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Clara
A mala estava arrumada.
Bom, "arrumada" era um exagero. Eu basicamente joguei dentro dela as roupas novas que Daniel comprou - ou melhor, mandou comprar - e algumas poucas peças minhas que ainda não estavam manchadas de café ou desgastadas pelo tempo. Juntei também dois livros, um caderno de anotações, e minha dignidade... que, convenhamos, estava meio amassada no fundo da mochila.
O motorista chegou antes da hora marcada. É claro. Porque pessoas ricas não entendem o conceito de "dar mais dez minutinhos". Quando abri a porta do meu prédio, ele me chamou de "senhorita Vasconcelos" e carregou minha mala como se fosse feita de nuvens e não de decisões duvidosas.
- Ele já está te esperando no carro - informou, com um leve aceno de cabeça.
Ele, no caso, era Daniel Cortez. O homem que, até três dias atrás, eu pensava que só existia em comerciais de perfume. Agora, estava prestes a passar dez dias ao meu lado, fingindo ser meu namorado... ou melhor, fingindo que eu era a namorada dele.
Ao entrar no carro, encontrei Daniel com um tablet nas mãos e uma pasta de documentos no colo. Ele usava uma camisa preta com as mangas dobradas até o antebraço - o que não deveria ser ilegal, mas definitivamente era perigoso. Quando me viu, desligou o tablet e sorriu. Um sorriso contido, polido, quase gentil.
- Pronta? - ele perguntou.
- Pronta é uma palavra forte. Eu diria... consciente do erro que estou cometendo.
Ele riu. Uma risada breve, mas sincera.
- Já é um bom começo.
Durante os primeiros minutos da viagem, o silêncio pairou entre nós. Não era desconfortável, mas era... carregado. Como se estivéssemos nos estudando em silêncio, cada um tentando entender o que o outro escondia por trás da cortina do acordo.
- Posso te fazer uma pergunta? - quebrei o gelo.
- Só se eu puder fazer uma em troca.
Assenti.
- Como vai funcionar? Lá, quero dizer. Vamos dormir no mesmo quarto? Eles vão esperar declarações públicas? Tipo... jantares à luz de velas e olhares apaixonados?
Daniel pareceu se divertir com minhas dúvidas, o que me irritou um pouco - e me aliviou também.
- Você vai ter seu próprio quarto. E eu te passo hoje à noite um resumo com os nomes da minha família, quem é mais próximo, quem desconfia de tudo, quem adora fofoca. Não precisa fazer declarações apaixonadas. Só precisa parecer confortável ao meu lado.
- E você vai fazer o mesmo?
Ele me olhou.
- Você é fácil de gostar, Clara. Isso não vai ser difícil.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Fácil de gostar? Aquilo foi tão inesperado que fiquei sem reação. E o pior? Fiquei com vontade de acreditar.
- Minha vez agora - ele disse, com o olhar fixo na estrada.
- Manda.
- Qual é o seu maior medo?
A pergunta me pegou de surpresa. Esperei algo leve, tipo "comida favorita" ou "lugar dos sonhos". Mas não. Daniel Cortez não joga conversa fora.
Respirei fundo antes de responder.
- Desistir. Acordar um dia e perceber que não dá mais. Que escrever não vai pagar o aluguel, que sonhar não vai sustentar ninguém, e que talvez tudo isso que eu sou... não seja suficiente.
Daniel não respondeu de imediato. E, por um instante, achei que ele fosse mudar de assunto. Mas então ele disse:
- Você é muito mais do que suficiente. O problema é que o mundo costuma fazer barulho demais para deixar a gente perceber.
Fiquei quieta. Por fora, mantive uma expressão neutra. Por dentro, alguém estava em pânico apertando todos os botões do elevador emocional.
Chegamos à cidade da família dele no final da tarde. Era uma daquelas cidades pequenas, arborizadas, com casinhas de madeira que pareciam saídas de um catálogo de Natal. Se eu soubesse que seria cenário de comédia romântica, teria caprichado no figurino.
A casa da família Cortez parecia um hotel boutique. Varanda ampla, luzes penduradas nas janelas, guirlandas enormes e uma árvore de Natal montada do lado de fora, cercada de presentes falsos. Tudo impecável. E intimidante.
- Pronta pra conhecer os Cortez? - ele perguntou, descendo do carro.
- Tenho escolha?
- Nenhuma.
Pelo menos ele era honesto.
Caminhamos juntos até a porta, onde uma senhora de cabelos grisalhos, vestido florido e olhos atentos nos esperava com os braços cruzados. Era a avó dele. E, mesmo sem dizer uma palavra, eu entendi o recado: "Quero ver com os próprios olhos se essa história de namorada é verdade."
Sorri o melhor que pude.
Daniel se aproximou, me puxou levemente pela cintura e disse com naturalidade:
- Vó, essa é a Clara. Minha namorada.
E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa... ela sorriu de volta e me puxou para um abraço apertado.
- Enfim, uma moça de verdade! Já estava achando que meu neto era mentiroso.
Todos riram.
Inclusive eu. Mesmo que, por dentro, tudo ainda parecesse mentira.
Mas, por algum motivo inexplicável, quando senti o braço de Daniel na minha cintura e o toque caloroso daquela avó que só queria ver a família reunida, algo dentro de mim relaxou.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu pensei: talvez fingir um pouco de felicidade... seja o primeiro passo para encontrar a real.