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O sol já despontava no horizonte quando Shin Sakamoto abriu a porta do quarto. Os olhos ansiosos e pesados focaram-se no chão de madeira, mais precisamente no futon convidativo e aquecido, onde o amontoado de cobertores macios indicava o corpo do amigo.
- Saia do meu futon - ouviu o sussurro zangado, assim que se deitou ao lado de Aiko.
Sorriu.
Abraçando o amigo, aspirou profundamente seu perfume cítrico. Há quantos dias não dormia? Já havia perdido as contas. Por alguma estranha razão, nunca conseguia descansar longe de Mamoru. Precisava dele como do ar que respirava.
- Eu disse...
- Eu ouvi - resmungou. - Sei que está zangado, mas estamos em guerra, Mamoru. Como eu poderia ouvir tamanha afronta e me calar?
Shin percebeu o leve tremor de Aiko e ouviu o choramingar calado. Levou as mãos espalmadas nas costas do amigo e depois o virou, abraçando-o. Aiko escondeu o rosto na curva de seu pescoço e ambos ficaram assim, cada um absorvido em sua própria verdade.
- Quando você voltará? - o menor indagou, mudando o assunto.
- A Guerra irá intensificar-se, Aiko. Sei de algumas coisas... Então, é provável que só nos vejamos novamente no próximo ano.
- Janeiro?
- Pretendo passar meu aniversário com você, meu querido.
- Isso é daqui a três, quatro meses! - reclamou. - É muito tempo, Shin!
- Eu sei, mas não há nada que possa fazer. Os soldados ficam muito mais tempo longe de suas famílias, eu tenho sorte de pertencer à nobreza. Se fosse outra circunstância, Aiko, eu estaria no fronte e não voltaria até a guerra acabar. Você e Ryo-san também seriam convocados.
Aquilo só confirmava as suspeitas de Mamoru, de que não havia sido chamado por causa de Shin.
- Os EUA limitaram a venda de petróleo ao Japão - Shin contou, os dedos acariciando os longos cabelos negros do amigo. - Sabe o que isso significa?
- Tenho medo de pensar... - Aiko sussurrou.
- Por enquanto, há apenas um clima hostil no ar, mas caso o Japão declare guerra aos Estados Unidos, as coisas poderão se complicar. Se isso acontecer, penso em tirar você de Tóquio.
- E existe algum lugar seguro no mundo, Shin-chan?
O homem pareceu pensar.
- Tem razão, por enquanto não existe lugar seguro. Porém, se houver, vou descobrir. E quando isso acontecer, levá-lo-ei para lá. Confie em mim para protegê-lo.
Era quase uma declaração de amor. Mesmo que não fosse, Aiko entendeu como tal e suspirou sem medo. Fechou os olhos, certo de que Sakamoto cumpriria sua palavra. Sabia que enquanto a verdade ficasse oculta, era a pessoa mais importante do mundo dele.
A percepção o fez estremecer. Apertando Shin nos braços, ele voltou a chorar. Entendendo mal seus motivos, Sakamoto apenas voltou a acariciar suas costas, consolador.
***
Dezembro de 1940
- Moleque desgraçado! - Nana gritou. - Já tem mais de um mês que estou lhe dizendo: "seja delicado!". - Ela pegou a vara e bateu com ela em seus braços. - E você sempre dança como se fosse um cavalo de salto alto!
Shiromiya esfregou o vergão e desculpou-se. Nana voltou a sentar na cadeira de madeira, e fez sinal para que Keiko voltasse a tocar a canção. Minikui, o gato malhado, subiu no colo da velha que o segurou carinhosamente, contrariando todas as vezes que xingou o felino.
- Mãos para frente - Nana mandou, assim que o garoto começou a dançar com passos curtos e graci osos. - Isso, agora gire a mão direita e leve-a até seu coração - Shiro cumpriu a ordem. - Estique a outra mão e mostre-a às pessoas. Isso. Nesse momento você está entregando seu coração às pessoas que o estão vendo dançar.
Shiro sorriu diante das palavras. No exato momento, a vara voltou a atingi-lo.
- Não mandei sorrir! - Nana berrou. - Só sorria quando eu mandar!
Um riso alto fê-lo esquecer da ardência no braço e voltar-se para Aiko. O cortesão estava à porta, observando o ensaio. O coração do menor alegrou-se instantaneamente, e ele correu até o outro.
- Aiko-san - chamou. - Viu como progredi?
- Você é um excelente dançarino, meu amor - ele sorriu, tocando delicadamente no belo rosto de Shiro, num carinho. - Pena que sua professora seja uma megera.
- Filho da puta! - Nana gritou. - Estou aqui ensinando de graça e você ainda me recrimina.
Mamoru gargalhou. Adorava aquela velha malcriada e não segurou a vontade de lhe abraçar. Em segundos, apertava-a nos braços, fazendo o gato miar alto por sentir-se comprimido.
Shiromiya observou tudo com os olhos atentos. Desde que havia chegado até a casa Ai, ele havia ficado sob a tutela de Mamoru. Ao contrário do que sempre imaginou para sua vida, descobriu que ainda existiam pessoas boas, incapazes de praticar o mal. Aiko era seu anjo, seu guardião. Na primeira noite que teve pesadelos, já frequentes antes mesmo de ser salvo por Mamoru, ele correu até seu quarto e o embalou até que voltasse a adormecer. Também o ajudou a tomar banho até que conseguisse fazer isso por si mesmo e sempre lhe trazia flores ou lhe cantava canções para alegrá-lo. Em pouco tempo, Shiro já o amava profundamente.
- Shin prometeu que viria para seu aniversário. Estamos a pouco mais de um mês do evento e quero muito que Shiro possa estrear durante o tal. É possível?
Keiko olhou de relance para Shiromiya, que entendeu o recado. Desde que havia chegado a casa Ai, as mulheres haviam-no ajudado de todas as formas. E eram extremamente cautelosas também. Assim, Shiro sabia que podia se tornar um alvo de Shin. Contudo, na mesma proporção, reconhecia o quanto era importante para Mamoru apresentar uma noite inesquecível ao amigo.
A vida de Mamoru Aiko era para Shin Sakamoto. Naqueles meses, ouviu o nome de Shin circular pela Casa do Amor como se ele fosse um dos seus habitantes. Aiko o citava durante o almoço e até nas noites, em conversas com outros clientes. Shin tinha privilégios, era o único com quem Mamoru dividia o futon, e era também o único que podia aparecer no horário desejado.
- Por que levar o moleque pra dançar para Sakamoto? - Nana inquiriu, inquieta. - Descontraia-o você mesmo!
- Será uma noite especial, com muitos convidados - Aiko insistiu. Então se voltou para Shiromiya. - Você dançaria no aniversário de Shin? - perguntou. - Eu quero muito que seja um momento especial...
Shiro assentiu.
- Darei meu melhor para que Aiko-san fique contente.
Mamoru sorriu em sua direção, encantado. Ouviu o suspiro de Keiko e voltou-se à mulher.
- Desculpe, mas eu também tenho o direito de suspirar por ele - ela deu os ombros, fazendo com que o chefe voltasse a rir.
- Não a condeno. Shiro-chan é realmente a coisinha mais linda do mundo todo. Tenho certeza de que teremos filas à nossa porta para vê-lo dançar.
- Contará ao público que ele é homem? - Nana perguntou, interrompendo o desfile de elogios.
- Talvez, ainda não pensei nisso. Como nenhum cliente terá o direito de se aproximar ou tocar nele, não vejo motivos. - Em seguida, o cortesão saiu em direção à porta. - Nana, recebi uma carta de Ryo-san - contou.
- Ele virá para o aniversário de Shin Sakamoto?
- Parece que Ryo-san já está em Tóquio, mas soube que a guerra está atrapalhando a venda dos pescados, e ele precisará fazer novos acordos comerciais. Então, tudo leva a crer que demorará algumas semanas para vir até aqui. De qualquer forma, quero que mande uma das meninas comprarem mais bebida e vinhos de qualidade. Ryo gosta muito.
Nana assentiu. Contudo, assim que Aiko desapareceu da sala, Shiro a ouvir reclamar.
- Não gosta dos amigos de Aiko-san, Nana?
A mulher preparou uma reprimenda, a fim de mandá-lo cuidar da própria vida. No entanto, quando se voltou para o rapaz, viu que sua pergunta era apenas curiosidade.
- Mamoru estaria bem melhor sem essas amizades. Especialmente, Shin Sakamoto.
Shiromiya tinha a sensação de que todos haviam ensaiado o mesmo discurso. Sempre que o nome de Shin surgia entre eles, era dito com raiva e repugnância. As mulheres o odiavam, mas era Nana que mais se irritava com sua presença. Havia nos olhos da velha algo que Shiromiya não podia identificar, mas que lhe dava calafrios.
Repentinamente, porém, seus pensamentos foram interrompidos por uma forte pancada no braço.
- Eu mandei você parar?
Correndo em direção a Keiko, o rapaz voltou a dançar.
***
O ano de 1941 começou com a Alemanha tomando a África através da sua divisão motorizada de elite. Havia relatos aqui e acolá sobre a tecnologia nazista, e muitos se congratulavam da ventura japonesa em estar do lado certo.
Independente do turbilhão de mortes que ocorria lá fora, dentro da casa Ai outra revolução acontecia.
Tudo começou na manhã do dia 22 de janeiro. Enquanto os britânicos e australianos capturaram Tobruk na Líbia, os gritos de Keiko acordaram Shiro. O garoto vestiu seu quimono rapidamente e correu em direção ao quarto da mulher. No caminho, encontrou-se com duas ou três prostitutas que lá moravam, e todos pararam à porta, atrás de Nana que havia chegado um segundo antes.
- A escolha é sempre sua - ele ouviu a voz de Mamoru.
Segundos depois, a porta era aberta. O cortesão encarou Nana, que lhe observava curiosa.
- Keiko está com dois meses de gravidez - ele contou. - Expliquei a ela as regras, mas ela não consegue decidir.
A mulher assentiu, compreensiva. Os olhos do homem, então, encontraram Shiro, e ele achou prudente explicar a situação, antes que o outro pensasse inverdades.
- Quando uma mulher da casa Ai engravida, ela tem dois caminhos. O primeiro é tirar. O segundo é manter a gravidez e depois de o bebê nascer, entregá-lo a uma ama de leite que vai criá-lo até que tenha idade para ir a uma escola interna nas montanhas. É claro que a segunda alternativa é cara e faz com que o dinheiro ganho no ofício se torne cada vez mais precioso.
Shiromiya assentiu.
- Ela não pode ficar com o bebê aqui?
Aiko sorriu, triste.
- Eu adoraria ter muitas crianças correndo por entre esses corredores, Shiro-chan - admitiu. - Mas, sejamos realistas: isso aqui é um bordel, e não existe a menor possibilidade de uma criança crescer dentro dessa casa. Eu mesmo só vim para cá quando já tinha idade suficiente. - Ele suspirou. - Enfim, em todo caso, a escolha não é nossa, nunca é. Aprendi com minha mãe que cada um dele levar seu fardo e o peso de suas decisões. Eu já carrego muitas culpas, Shiro. Essa, infelizmente, não poderei partilhar com Keiko-san.
Shiromiya concordou e curvou-se quando sentiu que Aiko Mamoru deixava o quarto. Em seguida, ele entrou e postou-se ao lado de Nana, que olhava piedosa para a jovem prostituta. Algumas outras mulheres balbuciavam algum conselho, mas Keiko parecia ainda mais confusa pela falação.
- Pelo menos você pode escolher - Kazue tentou perceber o lado positivo. - Não é?
Todas as mulheres o encararam com mágoa, contudo, foi Nana que abriu a boca.
- Tirar um bebê não é cortar o cabelo, moleque estúpido! - ralhou. - É uma decisão que vai acompanhá-la ao túmulo. - Depois riu. - Escolha? Tola é a mulher que acha que tem alguma decisão a tomar. Nessa época, no passado, no futuro... Toda mulher que tira sua própria cria é só mais uma que é manipulada pelos homens e nem percebe. Eles nos colocam filhos e depois não assumem a sua responsabilidade. Resolvem tudo pagando remédios ou açougueiros que arrancam os filhos de nossos úteros. Que merda de escolha é essa? Que merda de direito de escolha é essa?
Shiro desculpou-se perante o olhar sombrio da senhora. Sentiu, em seu tom, que havia muita dor em seu passado, mas não quis se ater a isso. Gostaria de ajudar de alguma forma as mulheres que lá estavam, já que todas o tratavam muito bem. Porém sabia que nada podia fazer.
- Deixe-nos sozinhas - Nana se voltou a ele. - O membro no meio das tuas pernas, mesmo que pequeno, nos irrita nesse momento.
Kazue curvou-se, mais uma vez balbuciando desculpas.
- Não é verdade, Shiro-san - Keiko disse. - Nós gostamos muito de você. Mas, realmente precisamos ficar sozinhas.
O rapaz, então, saiu. Seus passos foram retos até a saleta onde Mamoru administrava a Casa do Amor. Encontrou-o curvado sobre papéis, escrevendo e calculando, como se não estivesse acontecendo nada de relevante em sua propriedade.
- É tudo muito triste, Aiko-san - ele sussurrou, chamando o chefe. - Será que o pai do bebê não pode ajudar?
- O pai é um cliente. Se eu pressionar um cliente para assumir o fruto de uma noite que ele pagou para ter, perderei todos os fregueses e iremos à falência. Todas elas passariam fome ou teriam que se prostituir na rua, onde não poderiam ser protegidas de homens agressivos.
Shiromiya sabia muito bem como funcionava a prostituição nas ruas e estremeceu.
- O que acha que ela vai fazer?
Aiko o chamou para perto. Shiro sentou-se ao seu lado, curioso.
- Keiko já tem vinte e cinco anos. Logo ela chegará à idade limite das prostitutas. Infelizmente, é uma vida cruel, elas envelhecem cedo, sofrem muito, e são solitárias. Ela sabe que precisa guardar dinheiro para poder comprar sua própria casa e se manter quando sua vida de dama da noite terminar. Assim sendo, o racional seria abortar.
- E ela fará isso?
- Quem sabe - Mamoru deu os ombros. De repente, ele riu. - Lembro-me da primeira vez que uma das meninas engravidou sob meu comando. Ela optou por tirar a criança, e eu fiquei meses me culpando por não tê-la impedido. Mas se existe algo que a experiência ensina é a dar pouca importância à vida. Os anos que comando a casa Ai me doutrinaram a ter um coração frio.
Shiro o encarou. Estranhamente, as palavras eram contrárias aos olhos emocionados. Contudo, o que mais poderiam fazer?
-Aiko-san - Nana surgiu à porta. Seus olhos eram indecifráveis. - Keiko irá para Hiroshima. Ela tem uma irmã lá, e decidiu manter o bebê.
Houve um sorriso de puro deleite nos lábios de Aiko.
- Prepare algum dinheiro para que Keiko leve. Vou ver se Shin tem contatos em Hiroshima para que ela possa arrumar emprego por lá.
Nana ironizou.
- Como se Shin Sakamoto fosse se importar com uma prostituta.
- Tenho certeza de que Shin vai se importar se for um pedido meu - Mamoru o defendeu. - Falarei com ele durante sua festa de aniversário.
Nana deu os ombros.
- Vamos perder uma boa garota. Precisamos achar mais uma bela mulher para ocupar seu lugar.
Aiko concordou. Antes, porém, de manifestar-se verbalmente, outra mulher entrou na sala.
-Aiko-san - Midori o chamou. - Ryo-san acaba de chegar...
***
Aiko pediu que tanto Shiro quanto Nana saíssem de sua sala antes da entrada de Ryo. Não que o assunto entre eles fosse secreto, mas Ryo era como Shin em vários aspectos, especialmente na forma julgadora de olhar para as pessoas. Não foram poucas as vezes que teve discussões com Shin por causa da maneira com que ele tratava Nana. A velha prostituta era casca grossa e aguentava qualquer palavra maldosa, mas Ryo poderia dizer algo para Shiromiya que magoaria o, já frágil, garoto.
- Eu o esperava para o aniversário de Shin-chan - Mamoru disse, abraçando o amigo. - O que o traz durante o dia à Casa do Amor?
Ryo riu, de forma enigmática. Depois, sentou-se em uma confortável cadeira de madeira forrada de camurça.
- Amanhã mandarei entregar o presente a você, e peço que o dê a Shin - Ryo adiantou-se. - Não poderei estar presente...
- Sabe quanto tempo faz que não o vê? - Mamoru o interrompeu. - Ele ficará magoado por essa desfeita.
O outro virou os olhos.
- Por favor! - exclamou. - Estará tão bêbado que nem perceberá minha falta. Sabe como Shin é deprimente com comemorações.
Mamoru não negou.
- Por que não virá ao aniversário?
- Estarei viajando a negócios. O lado bom de ser um comerciante de alimentos, é que não importa se estamos em guerra ou não, todos precisamos comer.
Aiko assentiu.
- Mas voltarei para Tóquio depois disso - completou. - Espero que tenha um bom material de entretenimento quando eu retornar.
Contendo uma louca vontade de retrucar, Aiko simplesmente aquiesceu.
- Talvez, quando voltar, poderá usufruir de minha mais preciosa novidade.
Subitamente, Ryo ficou interessado.
- Uma nova mulher? Bonita?
- Não contarei nada, terá a oportunidade de ver por si mesmo quando voltar. Assim sendo, se apresse.
Entendendo a provocação, Ryo gargalhou.
- Espero que seja boa de cama, a última com que me deitei fez-me duvidar de minha virilidade.
Mamoru odiava aquele tipo de comentário, mas não se atrevia a devolvê-lo. Ryo era, acima de tudo, um cliente.
- Não é uma prostituta - negou. - Será alguém que dançará.
- Uma bailarina? - a sobrancelha ergueu-se, em escárnio.
- O rosto mais lindo que você já viu em vida - prometeu.
- Duvido que seja mais linda o que a mulher que vejo nos meus sonhos. Mas não me negarei a assistir à bela apresentação.
Pouco depois, eles se despediram. Ryo ergueu-se e saiu. O lugar cheirava bem e era bastante agradável. Ele sempre gostou muito daquele bordel. Começou a caminhar em direção ao enorme portão de madeira, quando esbarrou num garoto que corria em direção ao quarto de Mamoru.
- Olhe por onde anda, moleque - não se dignou a olhá-lo na face.
- Desculpe, senhor - disse, a voz baixa.
Virando-se de costas, sem mais tempo a perder, o jovem comerciante foi embora.