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Clara
Eu não sabia o que esperar da família Cortez. Mas, se tivesse que resumir em uma frase minha primeira impressão, seria: "Eles são pessoas reais, com roupas bonitas e com expectativas levemente assustadoras."
A avó de Daniel, dona Iolanda, era uma força da natureza disfarçada de velhinha simpática. Sorria com os olhos, falava como se cada frase fosse parte de uma novela e, em menos de cinco minutos, já estava me chamando de "minha flor".
- E você escreve livros, é? - perguntou, me servindo um pedaço generoso de torta de nozes.
- Tento. Ninguém quer publicar ainda, mas eu insisto.
- Gosto de gente teimosa. Gente que não se entrega fácil. Por isso acho que você vai durar com meu neto.
Quase engasguei na torta.
Daniel, ao meu lado, deu uma risadinha contida e apertou minha mão sob a mesa, como se dissesse: vai dar tudo certo, só finge com charme.
"Fingir com charme" estava se tornando minha religião pessoal.
Nos primeiros momentos, a dinâmica entre nós era quase cênica. Trocávamos olhares cúmplices, sorrisos planejados e toques ensaiados. Parecíamos um casal de propaganda de margarina - se a margarina fosse feita de tensão nervosa e medo de ser desmascarado.
Teve uma hora, por exemplo, que a prima de Daniel, uma adolescente esperta chamada Luísa, perguntou:
- Vocês se conheceram como?
Silêncio.
Daniel me olhou. Eu olhei pra ele. Ele piscou. Eu pisquei de volta. E então disparei a primeira coisa que me veio à cabeça:
- No metrô!
- No metrô? - repetiram todos, com interesse.
- Sim! - Daniel entrou na história, improvisando como se fosse um ator veterano. - Eu quase perdi meu trem e esbarrei nela. Ela derrubou um livro. Eu peguei. Nossos dedos se tocaram...
- E a gente discutiu sobre qual livro era melhor: Machado de Assis ou Marian Keyes - completei.
- Romântico - murmurou a tia Solange, com um suspiro.
- Loucura - corrigiu o tio Gilberto. - Ninguém discute literatura no metrô sem estar drogado.
Todos riram. Inclusive eu. Inclusive Daniel. E, por um breve momento, a mentira parecia menos pesada. Mais... divertida?
Depois do jantar, Daniel me conduziu discretamente até o andar de cima, onde estavam os quartos. Finalmente, uma chance de relaxar, tirar os sapatos e organizar meus pensamentos longe de olhares curiosos.
- Vamos dormir no quarto de hóspedes do fim do corredor - ele disse, em voz baixa. - É longe o suficiente pra ninguém ouvir a gente se contradizendo.
- Ótimo. Assim ninguém vai ouvir eu roncando.
Estávamos a dois passos da porta quando a voz da dona Iolanda ecoou atrás de nós:
- Ei! Onde pensam que vão?
Viramos ao mesmo tempo. Ela subia as escadas com mais agilidade do que alguém com idade para fazer crochê e julgar reality show.
- Para o quarto de hóspedes - Daniel respondeu, com naturalidade.
- Por quê?
- Ué... pra dormir.
Ela franziu a testa, como se tivéssemos dito que íamos acampar no telhado.
- Que história é essa de casal dormindo separado? Aqui em casa, ninguém é careta a esse ponto. Vocês namoram, não namoram?
- Sim... - dissemos em coro.
- Então é no quarto dele que vão dormir. Juntos.
E, com isso, deu meia-volta e desceu, como se tivesse decidido onde cada peça do jogo deveria ficar.
Olhei para Daniel, sentindo o sangue subir até a ponta da orelha.
- Eu vou dormir no chão.
- Você vai é pegar uma lombar torta. A cama é grande. Vamos fingir que é uma trincheira: cada um de um lado, travesseiros no meio.
- Isso parece um plano digno de novela das nove.
- E esse Natal já é uma novela, não é?
Suspirei.
- Só falta o beijo inesperado no final do episódio.
Ele sorriu. E não respondeu.
O quarto era bonito. Amplo, decorado com tons neutros e um abajur que custava, provavelmente, o valor do meu notebook. Daniel se trocou no banheiro. Quando saiu, eu entrei - levando minha camisola discreta e o dobro da vergonha possível.
Deitamos na cama com uma distância respeitável e um muro de travesseiros entre nós. Luz apagada. Silêncio. Mas a tensão... essa estava mais acordada que nunca.
- Ei, Clara - ele chamou no escuro.
- Oi?
- Você acha que estamos enganando bem?
- Com certeza. Eles nem desconfiam que eu sou só uma escritora falida tentando sobreviver ao Natal.
- Você não é só isso.
- Ah, não?
- Você é a pessoa que me fez rir numa entrevista de emprego que deveria ser ridícula. E conseguiu convencer minha avó de que acredita em amor à primeira vista no metrô.
Fiquei em silêncio.
Porque, naquele momento, não queria rir. Só queria acreditar que talvez eu fosse mesmo tudo isso.
Mesmo que só por dez dias.