guerra.

            
            

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